CÍCERO, HOMO PLATONICUS: A RECEPÇÃO DO PENSAMENTO PLATÔNICO NO DE LEGIBUS
Cicero, Homo Platonicus: the reception of platonic thought in De Legibus
Carlos
Gustavo Vianna Direito*
Resumo: A presente investigação tem como objetivo desenvolver uma análise do De Legibus de Cícero à luz da filosofia política de Platão. A par da adoção dos títulos idênticos aos adotados por Platão em suas duas obras da maturidade (A República e As Leis), Cícero interage com conceitos platônicos, aproximando-se de alguns e se afastando de outros. Cícero adota o diálogo filosófico em detrimento de uma abordagem na forma de longos tratados. Apesar de se inspirar nos ecos filosóficos helenísticos que, à época, inundavam a classe intelectual da República romana tardia, Cícero cria uma filosofia própria com os olhos voltados à realidade romana. Seguindo uma tendência que compreende toda a sua obra, Cícero busca integrar a tradição romana com a filosofia grega. Cícero recorre à base filosófica da lei proveniente da reta razão ínsita na natureza humana para construir uma república justa e efetiva ao seu presente e ao futuro. Contudo, Cícero não se coloca como um mero repetidor do pensamento desenvolvido pelas escolas filosóficas gregas, mas interage diretamente com Platão ao trazer para dentro de seu diálogo sobre as leis passagens e subsídios conceituais fornecidos pelas Leis de Platão. A ideia de que as leis romanas poderiam ter a dimensão cósmica e racional das leis propostas pelos filósofos será abraçada e desenvolvida por Cícero. Muitos comentadores de Cícero identificaram em sua obra a adoção do pensamento estoico, negligenciando uma leitura mais acurada para identificar uma maior proximidade conceitual entre os elementos trazidos no De Legibus e aqueles que são defendidos pelo estrangeiro Atenienses nas Leis de Platão. O presente trabalho se propõe a fazer uma leitura comparativa entre ambas as obras da maturidade de Cícero e de Platão. Apesar de ter chegado até nós de forma incompleta, o De Legibus representará um marco para a formação da tradição jurídica ocidental, sendo equivocada a leitura que resume Cícero a um mero repetidor da filosofia estoica grega.
Palavras-chave: Marco Túlio Cícero; De Legibus; Platão; As Leis; Direito Natural.
Abstract: The present investigation aims to develop an analysis of Cicero's De Legibus in light of Plato's political philosophy. Alongside adopting titles identical to those used by Plato in his two mature works (The Republic and The Laws), Cicero interacts with Platonic concepts, approaching some and distancing himself from others. Cicero adopts philosophical dialogue over an approach in the form of long treatises. Although inspired by the Hellenistic philosophical echoes that flooded the intellectual class of the late Roman Republic at the time, Cicero creates his own philosophy with his eyes turned to Roman reality. Following a trend that runs through all his work, Cicero seeks to integrate Roman tradition with Greek philosophy. Cicero draws on the philosophical basis of law derived from the right reason inherent in human nature to build a just and effective republic for his present and future. However, Cicero does not present himself as a mere repeater of the thinking developed by the Greek philosophical schools, but interacts directly with Plato by bringing into his dialogue on laws passages and conceptual insights provided by Plato's Laws. The idea that Roman laws could have the cosmic and rational dimension of the laws proposed by philosophers will be embraced and developed by Cicero. Many commentators on Cicero have identified in his work the adoption of Stoic thought, neglecting a more accurate reading to identify a greater conceptual proximity between the elements brought up in De Legibus and those defended by the foreign Athenians in Plato's Laws. This paper aims to make a comparative reading between both works from the maturity of Cicero and Plato. Although it has come down to us in an incomplete form, De Legibus represents a milestone in the formation of the Western legal tradition, and it is mistaken to read Cicero as a mere repeater of Greek Stoic philosophy.
Keywords: Marcus Tullius Cicero; De Legibus; Plato; The Laws; Natural Law.
INTRODUÇÃO
O propósito central da presente investigação consiste na análise da presença de Platão como pensador político no De Legibus de Cícero.[1]
Em Leg. II. 16-17, após Cícero dedicar um preâmbulo às leis religiosas que passará a expor, à semelhança do que fizera o estrangeiro ateniense nas Leis de Platão, Quintus, seu irmão mais novo, dirige-lhe uma provocação, afirmando que tanto o preâmbulo legal quanto as temáticas anteriormente abordadas por Cícero eram distintas daquelas tratadas por Platão. Segundo Quintus, a semelhança entre Cícero e Platão estaria limitada ao gênero do discurso (orationis genus).
Aparentemente, Cícero evita uma resposta direta, limitando-se a dizer, com certa modéstia, que a ninguém seria possível imitar Platão, mas tão somente traduzi-lo palavra por palavra, o que, contudo, não era o seu objetivo, pois o seu intento era o de ser ele mesmo (esse vellem meus).
Até o século XIX, grande parte dos comentadores acolheu a percepção de Quintus, no sentido de que, no De Legibus, “Platão não aparece senão raramente, figurando mais nos elogios que Cícero lhe dirige do que nos empréstimos de sua doutrina. É o estilo, sobretudo, o que Cícero imita de Platão” (Charpentier, 1840, IX).[2]
A presente pesquisa pretende revisitar o problema proposto por Quintus, orientando-se à elucidação das influências exercidas pelo pensamento platônico sobre as concepções jurídico-filosóficas desenvolvidas por Cícero em sua principal obra de filosofia do direito, voltando-se, além disso, à demonstração dos modos pelos quais Cícero as reinterpreta à luz do pragmatismo romano para engendrar uma síntese própria do direito natural, que lançará um marco teórico definitivo na tradição filosófica ocidental a partir da ideia fundamental de que o direito natural ostenta valor e primazia normativa sobre o direito positivo (Neschke-Hentschke, 1995, p. 234).[3]
O diálogo De Legibus, escrito por Marco Túlio Cícero (106-43 A.E.C.) durante o final da República romana, sedimentou um dentre os grandes pilares sobre os quais se desenvolveram as ulteriores reflexões filosóficas sobre o direito ocidental. Segundo destacam alguns autores, ainda que inconcluso e fragmentário, por meio do De Legibus, o mundo herdará o mais extenso tratado sobre a lei natural que se preservou da Antiguidade (Jackson-McCabe, 2001, p. 30).
No contexto em que Cícero deu início à redação do De Legibus, após a morte de Clódio (52 A.E.C) e antes da segunda guerra civil (49 A.E.C.), no final dos anos 50 A.E.C (Dyck, 2004, p. 5-7), a República romana sinalizava um estado de degradação moral, marcado por fortes acusações de corrupção eleitoral e o esgotamento de sua capacidade de dar vazão às lutas políticas que se travavam entre a aristocracia senatorial (os optimates) e os triúnviros, muitos dos quais simpáticos à linha populista inaugurada por Júlio Cesar, ostentando os sintomas da erosão institucional que redundaria na guerra civil e, posteriormente, conduziria o regime à ditadura de César, em um estado de coisas absolutamente contrário a tudo o que Cicero pregara durante o seu consulado em 63 A.E.C.
A percepção negativa sobre os rumos políticos acenados por Roma e a situação pessoal de Cícero, cuja influência política foi significativamente minada após seu regresso do exílio, em grande medida por conta de seu protagonismo na denúncia contra a conjuração de Catilina, conduziram-no a buscar na filosofia não apenas um consolo existencial, mas um meio de dar continuidade à sua obra, agora no largo espectro de um projeto pedagógico de reavivamento moral através da difusão de paradigmas de excelência fornecidos pela tradição e pelos costumes romanos,[4] com vistas não apenas ao passado, mas ao presente e ao futuro, propondo em seu argumento central desenvolvido no De Legibus um padrão de legalidade como critério de julgamento das verdadeiras leis.
As condições políticas e pessoais com que Cícero se deparou forneceram o impulso e a oportunidade ao desenvolvimento de uma obra que fornecerá à tradição jurídica e filosófica ocidental a síntese resultante do encontro entre o legado filosófico grego e o pragmatismo jurídico romano. Como veremos, a proposta de Cícero ao escrever seu diálogo sobre as leis não se restringiu ao modelo do ius civile, aquele cultivado por Roma desde o início da sua fundação e que materializava uma forma prática e objetiva à resolução dos conflitos entre os cidadãos romanos.
O sentido pragmático e resolutivo que caracterizava a mentalidade latina forneceu a base cultural hábil para o desenvolvimento de um senso jurídico voltado à realização da justiça na concretude dos fatos. Os jurisconsultos romanos, em geral, não faziam considerações sobre a justiça e o direito desacompanhadas de uma controvérsia prática, daí o preponderante caráter casuístico da produção jurídica romana. Na casuística, aponta Kaser, situava-se o ponto nevrálgico da ciência clássica do direito romano:
Por outro lado, o nervo da ciência clássica do Direito é a casuística, isto é, o estudo exaustivo e entusiástico do caso. O Direito romano é um Direito de casos, do mesmo modo que o Direito inglês é o case law. As ideias jurídicas romanas foram induzidas em grande parte dos casos; não foram criadas, como nos Direitos continentais, por um legislador. Por esta razão, os princípios do Direito romano são muito mais dúcteis que os dos Direitos atuais (Kaser, 1968, p. 18).[5]
Nota-se, pois, que os jurisconsultos romanos “permanecem sempre perto dos fatos da “causa”, capazes de extrair a solução dos fatos objetivos (“ex facto jus oritur”), de haurir o direito da natureza” (Villey, 2009, p. 430).
De fato, o maior corpo documental em que foi compilado o direito romano aplicado (iura) por ordem do imperador Justiniano no século VI E.C. – o Digesto – fornece a maior evidência do caráter casuístico dos pareceres (as responsa prudentium) dos jurisconsultos da era clássica do direito romano (séc. II A.E.C - III E.C.), nos quais são discutidas e decididas variadas controvérsias práticas da vida cotidiana dentro da civitas, por exemplo, sobre a emissão de fumo proveniente de uma fábrica de queijos sobre a vizinhança (D. 8, 5, 8, 5), a análise do dano causado por um taverneiro que vazou o olho de um ladrão durante a luta pra recuperar sua lanterna furtada (D. 9, 2, 52, 1) e a responsabilidade pelo dano produzido por uma carroça que foi abalroada por outra na descida de uma ladeira (D. 9, 2, 52, 2), dentre tantas outras em matéria de família, sucessões, contratos, propriedade e responsabilidade civil, que poderiam ser enumeradas e transcritas para reafirmar o caráter essencialmente pragmático do direito romano, do qual Cícero resolve se afastar explicitamente, como se verá a seguir, ao escrever o De Legibus.
O intercâmbio cultural helênico-romano possibilitado pela expansão de Roma sobre o Mediterrâneo, sobretudo após o término das guerras macedônicas com a destruição de Corinto, no ano de 146 A.E.C., sinalizou para alguns juristas romanos, uma abertura a novas perspectivas na abordagem do direito enquanto matéria ligada à condição do ser humano dentro da cidade (civitas).
A cultura helênica, leciona Reale (1977, p. 67), forneceu uma cosmovisão aos juristas romanos, despertando-lhes a atenção para o sentido universal do fenômeno jurídico para além de uma disciplina confinada à resolução prática de controvérsias. Além disso, a importação da dialética grega durante o final da República forneceu o arcabouço metodológico necessário à racionalização e à profissionalização da jurisprudência romana, conferindo-lhe sistematicidade e rigor científico.
