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USU= CAPIÃO FAMILIAR COMO INSTRUMENTO DE CONSAGRAÇÃO DA AUTONOMIA DA POSS= E E DO PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE FAMILIAR
Family adverse possession as an instrument of consecration of the
possession autonomy and the family solidarity principle
Danielle Tavares Peçanha*

Tathyanna<=
span
style=3D'mso-bookmark:_Hlk156484427'> Leandra Maria Batista Araúj=
o de
Souza Monteiro=

Resumo: A usucapião familiar traduz-se em modo de aquisiç&atild=
e;o
originária da propriedade incluído pelo legislador
ordinário no ordenamento jurídico brasileiro com o escopo de
proteger a família, consagrando, em última análise, a
autonomia da posse e sua função social. O artigo 1.240-A do Código Civ=
il disciplinou
os requisitos para a sua configuração, que devem ser analisad=
os
sob o esteio do Direito Civil-Constitucional. Com base em leitura funcional=
izada
da figura, utilizam-se os princípios e regras da
Constituição da República como diretrizes para que se =
promova
sua interpretação alinhada à legalidade constitucional=
. A
partir disso, o presente artigo pretende investigar cada um dos pressupostos
legais para a configuração do direito, notadamente o abandono=
do
lar, que deve ser lido à luz do giro pelo qual passou o direito de
família nos últimos anos e, particularmente, com base no prin=
cípio
da solidariedade familiar.
Palavras-chave: usucapião familiar; família; posse; abandono; solidarie=
dade
familiar.
Abstract: The family adverse possession translates into an
original mode of property acquisition included by the ordinary legislator in
the Brazilian legal system with the aim of protecting the family, consecrat=
ing
possession autonomy and its social function. Article 1,240-A of the Civil C=
ode regulated
the requirements for its configuration, which must be interpreted under the
framework of civil-constitutional law. Based on a functionalized reading of=
the
figure, the principles and rules of the Constitution of the Republic are us=
ed
as a guideline to promote its interpretation aligned with the constitutional
legality. Based on this, this article intends to investigate each of the le=
gal
assumptions for the configuration of the right, notably the abandonment of =
the home,
which must be understood in the light of the shift that family law has
undergone in recent years, particularly based on the principle of family
solidarity.
Keywords: family adverse
possession; family; possession; abandonment; family solidarity.
INTRODUÇÃO
Instituto jurídic= o de inegável relevância social, a usucapião familiar está prevista no art. 1.240-A do Código Civil, tendo sido incluída pelo legislador como uma forma de aquisição originária da propriedade sob o fundamento da proteção à famí= lia e, em última análise, da pessoa humana. O dispositivo incluído em 2011 no ordenamento civil brasileiro manteve os tradicio= nais requisitos da usucapião – ou seja, a posse contínua, ma= nsa, pacífica e com animus domini R= 11; , inovando pelas peculiaridades atinentes ao direito de família, por e= xemplo: i) ao estabelecer o lapso temporal da posse qualificada em dois anos ininterruptos; ii) ao identificar a coproprieda= de entre os ex-cônjuges ou ex-companheiros como um de seus requisitos; b= em como iii) ao apontar o abandono do lar como um = dos pressupostos para a configuração do direito.
Ainda que tenha apresent= ado o enorme mérito de garantir a salvaguarda do direito à moradia = no âmbito das relações afetivas travadas no íntimo = das entidades familiares, ao permitir que o ex-cônjuge ou ex-companheiro = possa adquirir a propriedade total do imóvel objeto do lar conjugal quando cumpridos os requisitos legais, não são poucas as discussões que, ainda hoje, despontam acerca do instituto. Muitas de= las advêm do fato de que a usucapião familiar une, a um só tempo, o renovado perfil das relações jurídicas de caráter real, com enfoque na propriedade e na posse, aos ditames precípuos do direito de família. Nesse sentido, a leitura ora proposta lança-se, com base no Direito Civil-Constitucional, que propõe a releitura dos institutos do Direito Civil à luz das regras e princípios constitucionais, na tarefa de abordar a temática da usucapião familiar sob perfil funcionalizado, com base nos contornos traçados pelo legislador para esse fim.
Parte-se, portanto, da funcionalização dos institutos, sobretudo no que diz respeito= ao direito das coisas, afastando-se de sua leitura meramente estrutural, de proteção exclusiva ou genérica da propriedade, e atribuindo-se privilegiado espaço à realização = da sua função social. Da mesma forma, essencial ao presente estu= do é a constatação de autonomia de que goza contemporaneamente a posse, evidenciada em diferentes institutos como, em especial, ocorre com a usucapião.= É nessa toada que se lança o presente ensaio ao estudo dos principais contornos e efeitos jurídicos da usucapião familiar como form= a de consagração da autonomia da posse, à luz de seu aspecto funcional.
Nesse mesmo movimento de renovação dos tradicionais institutos, no tocante ao direito = de família, a família-instituição do Código Civil de 1916, protegida como um fim em si mesmo, a despeito da realização pessoal de seus integrantes, é reconstruída na Constituição da República de 19= 88, ganhando novos contornos a partir do novo centro axiológico de todo o sistema jurídico — a pessoa humana. A família passou a = ser considerada como instrumento, funcionalizada ao livre desenvolvimento da personalidade de cada um de seus membros, consubstanciada a partir de valor= es como a igualdade e a liberdade de seus componentes.[1]
À luz de tamanhas transformações, tanto no direito das coisas, com a consagração da autonomia da posse e de sua funçã= ;o social, quanto no direito de família, com a sua identificação como instituição em favor do desenvolvimento de seus membros e com a valorização do princípio da solidariedade familiar, abre-se espaço para a releitura funcionalizada da usucapião familiar, justificando-se o es= tudo ora proposto. Dito de outro modo, assim como todos os outros institutos, deve-se pautar seu estudo em análise funcional, identificando-se a q= ue se destina tal modalidade de usucapião e quais os valores constitucionais que lhe dão guarida, para, somente a partir de tais constatações, responder às principais controvér= sias que lhe tocam.
No presente artigo, prop= õe-se então a refletir sobre a função da usucapião familiar nessa nova formulação funcionalizada da famíl= ia, refletindo sobre seus requisitos à luz dos princípios e valor= es constitucionais. Por derradeiro, debruça-se especialmente sobre o requisito legal do “abandono do lar”, que deve ser lido à luz da solidariedade familiar, buscando-se afastar do indesejável retorno à incursão de culpa pela ruptura do casamento e da união estável, em evidente retrocesso hermenêutico que = se pretende evitar.
1.<=
span
style=3D'font:7.0pt "Times New Roman"'> DIREITO DE FAMÍLIA FUNCIONALIZ=
ADO E O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE FAMILIAR
Quase um século separa a primeira codificação civil brasilei= ra, conhecida como Código Beviláqua, = do atual diploma em vigor, o Código Civil de 2002. De lá para cá, o Direito Civil passou – e tem passado – por profund= as transformações, à luz do processo de constitucionalização do direito (Perling= ieri, 2002), promovido a partir da repersonalizaç&ati= lde;o do ordenamento inaugurada pela Constituição da Repúbli= ca de 1988, que alçou a dignidade da pessoa humana ao epicentro do sistema.
Com
isso, pode-se dizer que uma das searas que mais vem sentindo os influxos da
tomada existencialista e solidarista é certamente o direito de
família. Coloca-se em pauta, entre tantas discussões correntes
que batem à porta do Judiciário, a possibilidade de
aquisição, por usucapião, da propriedade comum pelo
ex-cônjuge ou ex-companheiro que permaneça residindo no
imóvel do casal, nos termos do art. 1.240-A do Código Civil.<=
/span>
No tocante ao giro pelo qual passou o direito de família, em passado não tão distante, visava-se primordialmente à prote&cc= edil;ão da entidade familiar enquanto instituição, como unidade de produção e reprodução de valores. Tal interpretação decorre de uma ideia difundida tradicionalmente, segundo a qual existiria uma coesão formal ínsita ao conceito= de família, justificando, por vezes, o sacrifício individual em = prol da preservação da instituição que representaria= o elemento celular da sociedade civil: a família.
Evolutivamente,
à luz das importantes alterações axiológicas
introduzidas nas relações familiares pela atual
Constituição, impediu-se que se pudesse admitir a
superposição de qualquer estrutura institucional à tut=
ela
de seus integrantes, mesmo em se tratando de instituições com=
status
constitucional. Deixa a família, assim, de ter valor intrínse=
co,
e passa a ser valorada de forma instrumental (Tepedino, 2015, p. 6),=
Da
mesma forma, tal evolução revelou a necessidade de assegurar a
liberdade nas escolhas existenciais, que, na intimidade do recesso familiar=
, pudessem
propiciar o desenvolvimento da personalidade de seus integrantes. Tal liber=
dade
existencial, além de refletir na constituição das
diferentes modalidades de família e na forma como se dará seu
planejamento, também é identificada no momento de
dissolução do vínculo conjugal ou convivencial,
quando finda a comunhão plena de vida. Nesse ponto, aliás, a
Emenda Constitucional n. 66, de 13 de julho de 2013, que trouxe nova
redação ao art. 226, § 6º, da C.R., rechaçou=
em
boa hora a perquirição de culpa na dissolução da
sociedade conjugal. Com isso, o divórcio é identificado como
direito potestativo, bastando a manifestação de vontade
qualificada para tanto.
A despeito de toda a liberdade que vigora em matéria de constituição e dissolução das relações entre cônjuges/companheiros, tal liberdade não é absoluta, nascendo internamente limitada pela solidariedade. É dizer: a família se torna entidade solidaris= ta, de tal modo que os seus integrantes se corresponsabili= zam uns pelos outros, notadamente quando houver algum tipo de vulnerabilidade. A solidariedade, estabelece, pois, deveres entre os membros da entidade famil= iar, o que se pode notar especialmente em relações desiguais.
