MIME-Version: 1.0 Content-Type: multipart/related; boundary="----=_NextPart_01DC5369.91090070" Este documento é uma Página da Web de Arquivo Único, também conhecido como Arquivo Web. Se você estiver lendo essa mensagem, o seu navegador ou editor não oferece suporte ao Arquivo Web. Baixe um navegador que ofereça suporte ao Arquivo Web. ------=_NextPart_01DC5369.91090070 Content-Location: file:///C:/0F85E4AF/file3071.htm Content-Transfer-Encoding: quoted-printable Content-Type: text/html; charset="us-ascii"
A
INSTITUIÇÃO DA JUSTIÇA EM FACE DAS INJUSTIÇAS
EPISTÊMICAS DA VIOLÊNCIA SEXUAL
Justice institutions facing epistemic injustices in sexual violence
Miriam Jerade<=
/span>=
*
=
Resu=
mo: O presente artigo questiona a possibilida=
de
de a justiça, entendida como instituição, se transform=
ar
ao reconhecer como injustiças estruturais as injustiças
epistémicas relacionadas com o abuso sexual. Para isso, analisarei a
decisão da juíza Rosemary Aquilina de convidar mais de 150
sobreviventes de abuso sexual para prestar depoimento no julgamento de Larry
Nassar. Defendo que este ato de ouvir e acompanhar as sobreviventes durante=
as
audiências reconhece o valor de narrar a experiência do abuso
sexual, mostra os danos da injustiça epistémica pelos preconc=
eitos
que interferem na credibilidade das vítimas e as estruturas de poder=
que
silenciam os testemunhos. Em um segundo momento, analiso as audiência=
s em
que há uma participação coletiva das sobreviventes com=
o um
espaço de acompanhamento que as empodera enquanto sujeitos
epistêmicos e agentes morais.
Palavras-chave: injustiça epistémica; justiça epistémica; abuso sexual; Aquilina.
Abstract: This article interrogates the possibility that justice, understood a=
s an
institution, can be transformed by recognizing epistemic injustices related=
to
sexual abuse as structural injustices. To this end, I will analyze Judge
Rosemary Aquilina's decision to invite more than 150 survivors of sexual ab=
use
to testify in the Larry Nassar trial. I argue that this act of listening to=
and
accompanying survivors during the hearings recognizes the value of narrating
the experience of sexual abuse, and shows the harm of epistemic injustice d=
ue
to biases that interfere with the credibility of victims and power structur=
es
that silence testimony. In a second moment, I analyze the hearings where th=
ere
is a collective participation of survivors as a space of accompaniment that
empowers them as epistemic subjects and moral agents.
Keywords: epistemic injusti=
ce;
epistemic justice; sexual abuse; Aquilina.
INTRODUÇÃO
Este
capítulo
Em 1=
5 de
novembro de 2017, Lawrence “Larry” Nassar, antigo médico=
da
equipe olímpica de ginástica dos EUA, declarou-se culpado de
acusações de abuso sexual infantil no condado de Ingham, Michigan. A juíza Rosemary Aquilina ab=
riu a
sala do tribunal para que aproximadamente cento e cinquenta e seis
sobreviventes e suas famílias testemunhassem diante do réu
O
objetivo é mostrar a relação entre a injustiça =
epistêmica
(Fricker, 2017, 2021) e a prestaçã=
;o de
justiça no caso específico. Para permitir que todos os
testemunhos sejam ouvidos, o juiz usa a figura jurídica da declaração de impacto da
vítima
1 INJUSTIÇA EPISTÊMICA E ABUSO
SEXUAL
Não há dúvida de que o
julgamento de Larry Nassar alcançou notoriedade na mídia, pois
várias das vítimas tinham sido ou eram estrelas da equipe de
ginástica olímpica dos EUA: atletas como Simone Biles, Aly Raisman ou MacKyla Maroney. É=
fato
que o julgamento não pode ser analisado apenas em termos do
comportamento virtuoso da juíza que decidiu ouvir, mas que seu ato f=
az
parte do movimento #MeToo[4],
um movimento que reuniu talvez dezenas ou centenas de milhares de mulheres =
em todo
o mundo para apontar que esses casos não são isolados, mas
respondem a normas de masculinidade e cultura sexual. O comportamento da ju=
íza
e a particularidade do caso na compreensão de como a injustiça
epistêmica pode impossibilitar a justiça legal decorre do
movimento que se originou em outubro de 2006, difundido pela ativista
afro-americana Tarana Burke, para criar empatia=
e
convidar depoimentos, principalmente de mulheres afro-americanas vít=
imas
de abuso sexual. No entanto, a #MeToo circulou principalmente a partir de s=
ua
adoção por atrizes de Hollywood em 2017[5],
certamente fazendo uma apropriação perniciosa do termo que
beneficia grupos de poder (Rogers 2021). No caso da apropriaçã=
;o
de #Metoo, como Pohlhaus demonstrou, ela foi
direcionada verticalmente para acusar assediadores como Nassar, enquanto em=
sua
configuração inicial foi direcionada horizontalmente entre as
sobreviventes (Pohlhaus Jr., 2020, p. 245-46). =
Nesse
sentido, é vital refletir se esse caso altamente midiatizado pode, ao
mesmo tempo, silenciar outros movimentos mais marginalizados (Medina, 2013;=
Alcoff, 2018).