Cícero viveu precisamente neste contexto e dele soube extrair grande proveito aos seus intentos político-filosóficos, pois vislumbrou nesta oportunidade um meio para engrandecer o legado cultural latino. Impregnando-se, desde a juventude, da mais alta cultura filosófica grega aliada ao estudo da jurisprudência romana em sua expressão mais elevada da era clássica, Cícero corporificaria a síntese máxima do encontro entre os afluentes culturais greco-romanos (Grimal, 2023, p. 12).
Na construção de um corpo documental escrito, Cícero identificou a possibilidade de estabelecer um legado cultural perene, inclusive, dentre outras razões, em virtude de sua posição de “homem novo” (homo novus) dentro da elite romana, o que lhe privava da tradição pelo nascimento. Assim, sua vasta produção escrita foi, ao nosso ver, uma escolha política orientada ao seu reconhecimento como um homem da república romana (Pérez, 2016, p. 304).
Quando se afirma, porém, que o De Legibus resultou de uma síntese do pragmatismo romano com a lição filosófica grega, não se está a afirmar que Cícero recorreu à casuística jurisprudencial. Muito ao contrário, desde os primeiros diálogos do De Legibus, Cícero busca expurgar de sua investigação considerações pertinentes ao trabalho casuístico dos jurisconsultos, base da formação do ius civile e uma das manifestações de maior relevância do senso pragmático romano.
É o que se percebe na indisfarçada ironia, recurso muito utilizado pelo autor, com que Cícero se volta à demanda de Ático por uma exposição sobre o direito civil (ius civile), redarguindo-lhe, em forma de pergunta, de que valeria redigir pequenos tratados sobre a lei do gotejamento dos beirais e das paredes ou fórmulas de julgamento quando muitos já debruçaram sobre temas de tão diminuta relevância (Leg. I. 14).
Conduzindo o diálogo para outra direção, Cícero aproveita a dúvida suscitada por Ático acerca da fonte do direito (fons legum et iuris) – se esta seria o edito do Pretor ou a Lei das XII Tábuas (Leg. I. 17) – para esclarecer, desde logo, que o objeto sob análise gravitava em órbitas mais elevadas, nos princípios do direito (iuris principia – Leg. I. 18). Não se olvide, ainda, que o estudo das fontes do direito, isto é, de onde ele provém, se inseriu, desde então, definitivamente, entre as grandes temáticas exploradas pela filosofia do direito, oferecendo desafios e complexidades que ainda permanecem latentes no debate jurídico contemporâneo.
Assim, Cícero buscará na filosofia grega um aparato teórico compatível com a elevada altitude de seus questionamentos sobre a natureza e o fundamento do direito (fundamentum iuris), sem se confinar às amarras do direito civil, ou seja, do direito aplicado cotidianamente para a resolução dos conflitos individuais travados entre cidadãos romanos dentro da civitas. A originalidade do pensamento ciceroniano reside, justamente, neste abandono parcial das regras do ius civile como elemento integrante do conceito do direito, para buscar em um nível mais elevado de abstração jurídica conceitos perenes e universais, como da justiça, da lei e do direito.
Mas, em sua empreitada filosófica, Cícero não abdica do senso pragmático romano. Ao revés, o recurso à filosofia encontra sua justificação no engrandecimento e na restauração dos valores basilares de Roma. A filosofia, então, emerge no panorama maior das responsabilidades cívicas dos cidadãos da República, que devem ser membros ativos e socialmente comprometidos com o bem comum.[6]
Nesse sentido, a reverência prestada por Cícero à filosofia grega jamais resultará em uma assimilação incondicional a determinada escola ou corpo dogmático. Esse fato é de suma importância, pois afasta da análise das obras de Cícero todos aqueles que limitam a produção intelectual romana à mera repetição dos helênicos. Aos olhos de Cícero, o que Roma assimilou dos gregos não poderia ser encarado como uma capitulação no âmbito filosófico, contrariamente à célebre sentença de Horácio,[7] mas ao aproveitamento de um saber propiciado pelo otium que faltava à gens latina (conf. Orat. 3. 131), cuja assimilação romana resultaria mesmo em seu aprimoramento: “os nossos ou teriam descoberto tudo por si mesmos com mais sabedoria do que os gregos ou melhorado o que deles receberam, ainda que na verdade tenham estabelecido coisas respeitáveis naquilo a que se dedicaram.” (Tusc. I. 1). [8]
Estas são as premissas e as devidas ressalvas com que se manifestará a face pragmática de Cícero em sua fusão com o elemento especulativo grego, cujo paradigma máximo e de maior influência será Platão, ao ponto de motivar o título que lhe endereçara Quintiliano, de “Platonis aemulus” (Inst. X. I. 123), e, posteriormente, Lactâncio, na qualidade de “noster Platonis imitator” (Div. Inst. 3. 25.1), aquele que verteu a filosofia ao latim, inspirando-se em Platão (“quippe qui omnes cognoveris disciplinas, sicut ipse gloriari soles, eamque ipsam latinis litteris illustraveris, imitatoremque te Platonis ostenderis” – Div. Inst. 3. 14). Será em Cícero, como aponta Boyancé, que o platonismo se encontrará com o espírito romano (Boyancé, 1970, p. 222).
No amplo espectro do pensamento filosófico ocidental, leciona Gildenhard (2013, p. 225), a relevância da recepção do pensamento platônico por Cícero pode ser comparada à assimilação do modelo homérico por Virgílio. Em ambos os casos, estamos diante de autores latinos que, buscando modelos na literatura e na filosofia grega, transmitiram à posteridade um corpo conceitual que possibilitou a formação de um elo de transposição da cultura grega ao mundo ocidental, sobretudo em virtude do prolongado lapso de tempo em que a obra original dos autores gregos permaneceu inacessível.
1 A APROPRIAÇÃO DA ESTÉTICA LITERÁRIA E DO MÉTODO DIALÓGICO PLATÔNICO
A admiração que Cícero nutria por Platão reverbera ao longo de toda a sua obra, como se nota, por exemplo, em Brutus, em que o diálogo travado entre Cícero, Bruto e Ático se desenrolará sob a égide da estátua de Platão (propter Platonis statuam – Brut. 24). Nas Discussões Tusculanas, Cícero invocará a opinião de Panécio, segundo o qual Platão era o Homero dos filósofos (Homerum philosophorum – Tusc. I. 79), qualificando de “plebeias” todas as escolas que dele discordavam (omnes plebei philosophi – Tusc. I. 55). O De Legibus não será uma exceção.
Durante a república tardia, ao tempo em que redigido o De Legibus, o domínio romano alargava-se sobre uma vasta extensão territorial e a filosofia helênica recebia, gradualmente, maior atenção e aceitação entre a aristocracia romana. Sintomática, nesse sentido, era a aprendizagem do idioma ático pelas elites romanas (Pérez, 2016, p. 283). Nas esferas intelectuais romanas, gozaram de especial prestígio o epicurismo, o estoicismo e, por fim, a Academia. Em relação à tradição acadêmica, o ceticismo de Carneádes lançará sua influência sobre Roma especialmente por meio de sua vertente probabilista na linha de Filo de Larissa, que deixou Atenas para residir em Roma no curso da primeira guerra Mitridática, ocasião em que Cícero se tornaria seu aluno (88 A.E.C). Também exerceram grande influência no ambiente intelectual romano, Painécio de Rodes, filósofo estoico que residiu em Roma sob os auspícios de Cipião Emiliano, e Antíoco de Ascalão, o último chefe da academia que, como Filo, também fora preceptor de Cícero durante sua viagem à Grécia em 79 A.E.C. Em meio a tantas escolas e doutrinas filosóficas, muitas das quais disputando suas próprias interpretações sobre a obra platônica, Cícero se declarará fiel à Academia e, consequentemente, legatário direto de Sócrates e de Platão (Plut., Cic. 3-4).
Com efeito, Platão representará para Cícero a imagem do filósofo por excelência (Hösle, 2008, p. 152). O próprio percurso filosófico seguido por Cícero ao escolher os nomes e as temáticas de suas duas obras políticas da maturidade (De Re Publica e De Legibus) demonstra sua reverência a Platão, conforme se verificará com maiores detalhes a seguir. Isso não significa, contudo, que Cícero se limita a ser um mero repetidor da filosofia política platônica.
A presença de Platão permeia o diálogo ciceroniano sobre as leis (De Legibus), seja direta e nominalmente, quando, por exemplo, Cícero o invoca como “homem sumamente sábio [...] o mais profundo de todos os grandes filósofos” (Leg. II. 14), “o homem mais sábio da Grécia, de longe também o mais douto” (Leg. II. 39), e até mesmo “aquele homem divino” (Leg. III.1), [9] seja sob vestes conceituais, ao vincular a lei a um ordenamento cósmico e divino que permeia a natureza e a racionalidade humana, tendo por fim último a virtude.
Desde um cotejo inicial, sobressalta patente a inspiração platônica na própria intitulação eleita por Cícero ao seu diálogo sobre as leis (De Legibus), adotando a expressão latina homônima àquela adotada por Platão em seu diálogo As Leis (Nómoi).
Não apenas a designação, mas o encadeamento em que Cícero desenvolveu sua reflexão sobre as leis, em continuidade ao seu tratado De Re Publica, igualmente, pautou-se na cronologia da obra de Platão, conforme declara Ático nos diálogos iniciais do De Legibus: “e se perguntas o que eu aguardo, uma vez que por ti foi escrito um tratado sobre a instituição do Estado ideal, parece ser uma consequência clara que tu faças o mesmo sobre as leis, pois vejo que assim procedeu aquele teu Platão, a quem tu admiras, a quem colocas acima de todos e a quem estimas de modo especial” (Leg. I. 15).[10]
Aproximadas as Leis de Cícero e as Leis de Platão, as semelhanças de estrutura e de estilo resultam evidentes, a começar pela circunstância de que ambas foram redigidas na forma de um diálogo travado entre três personagens, muito embora Cícero tenha optado por dar voz a personagens romanos reais em seu diálogo (como ele próprio, seu irmão Quinto e seu amigo Ático), distanciando-se, neste ponto, da obra homônima escrita por Platão, cujos interlocutores são personagens fictícios (o estrangeiro Ateniense, o cretense Clínias, e o espartano Mégilo).
Em termos estilísticos, as Leis de Cícero e de Platão não têm prefácio. Além disso, os dois primeiros livros do De Legibus são introduzidos, gradualmente, por cenários campestres e conversações aprazíveis que evocam lembranças saudosas de seus interlocutores, em uma aproximação significativa dos diálogos iniciais do Fedro (Phdr. 229a-230c).
Tanto Cícero no De Legibus, (Leg. II. 14 e 16; III. 1) quanto o estrangeiro Ateniense nas Leis (Pl. Lg. IV. 723a) dedicam um louvor preambular às leis ideais que propõem a seguir aos demais interlocutores (legis laude). Os preâmbulos legais fornecem um recurso persuasivo às leis, ao lado de seu aspecto cogente. Nas Leis de Platão, os proêmios ora apelam a uma argumentação racional de adesão à lei, ora apelam ao aspecto irascível do ser humano, buscando, por exemplo, impingir o medo àqueles que atentassem contra a vida alheia ou violassem as prescrições sexuais (Annas, 2013, p. 208). Há, portanto, um surpreendente recurso à retórica que contrasta com a conhecida aversão platônica retratada no Górgias.