O princípio também justifica, muitas vezes, medidas voltadas à proteção de um membro em especial, eventualmente projetadas para o período posterior à dissoluçã= o do vínculo amoroso-afetivo. O princípio da solidariedade familia= r, assim, funciona como vetor de justificação de importantes institutos, aplicáveis mesmo quando já se tenha dissipado a comunhão plena de vida, como ocorre com os alimentos devidos entre ex-cônjuges ou ex-companheiros ou no caso da usucapião familia= r, notadamente diante da interpretação funcionalizada que se tem conferido ao requisito do “abandono familiar”, como se poderá observar mais à frente.
Adjetivam-se,
nessa esteira, o direito de família e seus institutos, inserindo-os =
no
tecido normativo constitucional e tendo em mira prioritariamente valores
não patrimoniais, em especial, a realização da
personalidade e a tutela da dignidade da pessoa humana.
Esse cuidado é indispensável à formação da renovada dogmática do direito privado, dentro da qual se situa a usucapião familiar. O instituto, ao permitir que o ex-cônjuge = ou ex-companheiro possa adquirir a propriedade total do imóvel objeto do lar conjugal, quando cumpridos os requisitos legais, não foge &agrav= e; regra: deve o seu estudo ser pautado em análise funcional, identificando-se a que se destina tal modalidade de usucapião e quai= s os valores constitucionais que lhe dão guarida. Somente dessa forma será possível responder às principais controvér= sias que lhe cercam.
2.
A AUTONOMIA DA POSSE E SUA FUNÇÃO SOCIAL
Para além da renovação do direito de família, que se torna democrático e solidarista, voltado à realização= dos membros de cada família, em acepção plural e igualitária, a usucapião familiar esbarra visceralmente nos institutos da propriedade e da posse. Isso ocorre na medida em que o instit= uto estabelece a possibilidade de tutela prioritária da posse qualificada exercida pelo ex-cônjuge ou ex-companheiro que permanece residindo no= lar marital, desde que tal posse realize valores protegidos pelo ordenamento, em detrimento do domínio daquele ex-consorte que “abandona o lar”[7] conjugal, nos termos legais. Por isso mesmo, impõe-se empreender o estudo de tais institutos – posse e propriedade – sob aspecto não somente estrutural, mas principalmente tendo em mira o perfil funcional de ambos (Tepedino, 2018, p. 477-506).
A despeito das intensas transformaçõ= ;es sentidas pelo direito privado, ainda é possível identificar, = em alguma medida, a inadequada assimilação dos fundamentos da po= sse à propriedade, ao se analisarem os institutos sob o perfil estrutura= l, sem atentar ao aspecto funcional, que visa a identificar a funç&atil= de;o desempenhada pelas situações jurídicas subjetivas.[8] Nessa linha, vale nota sobre a mudança axiológica que a propriedade privada tem experimentado nos últimos tempos, a partir do reconhecimento de sua função social,[9] considerada como elemento interno do domínio, cujo conteúdo é valorado e tutelado na medida em que seu exercício se mostre socialmente útil e capaz de promover valores existenciais.[10]= a>
Em que pesem as significativas mudanças no âmbito da propriedade, não se deve promover sua aglutinação com a posse, merecedora de tutela autônoma (Tepedino; Peçanha, 2022, p. 331-359). A confusão vem do fato= de que, em termos estruturais, a posse se identifica com qualquer situaç= ;ão fática que exteriorize a propriedade, identificada no exercíc= io de qualquer das faculdades do domínio.[11]= a> Todavia, como direito subjetivo, a posse também assume dimensã= ;o funcional, relativa à finalidade atribuída ao bem jurí= dico pela titularidade possessória. Assim, se a função da p= osse não se vincula necessariamente à do domínio, torna-se objeto de valoração autônoma pelo direito.
Ao passo em que a estrutura da posse desvenda o aspecto estático do direito subjetivo, enquanto conjunto de poderes atribuídos ao possuidor, a função da posse traduz seu = aspecto dinâmico ou os efeitos do direito subjetivo na concreta relação jurídica. Por outras palavras: de um lado, a s= ua estrutura define os poderes do possuidor, enquanto a função estabelece sua legitimidade e seus limites, isto é, a justificativa finalística desses poderes em razão das exigências impo= stas por outros interesses tutelados na concreta utilização dos be= ns jurídicos,[12]= a> como a promoção do direito à moradia, ao trabalho e a proteç&atild= e;o ao meio ambiente.
Destaqu= e-se que a análise dos perfis estrutural e funcional deve ser realizada concomitantemente, determinando-se a estrutura com base na funç&atil= de;o que se pretenda cumprir. Dessa forma, parte-se da funçã= ;o do instituto para fazer incluir, na sua estrutura, também os deveres necessários à sua realização,[13]= a> superando-se, desse modo, a análise estática da estrutura da posse, que passa a se constituir não só pelos poderes atribuídos ao possuidor, mas igualmente pelos deveres essenciais ao atendimento da sua função social.
Naturalmente, quando estiver acompanhada do título do domínio, a função social da posse pode coincidir com a função social atribuída à propriedade, levada a cabo pelo exercício do próprio direito.= Por tratar-se de relação fática, contudo, a função social da posse, quando desacompanhada de título dominical, dependerá da compatibilidade da utilização = que se dá à coisa, no caso concreto, com situações jurídicas constitucionalmente merecedoras de tutela (Tepedino; Pe&cc= edil;anha, 2022, p. 331-359). É dizer: quando apartada da propriedade, a salvaguarda da posse depende de verificar que o seu exercício realiza concretamente valores protegidos pelo ordenamento, que justifiquem sua proteção legal, mesmo contra o domínio.
De tal forma, os princípios da dignidade da pessoa humana, da solidariedade social e da igualdade, informadores da normativa atinente à moradia e ao trabalho, legitimam a disciplina d= os interditos possessórios e de todas as modalidades de usucapião dos bens imóveis, entre as quais se encontra a usucapião familiar, e consagram, em última análise, fundamento para a tutela possessória na legalidade constitucional. Encontra-se nesse conjunto de valores o critério interpretativo para a solução de conflitos de interesse entre as situações proprietárias e as situações possessórias que corriqueiramente se apresentam na realidade social (Tepedino, 2018, p. 477-506).
Em relação à posse, por se tratar de situação fática, diferentemente da proprieda= de, o interesse nela intrínseco só se legitima quando vinculado a valores constitucionalmente tutelados, justificando-se a posse diretamente = na função social desempenhada pelo possuidor, ao direcionar o exercício de direitos patrimoniais a valores existenciais. Caso associada à propriedade, avalia-se a legitimidade do exercíci= o da posse com base nos limites impostos ao titular do domínio. Quando separada da propriedade, a legitimidade da posse encontra-se condicionada ao interesse jurídico perseguido pelo exercício possessór= io (Tepedino; Peçanha, 2022, p. 331-359).
Em consequência, à luz da autonomia = da posse, a disputa entre a posse e a propriedade só pode ser resolvida= no caso concreto, o que deve ser levado em conta também nos casos que envolvam a pretensão de aquisição da propriedade por usucapião, observados os requisitos de cada uma de suas modalidades. Aplicando-se à usucapião familiar, é possível afirmar que, no confronto entre as duas situações jurídicas subjetivas, assistirá razão àquele que conseguir demonstrar atender à função imposta ao exercício de sua respectiva titularidade – a funç&atild= e;o social da propriedade ou a função social da posse, verificada= a partir da correspondência do exercício do direito aos interess= es jurídicos constitucionalmente tutelados, no âmbito das garanti= as fundamentais, como moradia e saúde (Tepedino; S= chreiber, 2000, p. 41-57).
3. USUCAPIÃO FAMILIAR COMO INSTRUMENTO DE CONSAGRAÇÃO DA AUTONOMIA DA POSSE
A usucapião – também denominada
prescrição aquisitiva – revela a influência do te=
mpo
na consolidação de situações jurídicas. A
aparência de normalidade, decorrente da posse pacífica e mansa,
gera a expectativa de inexistência de conflitos, tal qual ocorre na
prescrição extintiva. Assim, transcorridos os respetivos praz=
os
legais, a depender de cada uma de suas modalidades, esmorece o vício
possessório anterior, tornando-se definitivo o exercício de f=
ato
de faculdades do domínio. Tamanha a relevância do exercí=
;cio
possessório que, associado ao preenchimento dos requisitos legais
próprios, a usucapião configura modo de aquisiçã=
;o
originária da propriedade, pela qual se adquire direito novo, livre das vicissitudes do título dominical
anterior.
Em tal perspectiva, pode= -se afirmar que a usucapião é valioso instrumento de consagração da autonomia da posse (Tepedino, 2018, p. 477-506= ). A admissibilidade de interditos possessórios pelo possuidor independentemente do domínio talvez seja o mais cristalino exemplo do estremar da posse, com regulamentação e função social própria, em relação à propriedade. Por o= utro lado, a usucapião familiar, embora professada no bojo de uma relação própria de direito de família, com as peculiaridades que lhe são próprias, não foge à regra. Trata-se de evidente exemplo da autonomia da posse frente à propriedade (Tepedino, Peçanha, 2022, p. 331-359).
A usucapião famil= iar foi introduzida no Brasil pelo art. 1.240-A do Código Civil, em 2011, causando muita polêmica em razão dos requisitos enunciados no dispositivo legal para a consagração do direito aquisitivo. O texto dispõe que o ex-cônjuge ou ex-companheiro poderá adquirir a propriedade total do imóvel urbano de até 250m&sup= 2; objeto do lar conjugal, desde que demonstrada posse superior a dois anos ininterruptos, agregada ao “abandono do lar” pelo outro consort= e. Em que pese existirem discussões acerca dos pressupostos para sua configuração, tem-se entendido que o instituto visa a tutelar= a família – premissa pautada no princípio da solidariedade – e o direito à moradia, o que lhe garantiria guarida constitucional. A bem da verdade, cuida-se a usucapião familiar de instituto intrinsecamente voltado à proteção da dignid= ade da pessoa humana e, como seu corolário, do direito à moradia.= Em qualquer de suas manifestações, deverá existir comprometimento com ambos os preceitos, consagrados, respectivamente, no ar= t. 1º, inciso III, da C.R./1988 e no art. 6º da C.R./1988.