Da América Latina, não podemos
deixar de mencionar que, na era do #MeToo, surgiu o #niunamenos, um movimen=
to
que busca tornar visível a violência contra as mulheres na
região que lidera o mundo nessas estatísticas e sua
trágica consequência em feminicídios, um movimento que
nasceu na Argentina em 2015 e se espalhou pelo Uruguai, México,
Colômbia, Venezuela, Chile e Peru. No entanto, esses movimentos
também exigem a inclusão de populações ou grupos
nos quais o #MeToo, o #MeToo ou mobilizações semelhantes,
especialmente nas redes sociais, como o #myfirstharassment, não tive=
ram
nenhuma influência, grupos extremamente vulneráveis, como
trabalhadores domésticos ou prostitutas que, por não terem
contratos e direitos trabalhistas, estão mais expostos a abusos e
não têm nenhum mecanismo para exigir justiça. A
própria Burke denunciou que o #MeToo foi criado para mulheres e meni=
nas
afro-americanas que continuam a ser ignoradas (Burke 2017).
Nesse caso, a retransmissão das
audiências nos permite analisar os depoimentos das sobreviventes como
danos epistêmicos e a forma como a instituição da
justiça apontou a cumplicidade de instituições como a =
Federação
de Ginástica dos EUA e o Comitê Olímpico. Embora eu
concorde com Alcoff que o sensacionalismo de ce=
rtos
meios de comunicação e a apresentação de
testemunhos com Nassar na frente podem estimular o voyeurismo e revitimizar os sobreviventes (Al=
coff,
2018, p. 180-181), há uma virtude quando a instituição=
da
justiça abre espaço para a audiência coletiva de
testemunhos e confronta o silenciamento de décadas em que os testemu=
nhos
da experiência das vítimas de abuso sexual foram desacreditado=
s e
negados. Nesse sentido, como Elizabeth Anderson ressalta, a justiça
epistêmica não deve ser resolvida por uma atitude virtuosa dos
indivíduos, nesse caso, no comportamento do juiz, mas as
injustiças epistêmicas, por serem estruturais, exigem solu&cce=
dil;ões
estruturais e institucionais (Anderson, 2012, p. 167). A justiça
epistêmica exige um esforço por parte da sociedade e da
aplicação da lei para desafiar os vieses que minimizam a
credibilidade e bloqueiam a escuta do testemunho. Na verdade, a justi&ccedi=
l;a
epistêmica pode acontecer sem um processo legal, como no caso do trib=
unal
de mulheres que ocorreu na cidade de Oaxaca (México) em 29 e 30 de
novembro de 2021, composto por ativistas de direitos humanos que ouviram os
testemunhos de várias mulheres irmãs, mães ou primas q=
ue
haviam perdido um membro da família, vítima de
feminicídio, e que não tinham acesso à justiça
legal. Essa instância não foi um julgamento, mas uma
encenação em termos de justiça restaurativa (Rodr&iacu=
te;guez
Everaert, 2022). Em contraste, o caso que estam=
os
analisando nos permite ver possíveis transformações da
instituição da justiça que destaca que a injusti&ccedi=
l;a
epistêmica impediu a justiça legal por mais de duas
décadas.