Ironicamente, a eloquência de Platão e a beleza de seu estilo fornecerão à Cícero a evidência mais palpável de que “a expressão perfeita é essencial para a apresentação do pensamento filosófico” (Boyancé, 1970, p. 224). Contrapondo-se à aridez do estilo estoico, Cícero exclamará: “quem será superior em eloquência a Platão? Se Júpiter falasse em grego, dizem os filósofos, falaria como ele” (“quis enim uberior in dicendo Platone? Iovem sic [ut] aiunt philosophi, si Graece loquatur, loqui” – Brut. 121).
Talvez, para Cícero, essa concessão platônica à retórica em âmbito cívico-legislativo não tenha sido tão surpreendente. De fato, segundo recorda Altman (2016, p. 30), em De Oratore, (1. 47,) Cícero destacaria a grande ironia subjacente à eloquente refutação de Sócrates à retórica: “li com grande cuidado o Górgias, livro em que admirava Platão sobretudo por isso, porque, ao ridicularizar os oradores, ele próprio me parecia ser o maior orador” (“diligentius legi Gorgiam; quo in libro in hoc maxime admirabar Platonem, quod mihi in oratoribus inridendis, ipse esse orator summus videbatur”).[11]
Mas existe ainda outro paralelismo que merece destaque, concernente ao contexto das obras. Com efeito, tanto as Leis de Platão quanto as Leis de Cícero foram obras desenvolvidas durante a maturidade, física e intelectual, de seus autores.
Platão era natural de Atenas e provinha de uma família ateniense de estirpe aristocrática, cuja tradição traçava sua genealogia materna ao legislador Sólon e, pela parte paterna, a Codro, o último rei de Atenas (D. L. III. 1).
O julgamento e a morte de Sócrates imprimiram em Platão uma forte aversão à política e à democracia ateniense (Ferrari, 2022, p. 9). Esse sentimento seria reforçado, definitivamente, após suas frustradas tentativas de implementar o ideal do rei-filósofo em Siracusa, onde Platão será mantido prisioneiro sob as ordens do tirano Dionísio II.
Diógenes Laércio inclui as Leis na nona e última tetralogia dos diálogos platônicos (D. L. III. 59), favorecendo o consenso de que as Leis podem ser consideradas o último diálogo escrito por Platão, inserindo-as entre seus escritos tardios (Brisson, 2012, p. 21).
Cícero, por seu lado, não era natural de Roma, mas do Arpino (Arpinum), uma vila do Lácio, e não tinha laços de sangue que o vinculassem à nobilitas senatorial romana. É certo que Cícero integrava uma antiga linhagem pertencente à ordem dos equestres (a gens Túlia). Contudo Cícero tinha a consciência de que a sua consagração definitiva no cenário político dependia da força de suas palavras e do valor de suas ações: a humanitas era, portanto, o caminho que lhe conduziria ao ápice da república. Como registrou Plutarco sobre a eleição em que Cícero foi eleito ao consulado (Cic. 11. 3), “Cícero era o único candidato que não era filho de um pai senador, mas cavaleiro.”
Ao redigir o De Legibus, Cícero não era mais o jovem que se deslumbrara com as lições proferidas pelo jurisconsulto Quinto Múcio Cévola (o Augure) no auge de seus 80 anos (Grimal, 2023, p. 38). Nesse momento de sua vida, Cícero contava com cerca de 54 anos e já havia galgado o ápice da carreira pública romana – o cursus honorum – com sua nomeação ao consulado em 63 A.E.C., carregando uma larga e influente experiência na vida forense e política de Roma. Nesse interregno, Cícero conhecera as agruras do exílio ao qual se submeteu entre 58 e 57 A.E.C., para se livrar da perseguição política que lhe encetara o Tribuno da Plebe Clódio, motivada por sua decisiva atuação no processo que culminou na condenação à morte de todos aqueles que participaram da conjuração de Catilina (Plut., Cic. 31).
Segundo elucida Schofield (2022, p. 90), o contexto político de Roma no limiar da segunda guerra civil repercutiu gravemente sobre o espírito de Cícero, em cuja correspondência dirigida à Ático no início do ano de 49 A.E.C. constam expressas referências às palavras vertidas na sétima epístola de Platão sobre seu cativeiro em Siracusa. Optando, inicialmente, por permanecer na Itália, apesar de sua simpatia por Pompeu, Cícero se sentia como um pássaro engaiolado diante do oceano, tal qual Platão se descrevera (Att. IX. 10). Explicita-se, então, uma confluência não apenas intelectual, mas de ordem vital, daí emergindo a figura de Cícero como “homo platonicus”, “no mais grave e existencial sentido.”[12]
Como ressalta Boyancé (1970, p. 234), esse contexto espiritual comum à redação dos diálogos dos anos 50 A.E.C (De Oratore, De Re Publica e De Legibus), marcado pelos infortúnios políticos (o primeiro triunvirato) e pessoais (o exílio) vivenciados por Cícero, conduziram-no a uma aproximação existencial com Platão, em cuja trajetória de vida serão buscadas as respostas para os dilemas políticos que lhe demandavam uma tomada de posição.[13] Nesse aspecto, Platão se apresenta a Cícero como uma bússola moral, refletindo o aspecto mais elevado e abrangente da filosofia na condição de um modo de vida, um saber prático integrado a todos os aspectos e dilemas da existência. Daí se pode concluir que a perspectiva de Cícero, longe de ser utópica, era pautada por um otimismo moderado em grande medida inspirado por Platão (Boyancé, 1970, p. 233-234), [14] o que pode ser confirmado pelo enfoque marcadamente filosófico de suas obras tardias, vale dizer, daquelas escritas após a guerra civil e o advento da ditadura de César, quando o cenário político de Roma se tornou definitivamente avesso à sobrevivência da república.[15]
De fato, o otimismo em Cícero, apesar de se dirigir a uma legislação ideal localizada na República de Cipião, jamais se desvia das esferas concretas do factível. Assim, o apelo à tradição e a um ideal de justiça são ponderados à luz de considerações baseadas na utilidade pública e nos limites impostos pelas circunstâncias, conforme ilustra a defesa de Cícero ao Tribunato da Plebe, opondo-se às críticas que lhe foram dirigidas por Ático e Quinto. Para Cícero, era preciso considerar não apenas o que era excelente, mas o que era necessário (“non solum ei quid esset optimum videndum fuisse, sed etiam quid necessarium” – Leg. III. 26).[16]
Sob o aspecto metodológico, Cícero recorre ao formato dialógico (disputatio in utramque partem) para explorar as questões filosóficas que desenvolve ao longo do De Legibus, em manifesta referência à metodologia socrática retratada por Platão.
Assim, no plano formal da obra, Cícero adota o modelo dialógico de Platão, retratando-se como figura central do diálogo, ou, segundo sugere Dyck (2004, p. 26), assumindo o papel de Sócrates para explorar contradições e buscar definições claras por meio de uma construção dialógica do conhecimento. Na realidade, porém, o personagem de Cícero no De Legibus assumirá o papel de quem detém as respostas para os questionamentos feitos ou induzidos por ele mesmo. Nesse sentido, Cícero conduzirá seus interlocutores para os temas que pretendia desenvolver e explicitar sem permitir que as interrogações que lhe eram endereçadas tenham um desfecho aporético.
A introdução do diálogo na seara filosófica romana representou uma inovação que oferecia a dinamicidade e o potencial criativo compatíveis aos interesses políticos e ético-filosóficos de Cícero. Distinguindo-se da tradição dos tratados e dos poemas didáticos, por meio do diálogo, Cícero conferiu uma dimensão coletiva à investigação filosófica, tornando-a suscetível a mudanças e debates até então não explorados (Auvray-Assayas, 2006, p, 29).[17]
Zoll (1964, p. 144), questionando-se se Cícero, de fato, merece o título de “Plato Latinus”, conclui afirmativamente no sentido de que, apesar das influências aristotélicas em seus diálogos, Cícero foi o primeiro a retomar o diálogo filosófico nos moldes inaugurados por Platão. Além do mais, a tradição filosófica anterior, inclusive o próprio Aristóteles, considerava o diálogo como o mais característico traço da obra de Platão.[18]
Na percepção de Zetzel (1999, XXI), o De Legibus corresponde à tentativa em que Cícero obteve maior sucesso na imitação de um diálogo platônico. Igualmente, Julia Annas (2017, p. 169-170) constata que as conversas espontâneas e interativas travadas ao longo do diálogo mais se aproximam aos diálogos platônicos anteriores do que às próprias Leis de Platão.
Todavia vale relembrar que Cícero não abre flancos à formação de aporias ao longo dos seus diálogos, retratando-se como um verdadeiro perito nos temas discutidos sob o influxo das indagações que lhe eram endereçadas por seu irmão Quinto e seu amigo Ático, no que se afasta da modéstia epistêmica e da postura questionadora que geralmente caracterizavam o Sócrates retratado por Platão.
Ainda assim, a semelhança persiste, pois o modelo eleito por Cícero eram as Leis de Platão. Ora, uma das peculiaridades das Leis consiste na ausência de Sócrates, suprida pelo estrangeiro Atenienses, que, assim como o personagem de Cícero no De Legibus, exerce uma posição de notável proeminência intelectual sobre os demais interlocutores.
Desperta a atenção, porém, o fato de que, nas Leis de Platão, o personagem principal mantém um insondável anonimato, apesar de Cícero identificá-lo como o próprio Platão (Leg. III. 5),[19] ao passo que no De Legibus, Cícero decide falar por si como personagem central do diálogo, contrariamente aos diálogos antecedentes (De Oratore e De Re Publica), em que figuravam personagens proeminentes da história política romana.
Schofield (2022, p. 94) aponta os possíveis motivos dessa mudança. Em carta dirigida ao seu irmão Quinto (QFr. 3. 5), Cícero sugere que aceitaria a recomendação de um amigo chamado Sallustius no sentido de que ele falasse em seu próprio nome como personagem do De Re Publica, que à época estava em fase de manuscrito, o que poderia conferir maior autoridade e força persuasiva diante do público romano em virtude de sua alta posição e larga experiência política. Ainda que o De Re Publica tenha mantido seu projeto originário, no diálogo imediatamente posterior, o De Legibus, Cícero comparece como o principal personagem, cuja carreira e feitos políticos são constantemente relembrados pelos demais interlocutores, seu irmão Quinto e seu amigo Ático.
Desse paralelo inicial entre as Leis de Cícero e as Leis de Platão, pode-se concluir que o personagem de Cícero retratado no De Legibus assume com maior precisão o papel exercido pelo estrangeiro Ateniense nas Leis, correspondendo em sua própria percepção a um Platão latino (Plato Latinus). [20] Contudo, ao contrário do estrangeiro Ateniense, Cícero não era um forasteiro em Creta. No De Legibus, os diálogos se desenvolvem no Arpino, terra natal de Cícero, mais precisamente na propriedade ancestral de sua família (Leg. II. 3). Suas falas, porém, se projetam ao coração de Roma, seu berço político, [21] onde a estrangeira era a própria filosofia.
2 A RECEPÇÃO FILOSÓFICA DO PENSAMENTO PLATÔNICO
Percebe-se, até então, que as aproximações constatadas entre as Leis de Cícero e as Leis de Platão são marcadamente literárias, relativas ao título, à continuidade em relação ao tema da optima re publica, ao estilo e à estrutura dramática das obras.