A Constituiç&atil= de;o elevou os valores existenciais ao ápice de tutela do ordenamento, elegendo a dignidade da pessoa humana como fundamento basilar e alicerce que sustenta a República e a ordem democrática. Não obstan= te as críticas quanto à superutilizaç= ;ão do princípio da dignidade da pessoa humana (Nanni, 2014, p. 141), qu= e exige cada vez mais empenho dos intérpretes e operadores do direito em afa= star seu emprego de maneira oca e superficial, não se pode esvaziar a relevância que o aludido princípio desempenha no sistema pátrio, funcionando como verdadeiro divisor de águas. Assim, caberá aos estudiosos envidarem todos os melhores esforços pa= ra compreendê-lo e aplicá-lo de maneira não banalizada, ma= s em consonância com o que preconiza o ordenamento (Barroso, 2014, p. 60).=
Da dignidade da pessoa h= umana, reconduz-se à garantia de acesso à moradia, cuja existê= ncia e reconhecimento estão intimamente ligados ao valor próprio q= ue identifica o ser humano como tal. A proteção jurídica à dignidade humana abrange não somente aspectos existenciais,= mas também inclui a garantia de meios materiais necessários ao pl= eno desenvolvimento do sujeito, ganhando destaque a habitação que, nas palavras de Anderson Schreiber, “&eac= ute; requisito inerente à formação e ao desenvolvimento da personalidade humana” (Schreiber, 2013, p. 285).
Representando, em espect= ro social de abrangência, muito mais que o direito de propriedade e goza= ndo de âmbito de proteção e objeto próprio, o direito à moradia[14] marca a necessá= ;ria intervenção estatal em favor das partes mais fracas nas relações sociais. A despeito da discussão sobre a atuação ativa do Estado para garantir sua efetivação, em aspecto prestacional, cuida-se de acréscimo trazido pela Emenda nº 26 de 2000, no rol= dos direitos fundamentais sociais. Por outro lado, o direito à moradia assume também aspecto defensivo, segundo o qual protege-se a moradia= da pessoa contra interferência pública ou particular, impondo-se dever geral e negativo de abstinência. Trata-se de direito voltado à necessidade primária de asilo, própria do homem, que repercute em diversos institutos, como no direito real de habitação decorrente da morte de um dos cônjuges ou companheiros ou, especialmente relevante ao presente ensaio, na usucapião (Russo Júnior, 2006, p. 58).
Ao consagrar tais direit= os fundamentais delineados como valores fundantes da ordem constitucional, a usucapião familiar tem o condão de privilegiar a utilização concreta do bem mais condizente com os ditames sociais. A um só tempo, promove o direito à moradia daquele q= ue se encontra em condição de maior vulnerabilidade, como se poderá desenvolver no item subsequente, e, ainda, propicia que ao bem seja atribuída função compatível com os valores= do sistema, quando aquele direito de propriedade confrontado já n&atild= e;o vinha sendo exercido de modo compatível com a sua funçã= ;o social.[15]= a>
Observa-se, nesses casos= , a disputa entre as situações jurídicas subjetivas de pos= se e de propriedade, devendo-se salvaguardar o direito daquele que demonstra ate= nder à função exigida ao exercício de sua titularida= de. Vale dizer, nos casos em que há aquisição do bem pela usucapião familiar, presume-se que, no conflito entre a função social da propriedade e a função social = da posse, aquela deixou de ser devidamente cumprida por seu titular (no caso, o ex-cônjuge ou ex-companheiro que “abandonou o lar”), ao p= asso em que restou verificado o cumprimento da função social da po= sse, a partir da correspondência do exercício do direito aos intere= sses jurídicos constitucionalmente tutelados, como o direito à mor= adia daquele que permaneceu residindo no bem. Afinal, o direito de propriedade deixou de ser considerado absoluto, apenas merecendo salvaguarda quando realizar sua função social, que nada mais é que a “razão pela qual o direito de propriedade foi atribuído= a determinado sujeito” (Perlingieri, 2002, = p. 226).
A tutela possessó= ria dissociada do título proprietário apresenta o mérito de promover maiores segurança e proteção àquele que confere ao bem uma função compatível com os anseios sociais postos na Carta Constitucional, em consolidação forma= l da situação concreta. Com a aquisição da proprieda= de integral do imóvel pela usucapião familiar, além da consagração do direito de moradia digna, adquire-se o domínio em sua plenitude, com os efeitos legais dele decorrentes, co= mo o direito de partilha, de percepção de frutos, entre outros.
Outro aspecto relevante = a ser destacado é o fato de que o abandono do bem pelo ex-cônjuge ou ex-companheiro vem acompanhado de completo desamparo relativo aos cuidados = com a manutenção do bem, recaindo sobre aquele que exerce a posse todos os ônus sobre a coisa, o que inclui impostos, eventuais taxas condominiais, custos com reformas necessárias e úteis, entre outros. O cumprimento de tais deveres pelo titular do direito a usucapir o imóvel, uma vez mais, reforça que a usucapião familiar é efetiva forma de cumprimento da função social do bem, que pressupõe sua regularidade material e fiscal, em consonânc= ia com o desenvolvimento urbano ao retirar dos bens todas as suas potencialida= des.
Feitas tais considerações, que permitem concluir que a usucapião familiar figura como verdadeiro instrumento de consagração da autonomia da posse, apartada do exercício dominial e protegida mesmo contra ele, convém agora tratar sobre os requisitos dispostos em lei para a verificaçã= o da usucapião familiar, bem como de algumas das suas principais controvérsias.
4. RE=
QUISITOS
LEGAIS DA USUCAPIÃO FAMILIAR EM PERSPECTIVA FUNCIONAL
A fim de compatibilizar a tutela do direito à moradia,
à luz da função social da posse, e a
proteção da chamada família-instrumento, passa-se a tr=
atar
sobre os requisitos dispostos em lei para a configuração da
usucapião familiar, sob perspectiva funcional, bem como sobre alguma=
s de
suas principais controvérsias, que não raro batem às p=
ortas
do Judiciário. Muitas dessas discussões decorrem do fato de o
legislador ter inovado, ao e=
xpandir
o conceito de usucapião, criando, em 2011, uma nova
espécie, que possui requisitos comuns às demais modalidades de
usucapião, porém com algumas peculiaridades voltadas ao objet=
ivo
de proteção da família, nos termos do artigo 1.240-A do
Código Civil:
Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (do=
is)
anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com
exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzento=
s e
cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida
com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o pa=
ra
sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio
integral, desde que não seja proprietário de outro imó=
vel
urbano ou rural.
§ 1o O direito previsto
no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor ma=
is
de uma vez (Brasil, 2002).
Mediante
o emprego de instituto próprio dos direitos reais, visou o legislado=
r a
solucionar uma antiga demanda social ligada ao direito de família,
regularizando a situação jurídica daquele que permanece
residindo no imóvel de domínio comum, frente ao total abandon=
o do
outro consorte, sem que tenha havido qualquer entendimento formal sobre a
partilha de bens (Loureiro, 2008, p. 1223). Contudo, tão logo=
o
aludido dispositivo entrou em vigência, diversos questionamentos quan=
to
à validade de alguns de seus requisitos foram levantados.
A
lei dispõe detalhadamente sobre os pressupostos que, concretamente,
devem se fazer presentes para a ocorrência da usucapião famili=
ar,
quais sejam: i) o imóvel deve ser urbano e conter, no
máximo, 250 m²; ii) posse direta, c=
om
exclusividade e sem oposição, por, no mínimo, 2 (dois)=
anos,
exercida por aquele que permanece no bem; iii)
existência de vínculo de casamento ou união está=
vel
entre aquele que abandona o lar e aquele que permanece na posse do bem; ser compreendido, assim como todos os demais elemento=
s, em
termos funcionais, levando em conta a totalidade de valores que fundamentam=
o
instituto à luz complexidade do ordenamento.
Entre os pressupostos exigidos por lei para restar configurada a usucapião familiar, identifica-se, como requisito de ordem pessoal, a exigência= de que seja o possuidor ex-cônjuge ou ex-companheiro daquele que abandon= ou o lar, o que levanta algumas indagações. À primeira vist= a, parece haver antinomia entre o art. 1.240-A e o art. 197, I, do Código Civil, que dispõe genericamente não correr prescrição entre cônjuges durante a sociedade conjugal.= Da mesma forma, questionou-se qual seria o marco temporal a partir do qual correria o prazo legal, notadamente considerando tratar-se de modalidade de usucapião associada ao término da relação conju= gal ou convivencial.
Sobre o primeiro ponto, poder-se-ia dizer que, pelo critério normativo da especialidade, consubstanciado pelo brocado lex specialis derogat legi generali, a norma especial prevalece sobre a norma geral, devendo o art. 1.240-A ter primazia= ao art. 197, I, do mesmo diploma. Mas não basta: deve-se recorrer &agra= ve; função da norma para verificar o dies a quo da prescrição aquisitiva.