A primeira vítima a depor no julgame=
nto
de Nassar, Kyle Stephens, foi a única testemunha que não era
ginasta, mas filha de amigos do médico que foi abusada sexualmente no
porão da casa da família desde os seis anos de idade, enquanto
seus pais estavam no andar de cima. Seis anos depois, aos 12 anos de idade,
Stephens decidiu confessar o abuso à sua mãe. Quando Stephens
relatou o fato ao pai, este telefonou para Nassar, que negou as
alegações e, consequentemente, forçou a filha a se
desculpar por ter inventado uma mentira vil. Quando o pai de Stephens foi
confrontado com a verdade, muitos anos depois, após a publicidade de
várias alegações de abuso sexual contra seu amigo, ele
cometeu suicídio. Esse primeiro caso resume vários tipos de
injustiça e os danos que o abuso sexual e o silenciamento do testemu=
nho
causam, não apenas às vítimas, mas também &agra=
ve;s
pessoas ao seu redor.
Talvez devêssemos refletir não
apenas sobre o que se espera dos testemunhos das vítimas de
assédio e estupro para dar-lhes crédito, mas também so=
bre
a escolha da família entre prejudicar uma criança por n&atild=
e;o
validar sua realidade ou pagar o custo do descrédito social. Uma das
grandes injustiças está em exigir consistência nos
testemunhos de eventos que são atravessados por traumas, mas a
noção de trauma pode implicar outra injustiça, a de
perceber automaticamente as vítimas como psicologicamente prejudicad=
as e
incapazes de serem objetivas (Alcoff, 2018, p. =
48).
Quando a ginasta Amanda Thomashow denuncia Nass=
ar
à Universidade Estadual de Michigan em 2014, ele se desculpa perante=
o
investigador do caso com longas explicações médicas e
vídeos de exames do assoalho pélvico, argumentando que Thomashow não entende a diferença entre=
um
ato de abuso sexual e um procedimento médico e até sugere que=
a
confusão dela pode ser decorrente de abuso sexual na infância.
Aqui, Nassar usou a figura da vítima traumatizada para manipular o
pesquisador e desacreditar o testemunho da sobrevivente, como se, em vez de=
objeto
de elaboração, o trauma representasse uma identidade
estável.
A descrença dos pais e de outras autoridades nesse caso poderia ser analisada como um caso de injustiç= ;a testemunhal: na minha opinião, é um preconceito de identidade contra a infância e a sexualidade feminina, em termos da capacidade de uma menor de idade de dar sentido à sua própria experiência, mesmo quando Stephens descreve um ato concreto (“<= span style=3D'mso-bidi-font-style:italic'>esfregou meus pés contra o pênis dele”). A maioria dos estudos sobre injustiç= ;a epistêmica, inclusive o de Fricker, cita raça, gênero ou classe como exemplos de preconceito de identid= ade. Ao exposto acima, seria importante acrescentar o preconceito epistêmi= co contra crianças, que resulta em um déficit de credibilidade devido à sua suposta imaturidade ou falta de clareza na compreensão de sua própria experiência, bem como a idei= a da infância como um estágio que se presta à fabulação (Baumtrog; Peach, 2019; Burroughs; Tollefse= n 2016; Carel; Györffy<= /span>, 2014; Herdy; Castelliano= span>, 2021). É possível que Stephens, como algumas das ginastas, não tenha inicialmente percebido a experiência com Nassar como abuso, como um ato sexual. Enquanto para um adulto o fato de Nassar penetrá-la com os dedos nus, ter uma ereção ou gemer s= eria um sinal óbvio de que o que ele estava fazendo tinha um conteú= ;do sexual que não tinha nada a ver com práticas médicas, = para meninas entre seis e quinze anos isso pode não ser tão claro.= No entanto, há o risco de desculpar Nassar e outros pedófilos co= m o modelo paternalista de sexo baseado em consentimento e de descartar o abuso sexual infantil alegando que as meninas ou meninos não se recusaram e até consentiram (Alcoff, 2018, p. 161).<= o:p>