No âmbito conceitual, a influência do pensamento platônico sobre o De Legibus pode ser constatada na escolha dos temas centrais a serem abordados ao longo do diálogo. A concepção da lei como reflexo de uma ordem racional e divina, a ênfase na adesão racional à lei por meio de preâmbulos persuasivos e do autoconhecimento, o papel educativo da legislação e seu sentido orientado às virtudes, o direito religioso e as magistraturas serão objeto de análise por Cícero assim como o foram para Platão em suas Leis.
A prática persuasiva, em especial, assumirá grande relevância para Cícero, ainda que com uma perspectiva distinta, pois enquanto os preâmbulos propostos às leis de Magnésia (προοίμιον τοῦ νόμου) se voltavam para uma legislação futura e, consequentemente, pouco assimilada por seus cidadãos (Pl. Lg. IV. 722a-723b), Cícero pretendia utilizá-los como uma forma de justificar, retrospectivamente, a perfeição das leis e costumes ancestrais romanos (Annas, 2013, p. 223).
No fundo, porém, o argumento central permanece o mesmo: “Platão julgou que é característica da lei também conseguir a persuasão sobre algum item e não apenas impor tudo pela força e por ameaças” (Leg. II. 14).[22] O recurso aos louvores preambulares às leis, além de materializar um reflexo da prática adotada pelo estrangeiro Ateniense, denota uma afinidade mais profunda em relação à insuficiência dos regimes baseados exclusivamente na força e no medo e à primazia da persuasão racional dos homens à lei: “nada é mais prejudicial para as comunidades, nada é tão oposto ao direito e às leis, nada é menos civil e menos humano do que, em um Estado estruturado e bem estabelecido, praticar algo com violência” (Leg. III. 42).[23]
Por mais que às leis não faltassem meios de coação, a submissão racional e voluntária aos seus preceitos consistia em um pressuposto à integração e à estabilidade da república. A degradação dos costumes e desordem institucional com que Cícero se defrontava à época em que escrevia o De Legibus eram uma prova viva de que a preservação da melhor república e das melhores leis dependia, de um lado, de líderes virtuosos (o rector rei publicae) e, de outro, de um compromisso comunitário conscientemente centrado naqueles valores que conduziram Roma à optima re publica descrita por Cipião (Powell, 1994, p. 24-25). Aqui, Cícero se aproxima essencialmente da defesa de Platão sobre as vantagens de um governo conduzido por líderes intelectual e moralmente preparados (Beltrão, 2020, p. 5).[24]
A negação absoluta a um regime de medo guarda relação direta com a concepção platônica de que a organização do Estado deve guardar um “isomorfismo substancial” com a alma individual (Ferrari, 2022, p. 63).[25] Um Estado cuja manutenção deriva do medo de seus súditos teria por suporte uma condição débil da alma (Pl. Lg. VII. 791a), revelando-se essencialmente incapaz de fomentar as virtudes e a prosperidade dos governados. Estas são as palavras que Platão coloca na boca do estrangeiro Ateniense:
Além do mais, parece que até agora nenhum legislador se lembra de que dispõe de dois meios para fazer observar suas leis; a persuasão e a força, tanto quanto é possível o seu emprego junto da turba ignorante, só havendo recorrido a um deles; quando promulgam leis, nunca misturam persuasão e força; servem-se apenas da força sem nenhum acréscimo (Pl. Lg. IV. 722b).
A causa disso, segundo penso, vamos encontrá-la nas falsas formas de governo a que já bastantes vezes me referi nos discursos anteriores: democracia, oligarquia e tirania. A rigor, nenhuma delas é a verdadeira constituição; mais cabe, à justa, a todas o nome de facção. Em nenhum caso o poder se exerce com o consentimento dos governados; é sempre arbitrário e revestido de violência. Com medo permanente dos governados, jamais o governante permitirá de bom grado que eles se tornem honestos ou ricos ou fortes ou corajosos, nem, de modo geral, guerreiros (Pl. Lg. VIII. 832c).[26]
Estas considerações preliminares demonstram que a influência de Platão sobre o De Legibus em muito transcendeu a esfera do exercício literário.
O segundo livro, em particular, em que é abordado o direito religioso romano, demonstra que Cícero possuía um profundo e direto conhecimento sobre o texto das Leis de Platão, do qual parafraseará ou verterá ao latim profusas passagens, por exemplo, sobre o rigor grego com que eram tratadas as melodias em razão de sua influência sobre o ânimo dos cidadãos (Leg. II. 39), a advertência quanto à impiedade daqueles que praticam o mal e ofertam presentes aos deuses (Leg. II. 41), as prescrições sobre as despesas e o local adequado aos sepulcros (Leg. II. 67), e sobre os bens passíveis de consagração aos deuses (Leg. II. 45).[27]
Não obstante, cabe pontuar que a recepção conceitual operada por Cícero não se verificou em termos absolutos, admitindo mitigações e adaptações em prol de uma postura coerente com sua própria obra, suas convicções e, sobretudo, com a realidade da república romana com que se defrontava diretamente enquanto escrevia o De Legibus.
Cícero não pretendia ser um mero tradutor ou um repetidor das ideias platônicas ao mundo romano, tampouco de qualquer outro filósofo grego. Ao revés, seu intento era o de ser ele mesmo (esse vellem meus), conforme deixou claro a Quintus no diálogo travado em Leg. II. 17.
Cícero tinha em mente um projeto político e pessoal destinado à perpetuação de sua individualidade através de seus escritos. Ressalte-se a produção e a divulgação de textos não era uma solução tão óbvia, mesmo no final da República romana tardia. A Antiguidade não conheceu tão cedo o que hoje chamamos de edição e distribuição de livros. Na época de Cícero, a confecção de cópias, seguida da revisão e da divulgação de textos, era uma atividade cara e exaustiva. Cícero, então, acreditava na força de seus textos para a perenidade da sua imagem e de seu projeto político (Pérez, 2016, p. 63).
Ao ingressar na especulação filosófica sobre a fundamentação do direito, Cícero não abdicou de seu compromisso político, mas buscou “dar aos romanos um saber filosófico de alto nível e em latim, um objetivo ligado estreitamente à defesa e à renovação do mos maiorum.” (Malaspina, 2015, p. 274). Era seu intento, pois, “consolidar os Estados, fortalecer as cidades e curar os males dos povos” (“ad res publicas firmandas id est ad stabiliendas res, sanandos populos” – Leg. I. 37). A estrutura e o desenvolvimento do De Legibus refletem, precisamente, a unidade entre o lado especulativo e o lado político-pragmático de Cícero.
De fato, Cícero traça o plano de sua reflexão na forma de um silogismo, ordenando-a sistematicamente desde um plano geral, integrado pela noção primária e universal da lei como a máxima razão ínsita à natureza (Leg. I. 18), a um plano específico e concreto, integrado pelas leis e instituições romanas:
Devemos, pois, explicar a natureza do direito, e essa precisa se conjugar com a natureza do homem; devemos refletir sobre as leis pelas quais as comunidades devam ser regidas. Em seguida, urge examinar aquelas leis e ordenações dos pontos que foram formuladas e escritas e que não são desconhecidas até pelo nosso povo, os chamados direitos civis. (Leg. I.17).[28]
Alguns comentadores vislumbraram traços de incoerência ou vacilação no plano executado por Cícero (Dyck, 2004, p. 238), na medida em que, aparentemente, pretendia-se extrair as normas concretas e específicas da realidade romana de uma base normativa de caráter universal e imutável.
Por outro lado, Annas (2013, p. 221), com quem concordamos, defende a coerência do texto, argumentado que Cícero não pretendia extrair do direito natural um corpo rígido e minudenciado de regras, mas fornecer um fundamento ético às leis romanas.[29] No mesmo caminho, Vegetti insere o impulso filosófico de Cícero no âmbito de uma tentativa consciente de engendrar uma ideologia que servisse de anteparo ético à República romana:
O empreendimento filosófico de Cícero é conscientemente destinado à formação de uma ideologia da república romana. Por ocasião de sua desgraça política, ele escreve: “Sem atividades públicas que me ocupassem, numa situação que tornava inevitável a ditadura, pensei que fosse ato de patriotismo expor a filosofia aos meus concidadãos, considerando que fosse para honra e glória da república haver expresso tal tema em letras latinas” (De nat. Deo. 1.7). O quadro geral dessa ideologia é formado pela naturalidade da forma de Estado, pelo igualmente natural empenho político que cabe ao sapiente (De fin. 3,64-4), pela coerência entre lei providencial da natureza e lei positiva do imperium (SVF 3.315). (Vegetti, 2014, p. 340-341).
Assim, se, por um lado, Cícero migra de uma esfera divina à concretude da experiência histórica romana, por outro, Cícero alça as próprias instituições romanas a um patamar ético de objetividade transcendente, concebendo-as como vivo reflexo da ratio naturalis. Na percepção de Voegelin, “a Lex [o direito] de Roma tinha se tornado o nomos-logos oriental; a lei da natureza era a lei de Roma” (Voegelin, 2012, p. 257).
Uma das consequências de maior relevância da concepção de Cícero consiste na superação da antinomia entre nomos e physis. Ora, se lei pressupõe uma conformidade intrínseca à reta razão que deita fundamento na ordem natural que rege o cosmos, qualquer preceito que lhe seja contrário não será verdadeira lei, ainda que sancionada sob tal título. Neste ponto há uma estreita convergência entre o pensamento de Cícero e de Platão. Em última instância, a razão natural oferece um padrão objetivo, um critério de julgamento das verdadeiras e falsas leis, dando ensejo a um ordenamento jurídico escalonado hierarquicamente (Verdross, 1983, p. 81).[30] Será tão incoerente qualificar de “médica” uma prescrição que extirpe a vida ou a saúde do paciente quanto alcunhar de “lei” uma norma perniciosa, cuja força não conduza ao bem e à justiça:
Por que, então, muitas imposições perniciosas e mesmo devastadoras são decretadas entre os povos? Elas não merecem mais o nome de leis do que se ladrões sancionassem alguma em suas reuniões. De fato, nem as prescrições dos médicos podem ser consideradas como tais, caso as tenham receitado, por ignorância ou inexperiência, como algo mortífero em vez de um remédio salutar; assim também não uma lei para o povo, seja ela de que forma for, ainda que o povo tenha aceitado algo prejudicial. A lei, portanto, estabelece a distinção entre o que é justo e o que é injusto, expressando-o segundo a fonte antiquíssima e primordial de todas as coisas: a natureza; para ela, as leis dos homens são orientadas e elas aplicam o castigo aos desonestos, defendem e protegem os bons. (Leg. II. 13).[31]
A analogia entre médicos e legisladores foi extraída diretamente das Leis de Platão (Pl. Lg. IV. 720a-d), em que o estrangeiro Ateniense distingue os médicos que prescrevem tratamentos ao modo de um tirano, impositivamente, e os médicos que persuadem o paciente sobre as vantagens do tratamento. O legislador, assim como o médico, deve buscar a cura, valendo-se de ambos os métodos para que a cura se dê da forma mais branda possível. Contudo, no caso da lei, a cura não se dirigirá ao corpo, mas à alma dos indivíduos: “sanandos populos” (Leg. I. 37).[32]
O direito, então, surge como uma força da natureza (naturae vis) que impele o ser humano à justiça e à prática das virtudes: “a força de levar à prática do correto e à fuga dos erros, força essa que não é apenas mais antiga que a idade dos povos e das comunidades, mas contemporânea daquele deus que sustenta e dirige o céu e as regiões da terra.” (Leg. II. 9).[33]
Novamente, Cícero se aproxima das Leis de Platão, ao imprimir um cunho educativo e moralizante à lei (Pl. Lg. I. 630c, IV. 708d). A lei emerge como um eixo de integração entre os homens, a Pólis e as divindades, por meio do estímulo à prática das virtudes. Nesse sentido, tanto Cícero quanto Platão fundaram a República e suas leis na justiça, mas enquanto Platão visava a uma República futura e radicalmente diferente da democracia ateniense, Cícero pretendia “restabelecer a antiga virtus romana como o pilar fundamental do comportamento legal dos cidadãos.” (Neschke-Hentschke, 1995, p. 233).