É preciso curva= r-se à ratio da lei para melhor interpretá-la, de tal modo que a finalidade precípua do dispositivo está atrelada à proteção da família (ou, em particular, do membro que permaneceu residindo no be= m e assumiu todos os custos dessa posse qualificada), razão pela qual se deve entender que é a separação de fato do casal o mar= co temporal para a incidência da prescrição aquisitiva.[16]= a> Irrelevante então, ao menos para efeito de usucapião familiar= , o prévio reconhecimento formal da separação (pela via judicial ou extrajudicial).[17]= a>
Interpretaç&ati= lde;o diversa iria de encontro ao mens legis, pois se houvesse a exigência de formalização do divórcio para que o prazo fosse contado, dificultar-se-ia em muito o acesso ao modelo de usucapião proposto, haja vista que o destinatário da norma é a pessoa abandonada, e o cônjuge que abandonou o lar estaria alheio ao pedido do desenlace – o que, como se sabe, não imped= e o pedido de divórcio, que se trata de direito potestativo, mas pode dificultar ou desacelerar todo o processo. Dessa forma, sem a possibilidade= de resolução célere, exigir-se-ia que aquele que desejass= e se valer da prescrição aquisitiva fosse ao Judiciário bus= car o fim da sociedade conjugal, para que, só então, começ= asse a contar o prazo aquisitivo da sua posse qualificada, o que estaria em claro descompasso com a função da norma, de ordem fática. Além disso, assim evita-se conferir tratamento desigual ao casamento= e à união estável, vez que essa última não depende de qualquer formalização judicial ou extrajudicial, ao contrário do casamento (Tepedino; Monteiro Filho; Renteria, 2023, p. 145).
Alinhado
a esse entendimento encontra-se o anteprojeto de reforma do Código
Civil,[18]
– que, no momento de elaboração do trabalho, encontra-s=
e em
tramitação no Congresso Nacional –, ao propor
alteração significativa na redação do art. 1.24=
0-A.
Foi proposta a inclusão de quatro novos parágrafos, entre os
quais os parágrafos 2º-A e 3º, no sentido de que o prazo p=
ara a
usucapião seja contado do fim da composse, sendo essa
cessação presumida a partir da data em que o ex-cônjuge=
ou ex-convivente deixa de arcar com as despesas relativa=
s ao
imóvel. Também restou estabelecido, com a sugestão de
inclusão do parágrafo 4º, que as expressões
utilizadas no dispositivo correspondem à separação de
fato, independentemente da formalização do divórcio ou=
da
dissolução da união estável, a fim de apaziguar=
as
divergências sobre o tema.
Ressalta-se, ainda, que a razão de ser para o impedimento para a prescrição entre pessoas casadas (art. 197, I) é a paz doméstica (Tepedino; Barboza; Moraes, 2014, p. 540), o que deixa de existir com o rompimento da = vida em comum, não havendo motivo para que o prazo da usucapião ap= enas corresse após a decretação do divórcio ou da dissolução da união estável. Tal posição foi referendada pelo Enunciado n. 501, da V Jornada de Direito Civil,[19] promovida pelo CJF, ao confirmar ser a data da separação de fato o dies a quo= do prazo dessa espécie de prescrição aquisitiva. Ademais,= a fim de se coadunar com a visão pluralista de família, o Enunc= iado preocupou-se em garantir a abrangência do instituto a todas as entida= des familiares, ao expressamente englobar a tutela do direito proposto também às uniões homoafetivas.[20]<= /a>
Em termos subjetivos, ainda, entende-se que a prerrogativa de reconhecimento da usucapião familiar é personalíssima, ou seja, exclusiva do ex-cônjuge ou ex-companh= eiro que permanece residindo no bem comum. Tratando-se de usucapião espec= ial e com prazo reduzido (de dois anos), o instituto estaria vocacionado &agrav= e; proteção específica de pessoas que viveram em relação conjugal ou convivencial, razão pela qual não seria possível que seu exercício se desse por terceiro, por via da acessão de posses (art. 1.207, do Código Civil) ou da sucessão de posses –= ; art. 1.243, do Código Civil (Godoy, 2022, p. 323-338).
Passando à an&aac= ute;lise dos requisitos de ordem objetiva, o art. 1.240-A determina que terá direito à usucapião familiar aquele que viver em imó= ;vel urbano com metragem de até 250m². A previsão é objeto de críticas, na medida em que se questionam os motivos ensejadores da exclusão do imóvel rural como objeto dessa modalidade de usucapião, afirmando-se que a localizaçã= o do domicílio da pessoa não seria critério justificativo p= ara o tratamento diferenciado (Souza; Thebaldi, 201= 5, p. 195-215).[21] Ademais, ainda que se pudesse alegar que a posse qualificada do imóvel rural já se encontra protegida em alguma medida pela usucapião especial individu= al rural, de índole constitucional (art. 191, CR/1988 e art. 1.239, CC/2002)[22], tal não prosp= era, visto que, além de indicar requisitos diversos dos da usucapiã= ;o familiar, essa modalidade encontra paralelo com a denominada usucapiã= ;o especial urbana (art. 183, CR/1988; e art. 1.240, CC/2002),[23]= a> que protege nos mesmos termos o imóvel urbano.
Dando
continuidade, como elemento objetivo, o legislador adotou o pressuposto da
propriedade conjunta entre os ex-cônjuges ou ex-companheiros para o
reconhecimento da usucapião, o que causou certo estranhamento, uma v=
ez
que tal requisito poderia esvaziar o instituto, baseado na autonomia da pos=
se.
Ao exigir a titularidade do bem como premissa para sua
instituição, contudo, o legislador teria restringido o alcanc=
e da
usucapião, a depender do regime de bens adotado pelo casal, sendo
incompatível com a razão da norma, que é proteger a po=
sse
qualificada daquele que permaneceu residindo no lar conjugal, em prol da
entidade familiar.
Nesse
sentido, há quem defenda que o objeto de atenção
legislativa deveria ter sido a posse direta, de forma compartilhada entre os
ex-cônjuges ou ex-companheiros – e não a copropriedade
–, a fim de que aquele que sequer tivesse a meação da
propriedade pudesse vir a se tornar titular da integralidade do direito de
propriedade do bem,[24]
independentemente do regime de bens adotado. Em contraposição,
parte da doutrina entende que se tratou de escolha legislativa no sentido de
que, nessa modalidade de usucapião, a coisa é especial,[25]
uma vez que o legislador fez recair o direito apenas à quota ide=
al
pertencente ao ex-cônjuge ou ex-companheiro que se ausentou do lar,
corroborando o mens legis. Em linha com tal entendimento, afirma-se =
que,
ao se instituir a usucapião da meação, em razão=
de
ser o usucapiente coproprietário do bem, o elemento subjetivo
relacionado à posse, o animus domini<=
/i>,
deve ser presumido de maneira absoluta, juris et de juris (Rosa, 202=
2,
p. 401).
Quanto à obrigato=
riedade
de domínio conjunto sobre o bem, ainda, levantou-se discussão
acerca da (im)possibilidade de usucapião=
na
constância do condomínio, que, à primeira vista, n&atil=
de;o
poderia ocorrer, visto que um condômino não poderia afastar a
posse dos demais. Ressalta-se, contudo, que, para o reconhecimento da
usucapião no contexto da usucapião familiar, deve-se atentar
à inversão da posse quando um dos condôminos passa a
exercê-la com exclusividade e sobre o todo, e não apenas como
compossuidor.[26] Vale dizer, para a
configuração da transmudação da posse (Tepedino;
Barboza; Moraes, 2014, p. 530), requer-se a demonstração da
mudança dos fatos que comprovem a alteração do stat=
us
da posse, com base em elementos objetivos exteriorizados, e não em
razão da mera vontade do possuidor. Nesse sentido, o desinteresse pelo bem imóvel, somado à
atitude passiva e inerte daquele que se afasta do bem, seria o fator primor=
dial
para a usucapião, por denotar a intenção abdica=
tiva,
ou seja, a deliberação de não mais tê-lo para si=
, em
revelação do animus derelinquendi (Diniz,
2017, p. 3).
Quanto
ao prazo exigido para a configuração da usucapião,
questionou-se o exíguo período de 2 anos de posse direta, com
exclusividade e sem oposição, de modo que o legislador teria =
ido
além do texto constitucional, estipulando o
menor prazo de todas as modalidades de usucapião. Cumpre registrar,
todavia, que nada impede que o legislador ordinário crie nova modali=
dade
de usucapião com prazo inferior ao disposto na
Constituição Federal, sobretudo por revelar importante
instrumento para a funcionalização da posse atrelada ao fim de
proteção da família, revelando-se constitucional a esc=
olha
do prazo diminuto (Gama, 2016, p. 9). Tratando-se de prazo exíguo,
é prudente que o cônjuge que pretenda evitar a perda da parte =
que
lhe cabe no bem providencie a partilha de bens do casal antes do transcurso=
do
mencionado lapso temporal.
Além
disso, cabe reforçar que o §1º do art. 1.240-A sinaliza qu=
e a
aquisição da propriedade por usucapião familiar s&oacu=
te;
pode ocorrer uma única vez na vida, por conferir posiçã=
;o
muito privilegiada ao possuidor (Tepedino; Monteiro Filho; Renteria, 2023, p. 146). =
Pelo
mesmo motivo, dispõe que somente adquire a propriedade por
usucapião familiar aquele que não seja proprietário de
outro imóvel urbano ou rural.
Por fim, merece especial destaque a discussão em torno do requisito rela= tivo ao “abandono do lar”. Discute-se se tal requisito legal representaria o retorno à noção de culpa pelo fim da sociedade conjugal, e, em caso negativo, qual seria a correta forma de se interpretar e aplicar o requisito. Tal análise demanda o exame atento de pontos importantes atinentes ao direito de família, o que = se fará na seção a seguir.
5. O “ABANDONO DO
LAR” À LUZ DO PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE FAMILIAR
A solidariedade ganhou normatividade e status de princípio jurídico apó= ;s sua inserção no texto constitucional, no artigo 3º, inci= so I, descrito como um dos objetivos fundamentais da República. Al&eacu= te;m disso, o citado princípio encontra-se implícito em outras disposições constitucionais, especialmente no âmbito das regras de direito de família, conforme se extrai dos artigos 226, 22= 7 e 230, da Magna Carta, que impõem ao Estado, à sociedade e &agr= ave; família o dever de cuidado na proteção da entidade familiar, da criança, do adolescente e do idoso.