A última a testemunhar nas
audiências foi Rachel Denhollander, que, =
na
verdade, foi a primeira a apresentar uma queixa legal contra Nassar em 2016,
embora já tivesse divulgado seu caso em 2004. D=
enhollander
foi para a faculdade de Direito depois de abandonar a ginástica. Seu
caso é interessante para entender os danos da injustiça
testemunhal porque ela trouxe uma grande quantidade de evidências
médicas e legais para provar que Nassar não realizou um exame=
do
assoalho pélvico, que ele nunca havia relatado em seus registros
médicos. Ela não apenas forneceu provas médicas e o
testemunho de três especialistas, mas também acrescentou uma c=
arta
de um promotor atestando sua probidade. A esse respeito, Dehollander
disse: “Eu estava preocupada com o fato de que, se não tivesse=
uma
documentação extensa, ninguém acreditaria em mim. Uma
preocupação que, mais tarde, descobri que era bem
fundamentada” (Denhollander, 2018). Parte=
da
falta de credibilidade decorreu do fato de Nassar ter passado seu abuso como
tratamento médico e, em várias ocasiões, ter cometido
abuso sexual enquanto as mães estavam presentes na sala de consulta,=
cobrindo
a visão das mães com uma toalha ou lençol, e a
presença delas normalizou suas ações na frente das
crianças. Esse não é um caso isolado de abuso e
silenciamento de menores em um ambiente fechado que favorece o abuso, como =
as
academias de treinamento.
Um aspecto importante dos depoimentos dos
ginastas foi que eles puderam falar sobre a confusão entre cuidado e
abuso. Um exemplo disso foi o caso de Isabell <=
span
class=3DSpellE>Hutchins, uma jovem ginasta que procurou Nassar por c=
ausa
de uma dor na perna que estava aumentando apesar das visitas diárias=
, a
ponto de ela ter de se retirar das competições. A dor persist=
iu
até que finalmente descobriu-se que era uma fratura: Nassar nunca pe=
diu
um raio X. O médico usou essa ambiguidade entre cuidado e abuso para
manipular tanto as ginastas quanto as autoridades. Quanto ao silenciamento =
das
autoridades, podemos acrescentar o caso de Larissa Boys, que acusou Nassar =
com Kathie Klages, a treinado=
ra
principal da Universidade de Michigan, condenada à prisão por
cumplicidade, que tentou convencer Boys de que ela estava confusa e que se
tratava de um procedimento médico.
2 INJUSTIÇA EPISTÊMICA E A
INSTITUIÇÃO DA JUSTIÇA
Como a injustiça epistêmica
é estrutural e se baseia em assimetrias de poder e autoridade
epistêmica, nesse caso o médico contra a jovem, a
instituição da justiça deve reconhecer seus danos e fa=
zer
mudanças estruturais. O problema nas análises da imprensa sob=
re o
julgamento de Nassar foi que o foco estava no desempenho da juíza co=
mo
uma aliada virtuosa e menos no que aconteceu na sala do tribunal com os
sobreviventes. É fato que o julgamento não pode ser analisado
apenas em termos do comportamento virtuoso da juíza que opta por ouv=
ir.
Como Elizabeth Anderson apontou, a justiça epistêmica nã=
;o
deve ser resolvida por uma atitude virtuosa dos indivíduos, nesse ca=
so,
o comportamento da juíza, mas as injustiças epistêmicas,
por serem estruturais, exigem soluções estruturais e
institucionais. A justiça epistêmica exige um esforço p=
or
parte da sociedade e da aplicação da lei para desafiar os
preconceitos que minimizam a credibilidade e bloqueiam a escuta de testemun=
hos.