Perceba-se que a lei, como entendida por Cícero, adequa-se perfeitamente à alegoria platônica das marionetes (Θαῦμα), exposta no primeiro livro das Leis. Segundo expôs o estrangeiro Ateniense (Pl. Lg. I. 644d-645c), dentre as forças que competem no âmago do homem, cada uma em sentido diverso tal qual os fios de uma marionete conduzida pelos deuses, deve-se ceder àquela que corresponde ao liame de ouro da razão, opondo-se, pois, às demais trações, cujos fios são rígidos e de ferro. A razão, esse fio condutor dourado e sagrado, quando vazada em uma decisão comum do Estado, corresponde à lei (Pl. Lg. I. 644d).
Neste ponto, torna-se patente que o intuito de Cícero não era reformista, em termos de uma mudança radical das instituições romanas, mas eminentemente moralizador, o que ratifica sua identificação como filósofo moral (Valente, 1984, p. 19). Roma já dispunha de leis e instituições essencialmente compatíveis com a reta razão, restava, pois, um despertar moral de seus dirigentes. Conforme pontua Annas, “Cícero percebe que a salvação de Roma da guerra civil não se daria em termos de uma radical revolução social, mas de um resgate das antigas virtudes romanas a ser alcançado por meio do retorno às antigas leis do passado ideal romano.” (Annas, 2017, p. 184).[34]
Aos olhos de Cícero, a degenerescência da república tinha por fonte imediata o desprestígio da lei em prol da força. A gravitas e as demais virtudes que moldaram o ethos romano e foram cristalizadas em suas leis e costumes ancestrais deixavam de ocupar o espaço central na esfera política sob a influência das paixões insufladas pelos discursos populistas, dos subterfúgios espúrios, da vaidade pelas glórias pessoais e da violência. Era, pois, necessário obstar o desvio que afastou Roma de seu percurso histórico originário e restaurar a república sob o primado da justiça e do direito (Neschke-Hentschke, 1995, p. 193).
Essa perspectiva moralizante assumirá um papel fundamental na abordagem deontológica das magistraturas romanas. Cícero fundamenta as magistraturas no princípio da autoridade (imperium), concebendo-o como um imperativo inerente à ordem natural, sem o qual nenhuma estrutura organizada poderia subsistir: “sem ela não pode subsistir um lar sequer, nem uma comunidade, nem um povo, nem a universal espécie humana, nem a natureza das coisas, nem mesmo o próprio universo” (Leg. III. 3).[35]
Ressalta, entretanto, que à autoridade não basta uma obediência servil, mas o respeito, a estima e uma postura de ativa participação política. Se a lei deve ser amada por suas virtudes intrínsecas, nada mais natural que os magistrados (legem loquentem – as leis que falam) fossem respeitados na proporção em que personificassem a lei e, consequentemente, a própria vontade da República romana em suas concretas aplicações (Leg. III. 5). O mútuo respeito e a recíproca deferência entre governantes e governados fomentaria um ambiente institucional propenso à ordem e naturalmente equilibrado. Novamente, as Leis de Platão surgem como referência no trecho em que o estrangeiro Ateniense compara aqueles que atentam contra a autoridade dos magistrados com os Titãs (Pl. Lg. III. 701c).
Contudo a busca de Cícero por um pilar ético e transcendente na “ratio summa insita in natura” não redunda, tampouco se confunde com uma postura dogmática.[36] Apesar de silenciada a dúvida cética da Nova Academia em Leg. I. 39, Cícero não sentencia juízos de certeza, como, por exemplo, se extrai de sua ressalva em Leg. I. 18-19, ao destacar que a definição da lei proposta pelos doctissimis viris estaria aparentemente correta (“quodsi ita recte dicitur, ut mihi quidem plerumque videri solet”), ou, mais explicitamente em Leg. I. 36-37, quando Ático lhe dirige a provocativa questão se a constante remissão à opinião dos sábios não sinalizaria o abandono de sua liberdade discursiva ou de seu próprio julgamento em prol da autoridade alheia (“tua libertas disserendi amissa est, aut tu is es qui in disputando non tuum iudicium sequare, sed auctoritati aliorum pareas”). A lacônica, porém expressiva resposta, resumiu-se, inicialmente, a “nem sempre, Tito” (non semper, Tite), relembrando-lhe de que o objetivo da conversa era fortalecer a República e curar os povos, o que demandava a robustez de princípios diligentemente explorados e sopesados (“bene provisa et diligenter explorata principia ponantur”).
Conforme destaca Atkins (2013, p. 176-185), Cícero aborda a lei natural a partir de um percurso metodológico tipicamente cético, atribuído por Filo de Larissa (seu antigo mestre) a Carnéades, limitando-se à esfera do provável, ao âmbito das impressões convincentes, na medida em que seus juízos se fundamentam na plausibilidade ou na verossimilhança de uma proposição a partir de um exaustivo escrutínio das opiniões daqueles que se debruçaram sobre mesma questão.
No que diz respeito à fonte conceitual de que Cícero se valeu para definir a lei em Leg. I. 18, a tese que predominou até o séc. XIX localizava, exclusivamente, na filosofia estoica, sobretudo na obra de Crísipo, a base em que Cícero se amparou para conceituar a lei como “a máxima razão ínsita à natureza, que ordena o que deve ser feito e proíbe o que lhe for contrário.” (Leg. I. 18).[37] [38]
De fato, a aproximação, ao menos terminológica, resulta evidente diante de um sumário cotejo entre a definição de lei proposta por Cícero com o seguinte fragmento de Crísipo, em que a lei se identifica com a reta razão (ὀρθός λόγος), comum a todos e difundida por todo o universo:
Por isso, o fim supremo pode ser definido como viver segundo a natureza, ou, em outras palavras, de acordo com nossa própria natureza e com a natureza do universo, uma vida em que nos abstemos de todas as ações proibidas pela lei comum a todos, idêntica à reta razão difundida por todo universo e idêntica ao próprio Zeus, guia e comandante de tudo que existe (D. L. VII, 88).
Igualmente, em Diógenes Laércio (VII, 128), consta a seguinte referência à obra de Crísipo, nos termos da qual “a justiça existe por natureza, e não por convenção, da mesma forma que a lei e a reta razão, como diz Crísipo, em sua obra Do Belo.”[39]
Essa visão, aparentemente bem solidificada desde, ao menos, o séc. XVI, passou a ser contestada a partir de meados do século XX por um amplo movimento acadêmico, em que se destacaram os estudos de Alfred Verdross (1958), Pierre Boyancé (1970 e 1975), Olof Gigon (1975), Richard Horsley (1978), Klaus Girardet (1983) e Carlos Lévy (1992), dentre outros, identificando na obra de Cícero nuances filosóficas incompatíveis com a filosofia estoica, além de fontes anteriores ao estoicismo, destacadamente platônicas e aristotélicas, igualmente plausíveis e mais afinadas ao conjunto indissociável de sua vida e obra.[40]
Especialmente na tríade composta pelo De Oratore, De Re Publica e De Legibus, Cícero buscou em Platão o recurso aos modelos éticos para desenvolver uma filosofia moral de cunho prescritivo, centrada no delineamento de paradigmas de excelência, respectivamente, ao indivíduo, ao Estado e às leis (Schofield, 2022, p. 93). Segundo pontua Gildenhard, (2013, p. 247-248) a aproximação platônica dos três diálogos se expressa em suas perspectivas e em seus motivos centrais dedicados à elaboração de padrões ideais, sem alcançar, porém, uma adesão à teoria platônica das formas, o que se verificaria apenas a partir do Orator (46 A.E.C), em um movimento designado de “virada para as formas”:
Ainda assim, seria um erro minimizar a perspectiva e a inspiração platônicas desses empreendimentos intelectuais como um todo, que são de qualquer forma óbvias no caso de De Re Publica e do De Legibus, mas também informam o De Oratore, especialmente na forma como cada obra é configurada como uma investigação em busca da perfeição. Ao contrário de Platão, no entanto, que vai além da perfeição imaginada para dotá-la de realidade metafísica, Cícero correlaciona a perfeição imaginada com sua realização empírica, no que equivale a um tipo de pensamento que se poderia rotular de “realismo platônico” ou “a encarnação das Formas”, consistindo em uma fusão peculiar da metafísica grega e da realidade romana. Em De Oratore, a instanciação do ideal é prospectiva, na medida em que o orador ideal é uma figura do futuro para os personagens de Cícero (embora a discussão deixe claro que sua vinda está próxima); em De Re Publica, é decididamente retrospectiva: tanto Cícero quanto seus personagens situam a comunidade ideal no passado distante; e no De Legibus, é retrospectivo e prospectivo ao mesmo tempo: o diálogo desenvolve um código de leis que quase se assemelha ao direito romano ancestral, mas também o reforma estrategicamente.[41]
A relação intrínseca entre a divindade, a razão e a lei já estava presente nas Leis de Platão, como se verifica, por exemplo, no trecho em que o estrangeiro Ateniense, valendo-se do mito de Cronos, recomenda que os homens se deixem governar por seu elemento imortal interior, ordenando tanto seus lares e comunidades segundo a ordenação da razão que se chama lei (καὶ ἰδίᾳ τάς τ'οἰκήσεις καὶ τὰς πόλεις διοικεῖν, τὴν τοῦ νοῦ διανομὴν ἐπονομάζοντας νόμον – Pl. Lg. IV. 714a).
Assim, ao recorrer a uma terminologia estoica sobre a lei natural, Cícero manejava um conceito que, aos seus olhos, representava uma continuidade da própria doutrina platônica já traçada nas Leis (Atkins, 2013, p. 166).[42]
Nesse sentido, Horsley (1978, p. 35-59) demonstrou que a imagem de um Deus legislador guarda mais afinidade com o Timeu e as Leis de Platão. As Leis são inauguradas pela palavra “Deus” (Θεὸς) para, logo em seguida, atribuir-se a Zeus e a Apolo a autoria divina da legislação de Creta e de Esparta (Pl. Lg. I. 624a). Cícero distingue claramente a lei, seu autor divino e a razão, valendo-se do vocábulo latino mens (mente) e seu correspondente grego nous de modo intercambiável com o conceito de ratio, ao contrário dos estoicos que recorriam com mais frequência ao termo logos e geralmente unificavam Deus, logos e nomos. Em suma, segundo Horsley, a concepção de Cícero se afasta do imanentismo estoico para adotar a concepção de uma lei transcendente que pode ser acessada racionalmente por meio da observação da ordem natural e do autoconhecimento. A máxima délfica do autoconhecimento (γνῶθι σεαυτόν), em especial, deriva de uma linguagem tipicamente platônica que concebe a razão como a imagem consagrada de um elemento divino presente no Homem.