O valor jurídico consubstanciado no princípio também foi projetado no Código Civil e está presente em diversos dispositivos referen= tes ao direito de família, como no artigo 1.566, inciso III, que dispõe sobre o dever de mútua assistência entre os cônjuges; no artigo 1.724,[27]= a> que amplia essa obrigatoriedade para os companheiros; bem como no artigo 1.= 694,[28]= a> que norteia o dever de alimentos entre parentes ou cônjuges, para além do término da sociedade conjugal. Trata-se, de acordo com Paulo Lôbo (2007,= p.39), de “vínculo de sent= imento racionalmente guiado, limitado e autodeterminado que compele à ofert= a de ajuda, apoiando-se em uma mínima similitude de certos interesses e objetivos, de forma a manter a diferença entre os parceiros na solidariedade”. Tal princípio é também crucial para se compreender o objeto do presente ensaio, ou seja, a usucapião familiar.
Ponto que tem gerado esp= ecial controvérsia diz respeito ao requisito legal do “abandono do lar”, cuja interpretação requer atenta análise do princípio da responsabilidade no bojo da família, como corolário da solidariedade familiar. Explica-se: à vista da literalidade do art. 1.240-A, em infeliz escolha pelo legislador, ao remete= r-se à situação na qual o ex-cônjuge ou ex-companheir= o “abandonou o lar”, questio= nou-se se o legislador não teria se lançado na contramão de t= oda a evolução pela qual tem passado o direito de família = nos últimos anos, ressuscitando a incursão de culpa na ruptura do casamento e da união estável, em evidente retrocesso hermenêutico. Afinal, a Emenda Constitucional n. 66, de 2013, que atribuiu nova redação ao art. 226, § 6º, da C.R., rechaçou a perquirição de culpa na dissolução da sociedade conjugal.
Nessa perspectiva, h&aac= ute; quem tenha considerado que tal modalidade de usucapião trouxe de vol= ta uma reminiscência do viés punitivo para aquele que abandona a família, reavivando a equivocada ideia de culpa pelo fim do relacionamento afetivo,[29]= a> o que gerou questionamentos quanto à constitucionalidade do dispositiv= o. Em sentido contrário, porém, encontram-se aqueles que defendem que deve ser dado à lei o sentido mais benéfico quanto &agrav= e; tutela dos direitos fundamentais, o que não se coaduna com o ressurgimento da perquirição de culpa pela ruptura da convivência do casal, sob pena de desvirtuamento da funcionalização das famílias, uma vez que “o vínculo conjugal é vivencialmente (des)constituído= 8221;.[30]= a> A essa última corrente o presente ensaio se filia.
À luz dos valores constitucionais, a expressão “abandono do lar” deve ser interpretada, tão somente, como fato gerador da inversão da posse, a ponto de transformar o condômino em possuidor exclusivo do b= em, não havendo espaço, no sistema atual, para que tal modalidade= de usucapião seja objeto de punição ao cônjuge que = abandona a relação, por qualquer motivo. Tal interpretaçã= ;o se dá em consonância com a função do instituto, privilegiando-se o exercício da posse em prol de um dos membros da família, em nome do direito social à moradia e, notadamente, = do princípio da solidariedade familiar.
É dizer, como mod= alidade de aquisição originária de direitos reais, na apreensão da usucapião familiar, é preciso atentar à exigência de funcionalidade social que se atribui ao exercício de direitos patrimoniais, evitando-se qualquer retorno ind= evido à discussão sobre a culpa no término da relaç&a= tilde;o, ou revelando sanção pelo rompimento de vínculos de natureza afetivo-amorosa (Tepedino, Teixeira, 2023, p. 170). Percebe-se, portanto, que a arguição de vício de inconstitucionali= dade do instituto não subsiste ao se adotar orientação no sentido de não encarar a usucapião familiar como uma sanção, mas sim como forma de concretização da autonomia da posse e do princípio da solidariedade, que permeia as relações familiares.[31]= a>
A
interpretação do dispositivo deve levar em conta a
insuficiência do método da subsunção e do brocar=
do
“in claris no fit=
interpretatio” na experiência brasile=
ira
(Peçanha; Dana, 2023, p. 199-224), que não se poderia sustent=
ar,
uma vez que os próprios conceitos jurídicos são fluido=
s e
se devem vincular à legalidade constitucional, de modo a se extrair o
significado da norma levando em conta o dinamismo e a complexidade do
ordenamento, em interpretação evolutiva da lei (Perlingieri, 2002, p. 70). Assim, com o fito de n&ati=
lde;o
se remontar acriticamente ao passado, o artigo =
deve
ser interpretado à luz do atual art. 226, § 6º, da
Constituição Federal, com redação dada pela EC
nº 66/2010, a partir da qual sua aplicação passa a ser
excepcional e restrita, na medida do esvaziamento da análise da culpa
também para fins de separação (Tepedino; Barboz=
a;
Moraes, 2014, p. 140).
Na
visão de Maria Helena Diniz (2017, p. 3),
o simples afastamento do lar, em sentido literal, não pode gerar a p=
erda
do direito de propriedade sobre a meação do imóvel que=
lhe
caberia, devendo haver a junção do abandono (cujo sentido
será esmiuçado a seguir) com o requisito da posse qualificada,
exercida com animus domini, de maneira m=
ansa,
pacífica e de forma pública, a fim de conduzir à perda=
do
domínio. Das lições de Orlando Gomes (2004, p. =
189) se extrai que o abandono, como causa da perda da
propriedade, conforme descrito no artigo 1.275, III, do Código Civil,
não deve ser interpretado de forma isolada, a fim de resultar na per=
da
baseada tão somente na renúncia sobre o imóvel. Sendo =
essa
última um simples ato abdicativo, não pode ter como
consequência a transferência da propriedade, senão
acompanhada da posse qualificada do usucapiente.
Lançou-se
a doutrina, então, ao desenvolvimento do requisito do
“abandono”, rechaçando a análise subjetiva associ=
ada
à noção de culpa pelo término da
relação afetiva. Consolidou-se o entendimento de que a
aferição desse requisito deveria ater-se à esfera obje=
tiva
do abandono, visando a regularizar a
aquisição da propriedade plena pelo ex-cônjuge ou
ex-companheiro que permaneceu no imóvel, em consonância com o
princípio da utilidade social, consubstanciado no direito à
moradia (Diniz, 2017, p. 3).
Acontece
que, conforme advertido pelos estudiosos do tema, a expressão
também não pode ser interpretada em sentido meramente objetiv=
o de
simples “distanciamento físico do imóvel”, porque,
muitas vezes, o consorte que permanece na posse direta do bem não
necessita dele para moradia, não permanece prestando os cuidados
necessários à prole etc.,[32]
ao passo em que aquele que “abandona” o lar pode tê-lo fe=
ito
por razões que podem ser alheias a sua vontade. Basta pensar no caso=
da
mulher vítima de violência doméstica que é obrig=
ada
a ausentar-se de casa, para manter sua integridade e a de seus filhos prote=
gida.
Da mesma forma, o abandono não poderia representar a mera saí=
da
do lar, na medida em que sequer se exige ao relacionamento amoroso a
coabitação sob o mesmo teto, podendo cada família
estabelecer o arranjo que melhor atenda às necessidades de seus memb=
ros.[33]
À
luz de tais circunstâncias, propôs-se interpretaçã=
;o
evolutiva do requisito, alinhado ao sentido mais benéfico aos direit=
os
fundamentais tutelados pela norma.[34]
Assim, não cabe interpretar o requisito enquanto retorno descabido
à análise de culpa pelo deslinde da relação
afetiva, já há muito superada, nem como requisito objetivo
genérico concernente ao distanciamento físico do imóve=
l, o
que, em certos casos, poderia violar os reais objetivos da norma, que visa a
promover a autonomia da posse no seio das relações familiares=
, em
que impera, em especial, a solidariedade social. Por outro lado, pode-se di=
zer
que um sentido funcionalizado da expressão exige sua compreens&atild=
e;o
como – não só abandono do bem, mas especialmente –
“abandono familiar”, pautado no desamparo da família, por
meio do não atendimento das responsabilidades familiares e parentais
verificadas concretamente.[35]
Nessa
direção, aprovou-se o Enunciado n. 499 da V Jornada de Direito
Civil, em 2012, de cuja leitura se extrai o seguinte:
[...] o requisito
‘abandono do lar’ deve ser interpretado de maneira cautelosa,
mediante a verificação de que o afastamento do lar conjugal
representa descumprimento simultâneo de outros deveres conjugais, tais
como assistência material e sustento do lar, onerando desigualmente
aquele que se manteve na residência familiar e que se responsabiliza
unilateralmente pelas despesas oriundas da manutenção da
família e do próprio imóvel, o que justifica a perda da
propriedade e a alteração do regime de bens quanto ao im&oacu=
te;vel
objeto de usucapião.
Vale
dizer, se a autonomia da posse e o princípio da solidariedade famili=
ar
constituem-se nos principais fundamentos por trás da usucapião
familiar, a leitura do “abandono do lar”, indicado por lei como
pressuposto à aquisição do direito, deve igualmente le=
var
em conta tais vetores basilares. Dessa forma, passa a ser essencial a
verificação da concreta relação familiar,
buscando-se identificar se houve por aquele que se afastou em definitivo do=
lar
conjugal ou convivencial a efetiva ausênc=
ia de
tutela da família, a onerar aquele que permanece no bem e assume soz=
inho
as responsabilidades financeiras relacionadas à família e ao
imóvel. Em que pese tenha apresentado ponto em alguma medida questio=
nável
– a exigência de descumprimento de deveres conjugais, genericam=
ente
–, a assertiva posta no supramencionado Enunciado abriu margem para o
desenvolvimento de uma concepção funcional do requisito legal,
associada à ausência de tutela da família.