A juíza Rosemary Aquilina, depois que
Nassar se declara culpado, usa a figura do teste de impacto na vítima
para transformar as audiências em um espaço para ouvir
depoimentos. Isso deu origem a um debate no campo jurídico sobre se =
um
magistrado pode tomar partido abertamente em um caso, o que no meio america=
no
é rotulado de “ativismo jurídico”. Segundo o juiz
Paul Cassel, de acordo com a jurisprudência estabelecida pela Suprema
Corte dos Estados Unidos, o momento da condenação é
distinto do julgamento e, uma vez concluídas as provas, o juiz tem o
direito de agir como a voz da comunidade que representa, entendendo esse
aspecto dentro do sistema de nomeação de juízes nos
Estados Unidos, que são eleitos pelas comunidades locais. Portanto,
não seria uma questão de parcialidade, mas sim de que um juiz
deve formar sua própria opinião durante o processo. Cassel
conclui, depois de comparar com outros casos, que a juíza Aquilina f=
oi
fiel ao devido processo legal, conforme entendido na jurisprudência
americana, e argumenta que deve ser reconhecido que o legado desse julgamen=
to
foi convidar cada uma das vítimas a testemunhar=
.
Ouvir as vítimas também não deve ser entendido como
sinônimo de preconceito (Cassel, 2009).
No entanto, Aquilina não transmitiu a
opinião da comunidade que, por duas décadas, negou o abuso
sexual, mas denunciou a responsabilidade das instituições que
silenciaram os testemunhos e fez do julgamento um espaço de escuta o=
nde
a agência epistêmica das sobreviventes poderia ser restaurada.
Autores como Jennifer Lackey, José Medin=
a,
Alice Bierria e Gaile Pohlhaus mostraram que a injustiça epistê=
;mica
diminui, anula ou subverte a agência epistêmica, seja anulando =
as
contribuições epistêmicas do testemunho, seja canceland=
o a
força ilocucionária ou bloqueando os efeitos perlocucionários
do ato de fala (Bierria, 2014; Lackey,
2020; Medina, 2020; Pohlhaus Jr., 2020). Aquili=
na
reconheceu que o peso do julgamento não estava em Nassar, mas em
estabelecer um precedente para a importância de deixar as sobrevivent=
es
falarem. Em uma palestra na Universidade do Kansas, Aqu=
ilina
declarou que as sobreviventes precisam falar: “Eu sempre deixo todas as vítimas falarem porque as
vítimas, as sobreviventes [...] precisam falar” =
(Dougan, 2019).
Graças ao movimento feminista, houve
progresso na jurisdição, e o próprio Estado de Michigan
foi excepcional nessa história, um aspecto que talvez precise ser
considerado ao avaliar o que aconteceu no julgamento de Nassar. Já na
década de 1970, ele havia introduzido mudanças importantes na
lei, negando a necessidade de uma terceira testemunha em casos de estupro e
impedindo que as vítimas fossem questionadas sobre sua
reputação ou práticas sexuais (Ga=
sh;
Harding, 2018, p. 4). Outro desenvolvimento
importante foi a mudança da regra de que o estupro era comprovado por
marcas de lesões físicas que indicavam o uso da força =
pelo
agressor quando a vítima não consentia (Du Mont;
Lee Miller; Myhr, 2003). Essas mudanças =
nas
disposições do sistema jurídico mostram claramente uma
transformação na forma como a violência sexual é
concebida. Considerando que, no caso de Aquilina=
, o
reconhecimento das sobreviventes como sobreviventes poderia transformar
socialmente a credibilidade das alegações e, assim, evitar o =
dano
epistêmico e moral causado pelo silenciamento.
Stephens ou Dehollande=
r
foram confrontadas com o descrédito como tantas outras vítima=
s.
Um dos aspectos mais terríveis da injustiça epistêmica
nesse caso é que, como a própria Deholla=
nder
apontou, se elas tivessem sido ouvidas, muitos outros abusos teriam sido
evitados. Esse julgamento é exemplar porque expôs estruturas de
poder que silenciam o testemunho e que constituíram um trauma
histórico para as mulheres[6].