Boyancé (1975, p. 23-26) prestou inegável contribuição ao destacar a influência do Primeiro Alcibíades e da teoria do conhecimento inato em Leg. I. 27-30 e 58-63, contrapondo-se aos que sustentam que Cícero teria se valido da teoria estoica das koinai ennoiai. Segundo demonstrou Boyancé, Cícero reproduz a definição da filosofia exposta no Timeu (47b) e como ponto de partida ao estudo filosófico, estabelece a máxima délfica do autoconhecimento na condição de um meio de acesso ao nous divino, através da contemplação da alma e do intelecto em que esboçadas as noções primárias de todas as coisas. Em seguida, Cícero abordará sucessivamente as três grandes temáticas da filosofia segundo uma divisão em moral, física e dialética, acolhendo a linha interpretativa de Antíoco de Ascalão, seu antigo mestre quando de sua viagem à Grécia (79 A.E.C).[43]
Em um panorama mais amplo, não há como conjugar em termos de equivalência estrita a postura apolítica estoica com as explícitas aspirações pragmáticas vinculadas ao projeto filosófico de Cícero (Verdross, 1983, p. 84). Ainda que Cícero tenha feito remissão à doutrina estoica da comunidade universal dos homens, sua perspectiva estava, sobretudo, voltada às concretas problemáticas que assolavam a realidade romana (Ferrary, 2007, p. 68). Nesse sentido, Cícero guardou maior proximidade a Platão ao encontrar na filosofia um meio eficaz à intervenção salutífera no cenário político.
CONCLUSÃO
Partindo da provocação de Quintus dirigida à Cícero em Leg. II. 17, buscou-se elucidar no presente percurso investigativo a natureza, a extensão e as consequências da recepção do pensamento platônico no De Legibus.
Em relação à natureza e à extensão, constatou-se que a recepção empreendida por Cícero não se restringia à esfera literária, compreendendo um aporte de caráter conceitual que se estende ao longo de todo o diálogo, na forma de premissas tanto metodológicas quanto filosóficas. Nota-se, portanto, uma verdadeira subversão da visão predominante durante o século XIX, segundo a qual a inspiração platônica sobre o De Legibus se limitaria ao plano formal de um livre exercício literário, alcançando-se a conclusão oposta no sentido de que sob a forma de uma terminologia marcadamente estoica, Cícero incorporou conceitos substancialmente platônicos, fornecidos ora diretamente pela obra de Platão, ora por meio das interpretações posteriores que lhe foram atribuídas no âmbito da Academia ou mesmo do Pórtico.
O platonismo se reflete no De Legibus na forma de um otimismo moderado pelas circunstâncias concretas da realidade romana, buscando-se equilibrar o ideal com o possível e o necessário, do mesmo modo que Platão procedera em suas Leis. Cícero, então, atua na condição de um interlocutor direto de Platão, empreendendo uma troca filosófica inovadora e criativa, cujo resultado pretendido se situa no contexto de um projeto maior, consistente na construção de um corpus filosófico próprio e coerente; este é o sentido subjacente à afirmação de Cícero de que ele pretendia ser inteiramente ele mesmo (Leg. II. 17).
No entanto, a ênfase ética na construção de um fundamento seguro e transcendente às leis e aos costumes ancestrais romanos não resultou na tomada de uma postura dogmática. Ao contrário, no curso de suas falas, Cícero preserva a liberdade de seu juízo deliberativo. Malgrado ofuscada a dúvida cética, o percurso metodológico adotado por Cícero deixa claro que o maior grau de certeza passível de ser alcançado se restringia ao provável (probabile), segundo sinalizasse a convergência das opiniões dos homens mais sábios.
Vale destacar, nesse passo, a advertência de Carlos Lévy, no sentido de que a ânsia exacerbada por enquadrar Cícero nesta ou naquela escola, segundo uma lógica binária, desconsidera a complexidade e, consequentemente, a riqueza subjacente ao psiquismo humano, terminando por deixar em segundo plano o valor intrínseco de sua obra:
No fundo, se levarmos em conta a totalidade da sua obra, o que Cícero terá trazido de mais novo em relação às suas fontes académicas e estoicas, e que marcará toda a filosofia romana, consiste na ideia de que a psique humana é uma realidade demasiado complexa para necessariamente se deixar confinar e compreender dentro da mecânica binária da concordância. Cícero jamais é apenas um cético, porque com ele, platônico e acadêmico, o ceticismo sempre carrega consigo sua própria transcendência. (Lévy, 2017, p. 22).[44]
Assim, para além da aparente segurança obtida pelo enquadramento artificial de Cícero em determinada moldura estanque, pode-se cogitar de uma leitura mais abrangente, contextualizada e polifônica de sua obra, no sentido em que interpretada a obra platônica, por meio da qual as aparentes dissonâncias externadas entre os vários personagens de seus diálogos sejam articuladas em uma harmonia dialética. Como recomenda Altman (2016, XX), “não se deve ser dogmático quanto ao apego de Cícero ao ceticismo. Acima de tudo, há a vida de Cícero como um todo a ser considerada.”[45]
Conforme salienta Ferrary (2007, p. 65), ao comentar a analogia de Cícero entre a influência dos líderes e a influência da música sobre os costumes populares: “a analogia musical mostra que da diversidade pode nascer a harmonia e a concórdia, desde que haja algo que una os elementos, não que os assimile uns aos outros: este é o papel do prudens”.[46] No De Legibus, Cícero assume precisamente a função de um prudens, buscando extrair a harmonia e a concórdia em prol de um objetivo maior: “consolidar os Estados, fortalecer as cidades e curar os males dos povos” (“ad res publicas firmandas id est ad stabiliendas res, sanandos populos” – Leg. I. 37).
Cícero era um retórico e, como tal, era perito em expor e refutar, dialeticamente, o mesmo argumento, “trabalhar os argumentos de um lado e de outro não só se adequava às suas preferências e capacidades como advogado, como lhe dava a oportunidade de pôr em prática e aperfeiçoar a sensatez e a hesitação do método acadêmico que lhe eram naturais (Schofield, 2009, p. 65).[47] Contudo, ao redigir o De Legibus, importava para Cícero, sobretudo, extrair um acordo entre as opiniões dos doctissimis viris (Leg. I. 18 e 52) para fornecer um pilar ético que salvaguardasse as leis e as instituições republicanas de qualquer desvio daquele curso histórico cujo ápice fora alcançado na república de Cipião. Na conclusão de Annas (2013, 221), “a excelência (em geral) do direito romano é, portanto, endossada pelo raciocínio de todos os sábios, que, na medida em que são sábios, formam uma comunidade de sábios entre si de uma forma que transcende suas comunidades reais.”[48]
Dito em outras palavras, Cícero pretendia demonstrar que, à exceção do epicurismo, as grandes escolas filosóficas de seu tempo – os estoicos, os peripatéticos, e a Academia – convergiam no sentido de que a lei deve incorporar um conteúdo moral que pulsa na consciência dos homens e se reflete, objetivamente, na ordem natural.[49]
Outra não é a opinião de Powell (1998, XIV-XV) ao destacar que Cícero pretendia se retratar no De Legibus sob o manto de um legislador platônico e todo o seu edifício legislativo dependia de premissas seguras, imunes à dúvida cética, daí seu distanciamento estratégico da postura questionadora da Nova Academia (Leg. I. 39).[50]
Nessa linha, pode-se concluir que, contrariamente à percepção de Quintus em Leg. II. 17, Platão não forneceu a Cícero um modelo circunscrito à inspiração literária (orationis genus). As constantes remissões a Platão ao longo do De Legibus não são acidentais ou meramente cosméticas, mas sinalizam, como um bordão que acompanha o curso do diálogo, um elo substancial de integração que Cícero, conscientemente, pretendia destacar e trazer à tona ao longo da obra.
Segundo expôs Auvray-Assayas, para além dos debates relativos às específicas fontes ou afiliações filosóficas de Cícero, Platão representa o eixo que confere unidade à obra ciceroniana a partir de seus três diálogos políticos (De Oratore, De Re Publica e De Legibus):
Em todo o caso, a onipresença “subterrânea” de Platão é o que confere unidade à obra de Cícero a partir dos três diálogos políticos Sobre o Orador, A República e o Tratado das Leis, [...] cuja sucessão mostra claramente um percurso metódico. O leitor é convidado a não separar os debates sobre epistemologia, ética e física das questões políticas e cosmológicas levantadas nos primeiros diálogos. (Auvray-Assayas, 2006, p. 33-34).[51]
Ao oferecer um diálogo sobre as leis moldado à realidade romana, em continuidade às reflexões sobre a optima re publica, Cícero se autoidentificava sob o aspecto existencial com Platão. Essa circunstância significa que, para Cícero, o recurso à filosofia não era um mero artifício de retórica ou um consolo momentâneo, mas um modo integral de vida, uma ars vivendi (Fin. 1. 13).
Assim, a admiração que Cícero cultivava por Platão desde o início de sua obra, assumirá a forma de um paradigma humano e filosófico que paulatinamente se intensificará graças a um contexto pessoal de maior introspecção e amadurecimento que moldaria, em definitivo, sua personalidade filosófica. [52]
O “homo platonicus” que Cícero pretendia corporificar no De Legibus recorreu à filosofia como um poderoso instrumento capaz de restaurar a paz e a grandeza de Roma. Trilhando os passos de Platão em suas Leis, Cícero surge como um legislador preocupado com a convergência entre a República, seus dirigentes e cidadãos ao primado da justiça, valendo-se da lei em sua íntima conexão com a razão, para orientar os homens à virtude e à felicidade. Contudo, se ao estrangeiro Ateniense relevavam, em igual medida, os elementos persuasivo e cogente da lei, para Cícero importava, sobretudo, o recurso à persuasão, pois as suas leis, com pequenas modificações, já existiam na realidade histórica romana.
Diversamente do estrangeiro Ateniense, Cícero não era um forasteiro em uma terra estranha, mas um homem intimamente vinculado e comprometido com a cultura romana. No De Legibus, a condição de estrangeira estava reservada à própria filosofia que seria apresentada e integrada à lex romana sob o patrocínio de Cícero. O percurso, portanto, era inverso, na medida em que enquanto em Atenas o nous platônico precedeu e demandava a construção de uma nova sociedade, em Roma, eram as leis e a república que demandavam uma justificação de caráter filosófico que lhes garantisse continuidade e coesão.
Cícero, portanto, concebia-se como um ator político privilegiado no curso da história romana, pois tinha diante de si uma optima re publica, dotada de leis compatíveis com o próprio ordenamento racional do cosmos, restando-lhe empreender um esforço de conscientização coletiva sobre a verdadeira grandeza de Roma, o substrato vital que lhe diferenciava de todos os outros povos.
Imbuído dessa consciência que seria a fonte de muitas de suas angústias, Cícero, no auge de sua carreira política, optou por se apresentar à opinião pública romana como um “homo platonicus”, ciente das implicações políticas e filosóficas do título (Boyancé, 1970, p. 226). Nesse cenário, um dos propósitos aos quais o De Legibus serviria, caso publicado durante a vida de Cícero, seria precisamente o de consagrar a “primeira manifestação pública e quase religiosamente solene de um Cícero filósofo” (Boyancé, 1975, p. 38).[53]
Na síntese de Görler, “foi precisamente na combinação de filosofia e política que Cícero vislumbrou, retomando as ideias platônicas, a salvação para a República Romana.” (Görler, 2004, p. 164).[54]
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* Mestre em Direito pela Universidade Gama Filho (UGF/RJ). Doutor em Direito pela Universidade Veiga de Almeida (UVA/RJ). Doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ). Estágio pós-doutoral em História Antiga pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Doutorando no Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Metafísica da UnB (Universidade de Brasilia).