Com o intuito de esclare= cer ainda mais o entendimento, foi aprovado, em 2015, o Enunciado n° 595 da= VII Jornada de Direito Civil, do Conselho da Justiça Federal, no sentido= de que o abandono mencionado no artigo da usucapião familiar consiste no abandono voluntário da posse do imóvel, somado ao desemparo da família, frente à ausência de tutela à entidade familiar, não importando em revisitação da culpa pelo = fim relacionamento.[36] Trata-se do desatendimento da responsabilidade familiar exigida pelo princípio da solidariedade familiar, que escala até o abandono voluntário = da posse do bem comum por um dos cônjuges ou companheiros, que passa a s= er exercida exclusivamente por aquele que permanece residindo no lar, normalme= nte com sua prole.[37]
Dessa
forma, verifica-se que a usucapião pró-família n&atild=
e;o
se constitui em pena pelo fim do casamento, nem requer análise de
eventual “abandono culposo”, mas exige a junção do
abandono voluntário do bem – que afasta o inconveniente relati=
vo
aos casos de violência doméstica, reconhecendo-se que a
vítima que se ausenta do imóvel é impelida a
fazê-lo, em prol de sua integridade e seus filhos –, com a
ausência de tutela da família por aquele que se ausentou integ=
ralmente
de suas responsabilidades.[38]
Diante
disso, no que tange à apreensão do sentido da expressão
que mais se coadune com a legalidade constitucional, defende-se que, associ=
ado
à posse qualificada daquele que permanece no bem pelo prazo de dois
anos, a noção de abandono deve circunscrever a
atenção do intérprete a aspecto objetivo patrimonial (=
Tepedino;
Monteiro Filho; Renteria, 2023, p. 145), associado ao desamparo em relação ao=
bem e
à família. Ambas as circunstâncias devem se fazer prese=
ntes
cumulativamente no caso concreto. Qualquer interpretação em
sentido contrário violaria os princípios norteadores do direi=
to
de família contemporâneo, que tem como fundamentos as no&ccedi=
l;ões
de responsabilidade e cuidado, muito caras à promoção =
da
família funcionalizada.
Em
consequência, se o cônjuge que se afastou fisicamente do lar
permanece praticando atos próprios da posse indireta, como ocorre qu=
ando
do pagamento de quotas condominiais, taxas e tributos incidentes sobre o be=
m,
subsiste o vínculo possessório, afastando-se, portanto, a
caracterização da posse ad usucapione=
m
pelo consorte que mantém a posse direta. Da mesma maneira, se n&atil=
de;o
restar configurada a ausência de tutela da família, não
há que se falar em “abandono de lar”, sendo plenamente
possível cogitar da permanência de apenas um deles no
imóvel, assumindo as responsabilidades financeiras daí
decorrentes, ao passo em que aquele que se ausenta fisicamente do bem forne=
ce
auxílio financeiro, consagrando o princípio da solidariedade
familiar.[39]
A
rigor, com o fim do relacionamento, é compreensível que possa
ocorrer o afastamento físico de um dos ex-conso=
rtes
como ato de mera tolerância, em prol da família que pode
não ter outro lugar para morar, senão aquele onde residem.[40]
Diante de circunstâncias tais, não havendo o desamparo familia=
r,
mas apenas situação em que o cônjuge permite a
presença de sua família no imóvel, simplesmente por
entender ser a melhor opção para aqueles que ali ficaram,
não há que se falar em usucapião. Mesmo porque, de aco=
rdo
com o art. 1.208 do Código Civil,[41]
os atos de mera permissão ou tolerância não induzem a
posse.[42]
Em linha com tais ideias, aprovou-se o Enunciado n. 664, da IX Jornada de
Direito Civil reconhecendo a necessidade de que aquele que se mantém=
no
bem exerça com exclusividade a posse do imóvel: “O praz=
o da
usucapião contemplada no art. 1.240-A só iniciará seu
curso caso a composse tenha cessado de forma efetiva, não sendo
suficiente, para tanto, apenas o fim do contato físico com o
imóvel”.
Afeito
ao entendimento funcional do instituto, o anteprojeto de reforma do
Código Civil prevê, com a inclusão do parágrafo
5º ao aludido dispositivo,[43]
que o abandono do lar seja interpretado como o abandono voluntário da
posse do imóvel, com o fim de enaltecer a proteção da =
família
que restou residindo no imóvel, afastando qualquer abordagem que pud=
esse
retomar a averiguação de culpa pelo fim do casamento ou da
união estável.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como se pôde const=
atar, a partir da promulgaçã=
;o da
Constituição da República de 1988, o Direito brasileiro
procurou otimizar o aproveitamento econômico dos bens, por meio da
funcionalização de seus institutos. Privilegiou-se a posse de
bens para fins de moradia ou trabalho, até mesmo em detrimento da
propriedade, quando a função social dessa última
não restar observada. A usucapião é instituto que evidencia, com
grande clareza, a autonomia e a função social do fenôme=
no
possessório. Afinal, preenchidos os requisitos legais, opera-=
se a
transmutação de um fato em um direito, consistente na
aquisição da propriedade, como forma jurídica para ade=
quar
o conflito entre a posse funcionalizada e a propriedade que não cump=
re
sua função social.
Na mesma esteira de funcionalização, a
concepção de família prevista na
Constituição da República de 1988 deixou de ter valor
intrínseco, sendo merecedora de especial tutela ao se configurar como
instrumento para a promoção da dignidade de seus membros. Nes=
sa
linha, o princípio da solidariedade ganha espaço no ambite
familiar, de modo que seus integrantes se corresponsabilizem uns pelos outr=
os, notadamente
diante de eventual vulnerabilidade. O princípio abre margem para a
aplicação de institutos vocacionados à salvaguarda de =
um
ou de alguns de seus membros, em determinadas condições, como
ocorre quanto à usucapião familiar.
Ao propiciar a aquisição da propriedade integral do imóvel comum àquele ex-consorte que permaneça residind= o no bem – exercendo, portanto, uma posse funcionalizada –, o art. 1.240-A consagra o direito fundamental à moradia, em detrimento do domínio despido de função social, na medida em que haj= a o “abandono familiar”, entendido funcionalmente como o abandono voluntário da posse do imóvel, somado ao desamparo da família. Ou seja, consagra-se a autonomia da posse frente à propriedade que não cumpra uma função social, circunstância observada no abandono do bem, juntamente com a ausência de tutela da entidade familiar, o que não importa, va= le dizer, em uma espécie de punição àquele que pôs fim à relação afetiva, evadindo-se do lar conjugal, nem em revisitação de perquirição da culpa pelo fim do relacionamento afetivo, já há muito superada pela Emenda Constitucional n. 66, de 2013, que deu nova redaçã= ;o ao art. 226, § 6º, da Constituição da Repúbl= ica.
Essa é a ú=
nica
interpretação possível do instituto e de seus requisit=
os
legais, com base em seu perfil funcional que, ao mesmo tempo que consagra a
autonomia da posse e sua função social, marca a finalidade
precípua de solidarizarão no seio das relações
familiares, conformando a usucapião familiar à legalidade
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* Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade do Estado= do Rio de Janeiro (UERJ). Membro efetivo da Comissão de Direito Civil do Conselho Seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/= RJ).
** Mestranda em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pós-grad= uada em Direito das Famílias e das Sucessões pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
[1] A respeito, v. Moraes = (2010, p. 207 et. seq.): “No dir= eito de família, a família-instituição do Cód= igo Civil de 1916, protegida como um bem em si mesmo, a despeito da realização pessoal de seus integrantes, é reconstruída na Constituição Federal de 1988 em virtud= e da afirmação da proteção integral da crianç= a e da igualdade entre os cônjuges, entre os filhos e mesmo entre as diferentes estruturas familiares. Trata-se da família-instrumento, funcionalizada ao livre desenvolvimento da personalidade de cada um de seus membros, ou família democrática, na medida em que garante a liberdade, a igualdade e o direito de voz entre seus membros”.
[2] CC/2002, “Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o l= ar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-&aacut= e; o domínio integral, desde que não seja proprietário de o= utro imóvel urbano ou rural. § 1º O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.̶= 1;
[3] E, ainda: “a principal função da família e sua característic= a de meio para a realização dos nossos anseios e pretensões. Não é mais a família um fim em si mesmo, conforme j&aa= cute; afirmamos, mas, sim, o meio social para a busca de nossa felicidade na rela= ção com o outro” (Gagliano; Pamplona Filho, 2011<= /a>, p. 98).
[4] Nesse sentido: “A família como formação social, como sociedade natural, é garantida pela Constituição (...) não como portadora de um interesse superior e superindividual, mas sim, em fun&ccedi= l;ão da realização das exigências individuais, como lugar on= de se desenvolve a pessoa” (Perlingieri, 2008= a>, p. 971-972).
[5] Nessa direção, aliás, “[...] todos as hipóteses= que vêm agitando os Tribunais e que dizem respeito ao papel da culpa devem ser analisadas à luz de uma espécie de carta de alforria constitucional” (Tepedino, 1988, p. 32-5= 0).
[6] Tepedino (2008, p. 22), de cujas lições se pode extrair que “trata-se, em uma palavra, de estabelecer novos parâmetros para= a definição de ordem pública, relendo o direito civil à luz da Constituição, de maneira a privilegiar, insista-se ainda uma vez, os valores não-patrimoniais e, em particul= ar, a dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento da sua personalidade, os direitos sociais e a justiça distributiva, para cujo atendimento dev= e se voltar a iniciativa econômica privada e as situações jurídicas patrimoniais”.
[7] Ao conteúdo que= se deve atribuir à expressão “abandono de lar”, utilizada pelo dispositivo legal, reserva-se espaço próprio no presente estudo, quando da análise dos requisitos legais da usucapião familiar em perspectiva funcional.