Ou, como diz Medina, as vítimas de violência sexual que sofrem
injustiça epistêmica “[...] tornam-se, assim, vít=
imas
duplas: vítimas do sexismo e vítimas epistêmicas de
ambientes comunicativos e epistêmicos defeituosos que abafam ou desac=
reditam
suas vozes” (Medina, 2021, p. 243). Por sua vez, no sistema
judiciário, foi reconhecida a importância de ouvir cada
sobrevivente ou membro da família que quisesse falar. Como Brison colocou em seu próprio depoimento, a
experiência traumática do estupro exige que levemos a sé=
;rio
as narrativas em primeira pessoa como uma ferramenta epistemológica,
tanto pela dificuldade de reconstruir uma memória traumática
quanto pelos dilemas morais e políticos no uso e na negaç&ati=
lde;o
de tais narrativas (Brison, 2002, p. 87). Ver a
percepção do que acontece em seu próprio corpo afetada
pela falta de credibilidade e pelo constante silenciamento foi o que esse
julgamento expôs com a escuta coletiva de cada um dos testemunhos.
O juiz abriu um espaço dentro da
instituição da justiça para que os sobreviventes
levantassem suas vozes, vozes que resistiram ao silenciamento e ao abafamen=
to
de testemunhos como o de Stephens ou o de Denhollander=
.
Como escreveu Linda M. Alcoff (2018, p. 186), <=
span
style=3D'mso-bidi-font-style:italic'>falar tem a vantagem de passar =
do trauma
privado e individual para a esfera pública. Por um lado, a
interação social permite que sejam feitas exigências
sociais e morais. Por outro lado, falar em público dá poder
às vítimas. Alcoff (2018, p. 180)
conclui que esse é um bom motivo para acreditar que falar em
público tem efeitos políticos.
Este último é precisamente o =
que
faz com que esse julgamento ecoe o movimento #MeToo como uma demanda por
justiça epistêmica, pois, como argumenta =
Debra
L. Jackson, ao declarar “eu também”, o sujeito
epistêmico emerge no contexto de uma polifonia de vítimas que
reivindicam seu status de agentes, capazes de dar sentido à sua
experiência social e transmiti-la aos outros. O juiz tem um papel
importante no reconhecimento de cada um como um sujeito epistêmico ao=
ouvir,
sem questionar, seu testemunho. No entanto, é a vulnerabilidade
mútua que empodera os sobreviventes como sujeitos epistêmicos e
agentes morais (Jackson, 2018).
CONCLUSÃO
Vale a pena perguntar se a abertura de
audiências para os testemunhos dos sobreviventes realmente faz
justiça no sentido de provocar uma mudança nas estruturas
institucionais, especialmente quando há grande desigualdade entre
aqueles que têm acesso à justiça e aqueles que nã=
;o
têm. É verdade que isso levanta questões sobre a
eficiência de um sistema judicial, como Rachel H=
erdy
me apontou, e talvez, embora esse julgamento estabeleça um bom
precedente para a justiça epistêmica, seja necessário
pensar em instituições alternativas para abrir espaço =
para
a reparação.
No entanto, é possível vislum=
brar
um dano na midiatização do caso em que os sobreviventes foram
expostos ao público. A midiatização do caso Nassar, em
particular, e do movimento #Metoo, em geral, tem suas arestas, sendo que o
maior risco é que a credibilidade seja alcançada como um feito
individual que também transforma a sobrevivente em uma mercadoria cu=
jo
testemunho pode ser mercantilizado em uma economia de visibilidade (Banet-Weiser; Higgings, 2=
021, p. 140-141).
Entretanto, convidar todos os sobreviventes, mais de cento e cinquenta, para
dar seu testemunho evita a percepção de um feito individual.
Poderíamos falar da eficácia simbólica da lei (Segato,
2003), que leva em conta o caráter discursivo da lei que pode fazer
mudanças éticas, de modo que a midiatização des=
se
caso faz uma representação de um juiz que ouve os testemunhos=
e
dá credibilidade a eles, ao mesmo tempo que aponta para a
corresponsabilidade das instituições em um espaço cole=
tivo
de escuta.