[1] Ressalvada expressa indicação, as traduções da obra de Cícero foram extraídas das versões brasileiras de Bruno Fregni Bassetto (As Leis, EDUFU/Unicamp, 2022 e Discussões Tusculanas, EDUFU, 2014), de Angélica Chiapeta (Dos Deveres, Martins Fontes, 1999) e de Carlos Ancêde Nougué (Do Sumo Bem e do Sumo Mal, Martins Fontes, 2020).
[2] No original: “Platon n’y apparaît que rarement, et il y figure par les éloges mêmes que lui donne Cicéron, plus que par les emprunts qu’il lui fait. Ce que Cicéron imite surtout de Platon, c’est le style.”
[3] Para uma outra tentativa de esclarecer a provocação de Quintus, vide Annas, 2013, p. 206-224.
[4] Nesse sentido: “Ao tempo em que os diálogos tipicamente educacionais, como De Oratore, De Re Publica e De Legibus, foram redigidos, Cícero se viu temporariamente excluído da vida política, mas, apesar de tudo, ele pretendia recuperar sua influência sobre o destino da res publica, principalmente por meio de seus próprios diálogos político-pedagógicos.” (Zoll, 1962, p. 150). No original: “Zur Zeit als die charakteristischen Bildungsdialoge wie De oratore, De republica, De legibus entstanden, sah sich Cicero zwar vom politischen Leben zeitweise verdrängt, durfte aber trotz allem hoffen, wieder Einfluß auf das Schicksal der res publica, nicht zuletzt durch seine eigenen staatspolitisch erzieherischen Dialogschriften, gewinnen zu können.”
[5] No original: “Por outra parte, el nervio de la ciência clásica del Derecho es la casuística, esto es, el estudio exhaustivo y entusiasta de caso. El Derecho romano es um Derecho de casos, lo mismo que el Derecho inglés es el case law. Las ideas jurídicas romanas se han ido induciendo em gran parte de los casos; no fueron creadas, como em los Derechos continentales, por um legislador. Por esta razón, los principios del Derecho romano son mucho más dúctiles que los de los Derechos actuales.”
[6] O dever de participação ativa na vida política será retomado em Off. I. 22: “Sed quoniam, ut praeclare scriptum est a Platone, non nobis solum nati sumus ortusque nostri partem patria vindicat, partem amici, atque, ut placet Stoicis, quae in terris gignantur, ad usum hominum omnia creari, homines autem hominum causa esse generatos, ut ipsi inter se aliis alii prodesse possent, in hoc naturam debemus ducem sequi, communes utilitates in medium adferre, mutatione officiorum, dando accipiendo, tum artibus, tum opera, tum facultatibus devincire hominum inter homines societatem.” Em tradução: “mas porque, como escreveu admiravelmente Platão, não nascemos apenas para nós, e a pátria reivindica parte de nosso nascimento e os amigos outra; e, como querem os estoicos, todas as coisas geradas na Terra o foram para uso dos homens, a fim de que entre si se ajudassem, nisso devemos tomar a natureza por guia: dividimos ao meio as utilidades comuns pela troca de favores, dando e recebendo; e, ora pelas artes, ora pelo trabalho, ora pela competência, unamos a sociedade dos homens entre os homens.”
[7] “Graecia capta ferum victorem cepit, et artes intulit agresti Latio.” (Ep. II. 1. 156). Em tradução nossa: “A Grécia cativa conquistou seu feroz vencedor, introduzindo as artes no agreste Lácio.”
[8] No original: “omnia nostros aut invenisse per se sapientius quam Graecos aut accepta ab illis fecisse meliora, quae quidem digna statuissent, in quibus elaborarent.”
[9] No original, respectivamente, “vir doctissimus [...] gravissimus philosophorum omnium” (Leg. II. 14), “sapientissimus Graeciae vir longeque doctissimus” (Leg. II. 39), e “divinum illum virum” (Leg. III.1).”
[10] No original: “atqui si quaeris ego quid exspectem, quoniam scriptum est a te de optimo rei publicae statu, consequens esse videtur ut scribas tu idem de legibus; sic enim fecisse video Platonem illum tuum, quem tu admiraris, quem omnibus anteponis, quem maxime diligis.”
[11] Acerca do recurso de Platão à retórica persuasiva nas Leis, vide Brisson, 2012, 86-87.
[12] Cícero também é referido como “homo platonicus” em Q. Cic. Comm. Pet. 46.
[13] Para uma análise sobre a autoidentificação de Cícero com Platão em sua correspondência, vide Schofield, 2022.
[14] Acerca das considerações de Cícero sobre a lei natural, conclui Lévy no sentido do “extraordinário otimismo do De Legibus”, asseverando que “embora plausível que o Arpinate não tivesse muitas ilusões sobre o efeito que a afirmação do caráter natural e universal do mos maiorum teria diante do desencadeamento da violência, ao menos, ele lançou as sementes da reforma política e moral que se daria sob o Principado. Cícero teve razão demasiado cedo e, por isso, é particularmente interessante estudar se a provação da guerra civil e da ditadura teve consequências em sua concepção da relação entre a natureza, a história e a sociedade. No original: “De ces quelques remarques sur la loi naturelle nous pouvons conclure à l'extraordinaire optimisme du De legibus. S'il est plausible que l'Arpinate ne se faisait pas beaucoup d'illusions sur l'effet qu'aurait, face au déchaînement de la violence, l'affirmation du caractère naturel et universel du mos maiorum, il n'en jetait pas moins les germes de la réforme politique et morale qui sera celle du Principat. Cicéron eut raison trop tôt et il est donc tout particulièrement intéressant d'étudier si l'épreuve de la guerre civile et de la dictature eut des conséquences sur sa conception de la relation entre la nature, l'histoire et la société.” (Lévy, 1992, p. 521).
[15] Nesse sentido, vide Altman (2016, XXIII): “A morte da filha de Cícero, Túlia, em 45, é a grande perda pessoal ou privada que lança uma sombra frutífera sobre a filosofia tardia de Cícero; o colapso da oposição armada a Júlio César – simbolizado pelo suicídio de Catão em 46 – é seu análogo cívico e público. Pode-se muito bem questionar como uma sombra pode ser chamada de “frutífera”. Para começar, as perdas tornaram possível o conjunto de escritos que chamo de "filosofia tardia de Cícero": a morte de Túlia trouxe à tona sua maior contribuição original ao platonismo nas Disputas Tusculanas, e a vitória de César sobre a República deu-lhe o pretexto para se tornar o que sempre fora: um filósofo ativo que ensina filosofia. Não fosse o fato de que a atividade política em defesa da República era agora impossível, Cícero jamais se teria dado permissão para se dedicar à escrita do espantoso manancial de livros que escreveu.” No original: “The death of Cicero’s daughter Tullia in 45 is the great personal or private loss that casts a fructifying shadow over Cicero’s late philosophy; the collapse of armed opposition to Julius Caesar – symbolized by Cato’s suicide in 46 – is its civic and public analogue. One might well wonder how a shadow can be called “fructifying.” To begin with, the twin losses made the body of writings I am calling “Cicero’s late philosophy” possible: Tullia’s death brought forth his greatest original contribution to Platonism in the Tusculan Disputations, and Caesar’s victory over the Republic gave him the excuse to become what he had always been: an active philosopher who teaches philosophy. Had it not been for the fact that political activity in defense of the Republic was now impossible, Cicero would never have given himself permission to devote himself to writing the amazing flurry of books that he did.”
[16] Sobre as funções da utopia em Cícero, vide Atkins (2013, p. 231-237). Segundo Atkins, a utopia exerce três papéis fundamentais em Cícero, auxilia na compreensão da natureza humana e de sua inevitável propensão a uma sociedade boa e justa; ressalta os traços inerentes à realidade por meio de um contraste com um modelo ideal depurado; e neutraliza um conformismo prematuro, servindo de guia e estímulo ao estadista em seu percurso político. Cícero, contudo, seria um antecipador do realismo ao refutar a implementação de modelos utópicos. A utopia, portanto, exerceria na obra de Cícero o papel de um modelo ideal, que deve orientar e estimular as potencialidades da atividade política. Em arremate, sustenta Atkins que “como nas Leis de Platão, Cícero extrai a seguinte conclusão: o que é melhor deve ceder ao que é praticável. Dada a natureza humana, a implementação da utopia não é apenas impossível, mas também perigosa.” Ainda, sobre as possíveis pretensões político-pragmáticas de Cícero no De Legibus, vide Girardet, 1983.
[17] Schofield (2009, p. 67) concorda com a designação formulada por Paul MacKendrick para se referir aos diálogos de Cícero como diálogos-tratado (“dialogue-treatise”), na medida em que sob a forma dialógica, apresentam de modo sistemático determinada questão filosófica.
[18] Neste sentido: “the very idea of philosophy as a matter of dialogue, conversation, to which Cicero was evidently firmly wedded, is above all a Platonic inheritance.” (Schofield, 2022, p. 91).
[19] A percepção de Cícero não era estranha aos intérpretes antigos de Platão. Diógenes Laércio, por exemplo, considerava que Platão expressava suas opiniões pessoais por meio de Sócrates, Timeu, do estrangeiro Ateniense e do hóspede eleático (D. L. III. 52).
[20] Nesse sentido, vide Schofield, 2009, p. 76: “But when Cicero gives himself a leading role in dialogues of the later cycle, it’s in a very different mode from the one he takes in the De Legibus. De Legibus is still a conversational Platonic dialogue, the only philosophical dialogue by Cicero written throughout as script not report, and in other ways too designed to evoke specific Platonic memories. Cicero’s own part is roughly comparable with the Athenian Stranger’s role in the Laws.”
[21] Leg. II. 5: “sic nos et eam patriam dicimus, ubi nati, et illam a qua excepti sumus. Sed necesse est caritate eam praestare, qua rei publicae nomen universae civitati est; pro qua mori et cui nos totos dedere et in qua nostra omnia ponere et quasi consecrare debemus. Dulcis autem non multo secus est ea, quae genuit, quam illa, quae excepit. Itaque ego hanc meam esse patriam prorsus numquam negabo, dum illa sit maior, haec in ea contineatur.” Em tradução: “do mesmo modo, nós consideramos nossa pátria aquela em que nascemos como também aquela pela qual fomos recebidos. É preciso, porém, distingui-la por meio de nosso afeto, pelo que se declara o Estado como nossa comunidade única. Por essa comunidade temos o dever de morrer, de nos entregarmos totalmente a ela e nela colocarmos e lhe dedicarmos tudo o que temos. Ora, não é muito diferente o contentamento proveniente daquela que nos gerou em relação à que nos acolheu. Por isso, eu nunca negarei, de forma alguma, que esta é minha pátria, embora aquela seja mais ampla e esta esteja contida naquela.”
[22] No original: “Plato videlicet hoc quoque legis putavit esse, persuadere aliquid, non omnia vi ac minis cogere.”
[23] No original: “Nihil est enim exitiosius civitatibus, nihil tam contrarium iuri ac legibus, nihil minus civile et humanum quam composita et constituta re publica quicquam agi per vim.”