[8] De acordo com Pietro Perlingieri (2002, p.94), a função se contrapõe e, ao mesmo tempo, conjuga-se à estrutura das relações ou fa= tos jurídicos. Na síntese do autor: “pode-se dizer que estrutura e função respondem a duas indagações = que se põem em torno ao fato. O ‘como é?’ evidencia a estrutura, o ‘para que serve?’ evidencia a função.” Na mesma direção: Konder, 2017, = p. 39-59.
[9] De acordo com Orlando Gomes (2012, p.120): “A partir do momento em que o ordenamento jurídico reconheceu que o exercício dos poderes do proprietário não deveria ser protegido tão somente para satisfação do seu interesse, a função da propriedade tornou-se social.” Para pormenorizada análise da matéria, v. Tepedino, 2018, p. 477-506.
[10] “A função social da propriedade corresponde a limitações fixadas no interesse público e tem por finalidade instituir um conceito dinâmico de propriedade em substituição ao conceito estático, representando uma projeção da reação anti-individualista” (Fachin, 1988, p. 19-20).
[11] “A posse, em no= sso direito positivo, não exige, portanto, a intenção de d= ono e nem reclama o poder físico sobre a coisa. É a relação de fato entre a pessoa e a coisa, tendo em vista a utilização econômica desta. É a exteriorização da conduta de quem procede como normalmente ag= e o dono. É a visibilidade do domínio” (Pereira, 2019, p. 1= 7).
[12] Nessa
direção, o STJ já afirmou que “a
função social é base normativa para a
solução dos conflitos atinentes à posse”. Desse
modo, posicionou-se a Corte no sentido de que, “para fins de
reconhecimento da posse, também é necessário a busca p=
elo
atendimento de sua função social, tendo como escopo a atual
codificação e seu espírito de cláusulas gerais e
conceitos indeterminados, em alinhamento com a Carta da República, q=
ue
trouxe, como pilar, a dignidade da pessoa humana, assegurando a tutela &agr=
ave;
moradia, ao trabalho, ao aproveitamento do solo e ao mínimo existenc=
ial;
sendo a posse, por isso, uma extensão dos bens da personalidade̶=
1; (STJ,
4ª T., REsp 1.296.964/DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julg. 18.10.2016).
[13] Pietro Perlingieri destaca a importân=
cia de
uma análise conjunta, unitária, dos perfis estrutural e
funcional: “Pertanto, da un p=
unto
di vista generale, va ribadito che la natura giuridica di un istituto consi=
ste
della sintesi dell’aspetto strutturale e dell’aspetto funzional=
e:
ogni istituto giuridico dev’essere studiato sotto entrambi questi pro=
fili”
(Perlingieri, 2004, p. 28).
[14] “O direito &agr= ave; moradia vai muito além do direito de propriedade, pois só peq= uena parcela da população é proprietária de imóveis, como também não tem condição financeira para adquiri-las. A grande maioria dos cidadãos vive em imóveis alugados, quando tem o privilégio de poder pagar alug= uel. Grande contingente vive em favelas. A esses não proprietários é que, em geral, destina-se a proteção do direito &agr= ave; moradia, que deve ser sanado pelo Estado, à medida do possíve= l, assegurando esse direito com o tempo” (Azeve= do, 2013, p. 376).
[15] São estes os ensinamentos de Ricardo Calderon e Michele Mayumi (2015, p.38): “mostra-se viável sustentar a constitucionalidade da usucapião familiar como instrumento que vise proteger a mais adequada utilização concreta do imóvel, o que retrataria o atendimento escorreito da sua função social, apontando, inequivocamente, para a prevalência do direito à moradia como acesso ao direito de propriedade.”
[16] É o que lecion= am Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barboza e Maria Celina de Bodin (2014, p.5= 0), ao afirmarem: “A interpretação do termo "ex-cônjuge" exige particular cautela. Embora, como dispõe o art. 197 do Código Civil, não corra a prescrição entre cônjuges, a ratio elo dispositivo perm= ite afirmar que desde a separação ele fato do casal já começaria a correr o prazo desta modalidade de usucapião. Isso porque o impedimento para a prescrição entre pessoas casadas = visa à proteção ela paz doméstica, motivação que deixa de existir uma vez rompida a vida comum.”
[17] Nessa direção também, cfr. Calderon; Mayumi, 2015, p. 42.
[18] Eis a redação proposta ao dispositivo pela comissão de juris= tas responsáveis pelo anteprojeto de reforma do Código Civil: = 220;Art. 1.240-A Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse com intenção de dono, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzento= s e cinquenta metros quadrados), cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-convivente que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á a propriedade integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. § 1. O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. § 2. O prazo mencionado neste dispositivo, deve ser contado da data do fim da composse existente en= tre os ex-cônjuges ou os ex-conviventes. §3. Presume-se cessada a composse quando, a partir do fim da posse com intenção de don= o, em conjunto, o ex-cônjuge ou ex-convivente deixa de arcar com as desp= esas relativas ao imóvel. § 4. As expressões ex-cônjuge= e ex-convivente, contidas neste dispositivo, correspondem à situa&cced= il;ão fática da separação, independentemente de divór= cio ou de dissolução de união estável. § 5. O requisito do abandono do lar deve ser interpretado como abandono voluntário da posse do imóvel, não importando em averiguação da culpa pelo fim da sociedade conjugal, do casam= ento ou da união estável.”
[19] Enunciado 501, da V Jornada de Direito Civil da Conselho da Justiça Federal: “As expressões ‘ex-cônjuge’ e ‘ex-companheiro= 217;, contidas no art. 1.240-A do Código Civil, correspondem à situação fática da separação, independentemente de divórcio”.
[20] Acerca do ponto, afir= ma-se que o instituto “é, antes que de direito real, de direito de família, sobre o que se compreende por entidade familiar. Por isso q= ue, de um lado, e diante do quanto assentado pela Suprema Corte, inexiste impedimento a que, em caso de união homoafetiva, e havido o abandono= , se possa consumar a usucapião familiar. De outro, em relaç&atild= e;o às uniões plúrimas, do mesmo modo impende verificar se= se lhe reconhece a natureza de entidade familiar, aqui anotando-se o julgament= o do Tema 529 no SFT” (Godoy, 2022, p. 323-338).
[21] E prosseguem: “= [...] estão localizadas nas áreas rurais as maiores dificuldades pa= ra a sobrevivência, tendo em vista a escassez dos recursos disponív= eis em áreas rurais e o próprio trabalho braçal que na mai= oria das vezes é o sustento da família. É nesse cená= rio, que o abandono do lar pelo cônjuge, torna-se mais gravoso. O legislad= or ao conferir um tratamento diferenciado àqueles que vivem na zona rur= al, o fez de uma forma discriminatória e certamente prejudicial aos que = se encontram na situação prevista pelo art. 1.240-A do CC/2002” (Souza; Thebaldi, 2015, p. 195-215).
[22] Nos termos do art. 19= 1 da Constituição da República de 1988, “aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, poss= ua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, á= ;rea de terra, em zona rural, não superior a cinquenta hectares, tornando= -a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade”. O dispositivo do Código Civil reproduziu o dispositivo constitucional.
[23] C.R./1988, “Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua famí= lia, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. § 1º O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do es= tado civil. § 2º Esse direito não será reconhecido ao me= smo possuidor mais de uma vez. § 3º Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.” O art. 1.24= 0 do Código Civil repetiu a disposição constitucional.
[24] Nessa direção, Guilherme Calmon ao defender que “a partir dos interesses que se pretendeu tutelar por ocasião da ediç&atild= e;o da Lei 12.424/2011, percebe-se que o mais importante era que o imóvel usucapiendo tivesse a sua posse direta compartilhada entre os ex-cônjuges/companheiros. O fato de o imóvel estar registrado = em nome de ambos ou apenas em nome do cônjuge que abandonou o lar, demon= stra-se irrelevante. O importante é que a posse di= reta fosse compartilhada por ambos, haja vista que o imóvel objeto da controvérsia servia de base para a entidade familiar outrora desfeita” (Gama, 2016, p. 371 - 402).
[25] Segundo Maria Helena = Diniz (2017, p.8), “para essa usucapião a coisa hábil é especial (res habilis specialis) pois recai apenas na quota condomin= ial do ex-cônjuge ou ex-companheiro que se ausentou do lar, apresentando negligência na conservação de sua posse.”
[26] Nesse sentido: “= ;A transmudação da posse, para que resulte na posse ad usucapionem, há de se manifestar por atitudes externas, que demonstrem inequivocamente a ·oposição ao titular do domínio, a exemplo da recusa na devolução da coisa no prazo estipulado. Isto porque o animus domini independe da convicção de dono, eis que aquele que possui como se fosse titular do domínio, sabendo não o ser, é possuidor de má-fé. Traduz-se o animus domini "no comportamento público do possuidor acerca da coisa, ao modo do dono, tal como, e.g= ., o ato de reconstruir a casa que ruiu, para manter-se na utilizaç&atild= e;o do imóvel” (Tepedino; Barboza; Moraes, 2014, p. 530).
[27] CC/2002, “Art. 1.724. As relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos.”
[28] CC/2002, “Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível = com a sua condição social, inclusive para atender às neces= sidades de sua educação. § 1º Os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pe= ssoa obrigada. § 2º Os alimentos serão apenas os indispensáveis à subsistência, quando a situação de necessidade resultar de culpa de quem os pleiteia.”
[29] Nessa linha de interpretação, Marco Aurélio Bezerra de Melo (2021, p.134), ao defender que “a norma traz consigo também um viés de penalidade para aquele que abandona a família e isso recrudesce a vetusta e equivocada percepção da importân= cia de imputar culpa a alguém pelo fim de um relacionamento afetivo. A Emenda Constitucional n° 66, que dispensou qualquer requisito pré= ;vio para o divórcio, representou um avanço, permitindo que o término da relação coincida com o fim do afeto entre o casal, desatrelando essa questão, a propósito, das influências religiosas”.