É provável que o julgamento de
Nassar não tenha transformado a maneira pela qual a
instituição da justiça abordará no futuro a
violência sexual como uma injustiça estrutural que foi
naturalizada pelas instituições. Entretanto, defendo que esse
julgamento estabeleceu um precedente nas audiências como um ato de es=
cuta
coletiva em que a juíza deu credibilidade aos testemunhos e reconhec=
eu o
dano causado pelo silenciamento das alegações. Ao dar voz &ag=
rave;s
sobreviventes sem questionar seus testemunhos ou pedir provas que, em outros
casos, haviam sido descartadas, ela abordou a dimensão estrutural do
dano. Ao mesmo tempo, ela concentrou a justiça em ouvir os testemunh=
os,
apontando assim que, durante décadas, instituições
cúmplices perpetuaram a impunidade. É provável que as
instituições tendam ao status quo, mas o julgamento mo=
stra
como a instituição da justiça pode dar origem a uma es=
cuta
diferente dos testemunhos e reconhecer o dano da violência sexual =
211;
e também da injustiça epistêmica.
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&nb=
sp; =
&nb=
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[1] Este artigo é u= ma tradução autorizada e adaptada do texto originalmente publica= do em espanhol: Jerade, M. (2023). “Las niñas no son pequeñas toda la vida: crecen y son mujeres fuer= tes que destruyen tu mundo.” Injusticia testimonial en el caso Larry Nass= ar. Las Torres de Lucca. International Journal of Political Philosophy, [s= .l.], v. 12, n. 2, p. 279-288. DOI: https://doi.org/10.5209/ltdl.8337= 1. A versão original encontra-se licenciada sob Creative Commons Atribuição 4.0 (CC BY 4.0), o que permite sua reprodução, tradução e adaptação, desde que seja fornecida a devida atribuição de autoria, um l= ink para a licença e a indicação de que modificações foram feitas. Para mais informações sobre a licença, acesse: https://creativecommons.org/licenses/b= y/4.0/deed.pt_BR. Os m= eus agradecimentos a Rachel Herdy pela revisão da versão portugue= sa deste trabalho. Este artigo foi realizado graças ao projeto Fondecyt Regular 1230888 «Injustiça hermenêutica, vulnerabilidade= e ontologia social», concedido pela ANID, Chile.
[2] Isso está previsto na Cláusul= a de Confrontação da Sexta Emenda da Constituição dos EUA.
[3] A partir da década de 1970, os movimentos de direitos civis nos Estados Unidos criticaram o fato de o sist= ema judiciário levar pouco em conta os danos causados às vítimas, principalmente as vítimas da comunidade afro-america= na que sofreram racismo e as mulheres que foram submetidas à violê= ;ncia sexual. Desde a década de 1980, o teste de impacto tem sido adotado = em vários estados da União Americana, com várias funções: fornece ao juiz informações sobre os efeitos clínicos, psicológicos, financeiros ou sociais do cri= me sobre a vítima e promove o direito das vítimas de ter seu pon= to de vista considerado na sentença (Cassel, 2009; Giannini, 2008).
<=
![if !supportFootnotes]>[4] Essa é a forma, incluindo a hasht=
ag,
que usarei sistematicamente neste artigo.
<=
![if !supportFootnotes]>[5] A revista Times, que em 2017 dedicou=
a
pessoa do ano àqueles que quebraram o silêncio “The Sile=
nce
Breakers” (Os Quebradores de Silêncio), relatou que a atriz Aly=
ssa
Milano recebeu mais de 30.000 mensagens no Twitter em menos de 24 horas qua=
ndo
convidou testemunhos com #metoo (Zacharek; Dockterman, 2017) [acessado em
08/02/2021]. A CNN informou que mais de 4,7 milhões de pessoas entra=
ram
na conversa do Twitter sobre #metoo a partir da postagem de Milano (Santiag=
o;
Criss, 2017) [acessado em 02/08/2021].
[6] Sobre a noção de trauma
histórico e sua relação com a justiça, veja (Fe=
lman
2003).
Miriam Jerade
A instituição da justiça em
face das injustiças epistêmicas da violência sexual
&=
nbsp; &nbs=
p; &=
nbsp; &nbs=
p; &=
nbsp; &nbs=
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nbsp;
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nbsp; Direito
em Movimento, ISSN: 2238-7110, Rio de Janeiro, v. 23, e668, p. 1-12, 2025.<=
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p; 11
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DOI: 10.70622/2238-7110.2025.668 |