[24] Como aponta Girardet (1983, p. 223), segundo Cícero “apenas um sapiens é legitimado para legislar: só ele encarna a perfecta natura hominis, a fons legum et iuris; portanto, quando se dizia, repetidamente, que as regras “verdadeiras” e as normas dignas de serem qualificadas como leges ou iura eram “por natureza”, isso significava que elas eram o trabalho de um sapiens ou de sapientes.” No original: “Nach diesem ist nur ein sapiens zur Gesetzgebung legitimiert: er allein verkörpert die perfecta natura hominis, den fons legum et iuris; daher, wenn es von „wahren“, den Namen leges bzw. iura verdienenden Vorschriften und Normen immer wieder hieß, sie seien „von Natur“, besagte dies, daß sie das Werk eines sapiens bzw. von sapientes sind.”
[25] Sobre o paralelo entre a alma e o Estado em Cícero, vide Boyancé, 1970 p. 239-240.
[26] As traduções das Leis de Platão são de Carlos Alberto Nunes.
[27] Respectivamente, sobre a música: Pl. Lg. II. 655a, 673a; sobre os bens ofertados pelos ímpios: Pl. Lg. IV. 716d-717a; sobre os sepulcros: Pl. Leg. XII. 958d-e; e sobre os bens consagrados aos deuses: Pl. Lg. XII. 955e-956b.
[28] No original: “Natura enim iuris explicanda nobis est eaque ab hominis repetenda natura, considerandae legis quibus civitates regi debeant, tum haec tractanda, quar composita sunt et descripta iura et iussa populorum, in quibus ne nostri quidem populi latebunt quae vocantur iura civilia.”
[29] No mesmo sentido, Schofield, 2022, p. 98. Girardet (1983) defende que Cícero não pretendia extrair apenas uma diretriz ética às leis romanas, mas estabelecer um corpo de leis, um codex ciceronianus, com validade universal. As leis propostas por Cícero seriam, portanto, o próprio direito natural (“Naturgesetz und geschriebenes Gesetz sind in de legibus nicht zwei wenn auch aufeinander bezogene oder zu beziehende, so doch verschiedene Dinge.” p. 74-75). Segundo Girardet, Cícero desenvolve, inicialmente, uma investigação sobre a fonte do direito (a recta ratio ínsita à natureza, que no plano individual seria a ratio prudens), daí extraindo o corpo de leis proposto nos segundo e terceiro livros. Assim, Cícero não estaria limitado aos termos da moderna dicotomia “lei natural/lei positiva”, mas pretendia implementar uma verdadeira reforma política em Roma por meio de seu código de leis naturais. Atkins (2013, p. 222), por seu turno, sustenta que Cícero, tal como Platão, vale-se da construção de um paradigma ideal para defender a validade das leis humanas que se amoldassem à lei natural. Contudo Cícero se apoiaria em uma tripartição do direito, compreendendo a lei natural (livro I), as melhores leis adaptadas ao melhor regime (livros II e III), que cumpririam o papel de um estatuto de transição entre a lei natural e a lei positiva, e as leis específicas de cada povo (o ius civile).
[30] Na interpretação de Atkins (2013, p. 197), “a autoridade da lei natural deve sustentar as leis extraídas do costume romano, da doutrina grega e das próprias experiências de Marcus como estadista romano. As preocupações de Cícero estão mais próximas das de Platão do que das de Zeno, na medida em que ele sugere que o natural deve apoiar, em vez de minar, a autoridade do costume. No original: “the authority of natural law must uphold laws drawn from roman custom, greek doctrine, and marcus’ own experiences as a roman statesman. 30 cicero’s concerns are closer to plato’s than to Zeno’s insofar as he suggests that the natural must support rather than undermine the authority of the customary.”
[31] No original: “Quid quod multa perniciose, multa pestifere sciscuntur in populis, quae non magis legis nomen attingunt quam si latrones aliquas consessu suo sanxerint? Nam neque medicorum praecepta dici vere possint, si quae inscii imperitique pro salutaribus mortifera conscripserint, neque in populo lex cuicuimodi fuerit illa, etiamsi perniciosum aliquid populus acceperit. Ergo est lex iustorum iniustorumque distinctio, ad illam antiquissimam et rerum omnium principem expressa naturam, ad quam leges hominum deriguntur, quae supplicio improbos afficiunt, defendunt ac tuentur bonos.”
[32] Vide Brisson, 2012, p. 75, e Ferrari, 2022, p. 42.
[33] No original: “vim habere ad recte facta vocandi et a peccatis avocandi, quae vis non modo senior est quam aetas populorum et civitatum, sed aequalis illius caelum atque terras tuentis et regentis dei.” Neste sentido, vide Annas, 2013, p. 216.
[34] No original: “he sees Rome’s salvation from the civil wars not in terms of radical social reform but in terms of a return to old Roman virtues, to be achieved by a return to the laws of the ideal Roman past.”
[35] No original: “sine quo nec domus nulla nec civitas nec gens nec hominum universum genus stare, nec rerum natura omnis nec ipse mundus potest.”
[36] A questão permanece controversa. Para uma visão abrangente das duas principais posições, vide Glucker (2023, p. 288-324) e Görler (2002, p. 240-267).
[37] Tradução nossa. No original: “lex est ratio summa insita in natura, quae iubet ea, quae facienda sunt, prohibetque contraria”
[38] Defenderam esta orientação, dentre outros, Adrien Turnèbe, humanista francês do sec. XVI (1824, p. 747-752), Adolf Du Mesnil (1879, p. 30), Max Pohlenz (2022, p. 393), Camille Thiaucourt (1885, p. 27) e, recentemente, Andrew Dyck (2004, p. 109-110). A primeira edição conhecida dos comentários de Turnèbe foi publicada em 1538, mas sua autoria passou a ser destacada apenas na edição de 1552 (Azadian, 2024, p. 71). Em 1554, Turnèbe publicou uma pequena apologia, trazendo argumentos favoráveis à sua tese de que Cícero extraiu do estoicismo a doutrina desenvolvida no primeiro livro do De Legibus (Apologia adversus quorundam calumnias, ad librum primum Ciceronis De Legibus), no que se contrapunha diretamente aos comentários de Pierre de La Ramée (Azadian, 2024, p. 76-77).
[39] Para um cotejo entre a definição de Cícero e os fragmentos estoicos, vide Dyck, 2004, p. 109-110.
[40] Conforme pontua Atkins (2013, p. 161), a centralidade outrora exercida pelo primeiro livro do De Legibus, especialmente no âmbito da Quellenforschung (pesquisa das fontes), derivou da percepção de que as suas exposições poderiam refletir o mais longo e completo tratamento preservado sobre a doutrina estoica da lei natural. Neste sentido, grande parte das exposições sobre a lei natural do primeiro livro do De Legibus se encontra reproduzida nos Stoicorum Veterum Fragmenta de Von Arnin (1964, v. 3).
[41] No original: “Still, it would be mistaken to downplay the Platonic outlook and inspiration of these intellectual enterprises as a whole, which are at any rate obvious in the case of de Re Publica and de Legibus but also inform the de Oratore, especially in how each work is set up as an inquiry in search of perfection. Unlike Plato, however, who goes beyond imagined perfection to endow it with metaphysical reality, Cicero correlates imagined perfection with its empirical realisation, in what amounts to a brand of thought that one could label “Platonic realism” or “the incarnation of the Forms”: it consists of a peculiar merging of Greek metaphysics and Roman reality. In the de Oratore, the instantiation of the ideal is prospective, insofar as the ideal orator is a figure of the future for Cicero’s characters (though the discussion makes it clear that his coming is nigh); in the de Re Publica, it is decidedly retrospective: both Cicero and his characters situate the ideal commonwealth in the distant past; and in the de Legibus, it is both retrospective and prospective at once: the dialogue develops a code of law that comes close to being identical with, but also strategically reforms, ancestral Roman law.”
[42] No mesmo sentido, vide Schofield, 2021, p. 110: “Moreover to his mind the Stoic theory of law may well have looked to him (and indeed to the Stoics themselves) like a more developed version of the idea of law in Plato’s own Laws. In On laws he simply calls it the ‘view of the wisest’, where law itself is characterized in the most general terms as ‘something eternal that rules the entire universe through wisdom in command and prohibition’ (Leg. 2.8).”
[43] Nesta linha, Atkins (2013, p. 164-165) ressalta que, “embora grande parte do seu argumento esteja em dívida com o estoicismo, Marcus apresenta o seu tratamento da lei natural como um comentário seletivo sobre um tema platônico refratado por meio de uma inteligente apropriação do pensamento de dois dos seus professores que representavam interpretações concorrentes de Platão - Antíoco e Filo de Larissa.” No original: “Although much of his argument is indebted to Stoicism, Marcus presents his treatment of natural law as a selective commentary on a Platonic theme refracted through an intelligent appropriation of the thought of two of his teachers who represented competing interpretations of Plato – antiochus and Philo of larissa.”
[44] No original: “Au fond, si l’on prend en compte la totalité de son œuvre, ce que Cicéron aura apporté de plus neuf par rapport à ses sources académiciennes et stoïciennes, et qui marquera toute la philosophie romaine, c’est l’idée que le psychisme humain est une réalité trop complexe pour se laisser nécessairement enfermer et comprendre dans la mécanique binaire de l’assentiment. Cicéron n’est jamais seulement sceptique, car chez lui, platonicien et académicien, le scepticisme porte toujours en lui son propre dépassement.”
[45] No original: “one ought not to be dogmatic about Cicero’s attachment to skepticism. Above all there is Cicero’s life as a whole to be considered.”
[46] No original: “the musical analogy shows that out of diversity there may come harmony and concord, provided that there is something to join the elements together, not to assimilate them to each other: this is the role of the prudens.”
[47] No original: “working through the arguments on either side not only suited his tastes and skills as an advocate, but gave him the opportunity to enact and perfect the judiciousness and hesitation of the Academic method that were second nature to him.”
[48] No original: “The excellence (in the main) of Roman law is thus endorsed by the reasoning of all wise people, who, insofar as they are wise, form a community of the wise with one another in a way transcending their actual communities.”
[49] Sobre a oposição de Cícero aos epicuristas, vide Beltrão, 2020.
[50] Neste sentido, vide Lévy, 1992, p. 516, e Atkins, 2013, p. 177.
[51] No original: “L’omniprésence “souterraine” de Platon est en tout cas ce qui confère son unité à l’œuvre de Cicéron depuis les trois dialogues politiques De l’orateur, La République et le Traité des lois [...] dont la succession restitue clairement un parcours méthodique. Aussi le lecteur est-il invité à ne pas séparer les débats sur l’épistémologie, sur l’éthique et sur la physique des questions politiques et cosmologiques mises en place dans les premiers dialogues.”
[52] Na percepção de Dyck (2004, p. 26), o De Legibus, juntamente com o Brutus, podem ser elencadas entre as obras de maior introspecção e autoapresentação de Cícero.
[53] Altman (2016, p. 38) argumenta que Cícero teria removido o De Legibus do catálogo de sua obra no De Divinatione, precisamente em razão do explícito e indisfarçado platonismo adotado por seu respectivo personagem. Segundo Altman, por motivos pedagógicos, Cícero, ao longo de sua obra, teria se esforçado para engendrar uma persona literária própria que não o revelasse com tanta transparência ao público.
[54] No original: “Gerade in der Verbindung von Philosophie und Politik sah er ja, platonische Gedanken aufgreifend, Heil und Rettung fur die rornische Republik.”