[30] Nesse sentido: “= ;No seio desta perspectiva não se= pode aproximar a locução abandono do lar às matizes = de um tempo no qual a dissolução das relações era exclusivamente pelo desfazimento do casamento, sempre a partir da conduta culposa de um dos cônjuges. [...] Não parece correto interpret= ar o termo abandono, nesta singra, como mera saída temporária do l= ar ou mesmo mudança de endereço, mormente pela flexibilidade da estrutura familiar antes explicitada. O abandono é, efetivamente, o movimento peremptório e unidirecionalmente manifestado de abdicar por ação ou omissão aos vínculos afetivos, cindindo= -se a conexão com núcleo intersubjetivo de convergência afetiva. Compreende-se assim como a interrupção do projeto de vida constituído pela coletividade de sujeitos ligados pelo afeto, retirando-se aquele que abandona o lar de todos os vínculos que o conectavam, seja eles financeiros, afetivos ou mesmo de íon livre qu= e se desatrela do papel desempenhado naquele conteúdo coletivo de direito= s. Deve-se interpretar a norma, quanto a este tema, em convergência com sentido mais benéfico aos direitos fundamentais que, mediatamente, pretende-se tutelar. Não há que se falar em conceito apriorístico de abandono, demandando-se interpretação casuística construtiva” (Fachin; Gonçalves, 2014= , p. 641).
[31] Na mesma direção, defendendo a constitucionalidade da usucapião familiar, desde que interpretada de forma funcional: “[...] mostra-se viável sustentar a constitucionalidade da usucapião familiar = como instrumento que vise proteger a mais adequada utilização conc= reta do imóvel, o que retrataria o atendimento escorreito da sua fun&cced= il;ão social, apontando, inequivocamente, para a prevalência do direito à moradia como acesso ao direito de propriedade.” (Calderon; Mayumi, 2015, p. 38)
[32] “[...] em muitos casos, o consorte que resta no imóvel não é o que necessita dele para a moradia, não é o que está com a prole, não é o que foi desamparado pelo outro, não é o que está fazendo frente às responsabilidades parentais; por tudo isso, não é o que será merecedor da titularidade plena do lar conjugal” (Calderon; Mayumi, 2015, p. 48).<= /p>
[33] Precisamente, nessa direção: “O termo abandono não consiste simplesm= ente na saída do lar – mesmo porque não há a obrigatoriedade da coabitação, tendo em vista a possibilidade= de cada casal arquitetar a melhor forma de estabelecer a comunhão plena= de vida” (Tepedino; Teixeira, 2023, p. 169).
[34] “Deve-se interpretar a norma, quanto a este tema, em convergência com sentido = mais benéfico aos direitos fundamentais que, mediatamente, pretendeu-se tutelar. Não há que se falar em conceito apriorístico = de abandono, demandando-se interpretação casuística construtiva” (Fachin; Gonçalves, 2014, p. 641).
[35] É dizer: ̶= 0;o abandono aqui se erige quando o rompimento, havido com a separação de fato, se marque ainda pelo que já se disse ser real irresponsabilidade em relação à família que permanece na residência, assim a completa falta de atendimento ao dever de assistência material por parte do ex-cônjuge ou companheiro. É a interrupção da vida comum, qualificada pela ausência de assistência material e mora, ‘renegado o dever de solidariedade’ para com o núcleo familiar, para com o cônjuge ou companheiro” (Godoy, 2022, p. 323-338).
[36] Eis o teor do Enuncia= do n° 595 da VII Jornada de Direito Civil: “O requisito "abando= no do lar" deve ser interpretado na ótica do instituto da usucapi&= atilde;o familiar como abandono voluntário da posse do imóvel somado à ausência da tutela da família, não importando = em averiguação da culpa pelo fim do casamento ou união estável. Revogado o Enunciado 499.” Em sua justifica, lê= -se: “O Enunciado proposto tem o objetivo de esclarecer a interpretação do art. 1.240-A, facilitando a sua aplicação. Afasta-se, com a redação adotada, a investigação da culpa na dissolução do vínculo convivencial e marital, objetivo este também buscado = pelo legislador constitucional com a Emenda Constitucional 66/10. Não há razão para introduzir na usucapião um requisito que= diz respeito ao direito de família, sendo certo que a doutrina especiali= zada no direito de família também tem procurado afastar tal análise.” O Enunciado revogou o anterior sobre o mesmo tema (Enunciado n. 499), que condicionava a aquisição da proprieda= de na modalidade prevista no art. 1.240-A ao implemento de seus pressupostos anteriormente ao divórcio.
[37] Em outros termos, conforme ensinam Gustavo Tepedino e Ana Carolina Brochado Teixeira (2023, p.169): “sugere-se que o abandono de lar seja interpretado como ‘abandono familiar’, traduzido como o descumprimento do dever de solidariedade familiar, não atendendo às responsabilidades familiares e parentais incidentes no caso concreto, por meio do desamparo da família e da falta de assistência que possa trazer dificuldades materiais e afetivas para os entes abandonados.”
[38] “Não raro as vítimas de violência doméstica não representam seus agressores por temer o agravamento do conflito familiar, e, com o intuito de proteger a si= e eventual prole, saem do lar conjugal. Assim, a interpretação acerca do requisito da posse direta deve ser orientada para a finalidade de tutelar a entidade familiar e o conjunto de direitos que compõe a sua esfera existencial mínima, não para coagi-la a permanecer onde sequer a sua integridade física e moral é respeitada” (Calderon; Iwasaki, 2015, p. 44).
[39] Em interessante caso julgado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, revelou-se relev= ante o fato de um dos ex-cônjuges permanecer fornecendo auxílio financeiro àquele que permaneceu na posse do bem, a desconfigurar a usucapião familiar. Veja-se: “In casu, restou evidenciado que a parte ré permaneceu na posse direta e exclusiva do imóvel não por abandono do lar pelo autor, mas por acordo entre as partes, tendo sido consignado na ata da audiência, na ocasião da decretação do divórcio, que as partes concordavam com a decretação do divórcio, já que estavam separado= s de fato sem possibilidade de reconciliação, e que a partilha dos bens seria discutida pela via própria. Observa-se ainda que, nos aut= os da ação de partilha de bens, posterior ao divórcio, a parte ré afirma concordar com a partilha do imóvel, ressaltando-se, inclusive, que o autor realizou a prestação de alimentos à ré, tendo ele, portanto, fornecido assistên= cia financeira à mesma, consoante acordo entabulado pelas partes em ação de alimentos. Hipótese em que não se vislu= mbra o suposto abandono de lar, mas sim que o autor permitiu que a recorrente permanecesse morando no imóvel sem a partilha, o que descaracteriza o alegado abandono e a prescrição aquisitiva no presente caso concreto” (TJRJ, 21ª C.C., Ap. Cív. 0017184-67.2019.8.19.0205, Rel. Des. Fabio Uchoa Pinto de Miranda Montenegr= o, julg. 10.8.2023).
[40] Nas palavras de Maria Berenice Dias (2024),
“Quem lida com as questões emergentes do fim dos víncul=
os
afetivos sabe que, havendo disputa sobre o imóvel residencial, a
solução é um afastar-se, lá permanecendo o outr=
o,
geralmente aquele que fica com os filhos em sua companhia. Essa, muitas vez=
es,
é a única saída até porque, vender o bem e repa=
rtir
o dinheiro nem sempre permite a aquisição de dois imóv=
eis.
Ao menos assim os filhos não ficam sem teto”.
[41] CC/2002, “Art. 1.208. Não induzem posse= os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade.”
[42] Esse foi, aliá= s, o entendimento do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em julgado recente, em que se analisava a alegação de usucapião familiar por abandono do lar pela ex-esposa. No caso, entendeu-se o seguint= e: “Insurgência do apelante em relação à partilha, alegando usucapião familiar por abandono do lar. Sentença que se mantem. Apelada que não abandonou o lar, mudando-se devido a impossibilidade da continuidade da vida em comum. Permanência em local próximo, mantendo contato com os filhos. Ausência de comprovação dos demais requisitos para aquisição do imóvel pela usucapião manuten&cced= il;ão da sentença. Desprovimento do recurso” (TJRJ, 13ª C.C., A= p. Cív. 0000830-45.2019.8.19.0082, Rel. Des. Maria da Gloria Oliveira Bandeira de Mello, julg. 19.10.2023). No mesmo sentido, em outro caso: R= 20;o apelado deixou o lar conjugal em razão do término do relacionamento das partes regularizando a situação de forma judicial através de ação de dissolução de união estável e partilha amigável de bens, ficando o imóvel na posse e administração da ex-companheira, e não em razão do desinteresse ou abandono do bem, condição esta que não se enquadra no conceito ‘abandono do imóvel’ exigido pela disposiçã= ;o do art. 1240-A do Código Civil. Enunciado n.º 595 da VII Jornad= a de Direito Civil” (TJRJ, 14ª C.C., Ap. Cív. 0028366-77.2015.8.19.0209, Rel. Des. José Carlos Paes, julg. 17.8.20= 23).
[43] A redação do parágrafo 5º do art. 1.240-A restou as= sim proposta no anteprojeto, em tramitação no Congresso Nacional = no momento de elaboração do presente trabalho: “O requisit= o do abandono do lar deve ser interpretado como abandono voluntário da po= sse do imóvel, não importando em averiguação da cul= pa pelo fim da sociedade conjugal, do casamento ou da união está= vel.”
Danielle Tavares Peçanha; Tathyanna Leand=
ra
Maria Batista Araújo de Souza Monteiro
Usucapião familiar como instrumento de
consagração da autonomia da posse e do princípio da
solidariedade familiar
&=
nbsp; &nbs=
p; &=
nbsp; &nbs=
p; Revista
da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 27, e615, p. 1-26, 2025. =
&nb=
sp; =
=
span>3
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DOI: 10.70622/2236-8957.2025.615 |
Submissão em: 18/06/2024 |
Aprovação em: 27/11/2024 e 28/11/2024
Editor: Antonio Aurelio Abi Ramia
Duarte