MIME-Version: 1.0 Content-Type: multipart/related; boundary="----=_NextPart_01DC536A.45276240" Este documento é uma Página da Web de Arquivo Único, também conhecido como Arquivo Web. Se você estiver lendo essa mensagem, o seu navegador ou editor não oferece suporte ao Arquivo Web. Baixe um navegador que ofereça suporte ao Arquivo Web. ------=_NextPart_01DC536A.45276240 Content-Location: file:///C:/88782669/file5529.htm Content-Transfer-Encoding: quoted-printable Content-Type: text/html; charset="us-ascii"
INJUSTIÇAS EPISTÊMICAS E A VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA MENINAS E MULHERES: SOBRE DADOS E FATOS
Epistemic injustices and sexual violence against girls and women: on =
data
and facts
Bruna dos Santos Costa Rodrigues=
*
Resumo: O presente
artigo discute o conceito de justiça e sua contraposiçã=
;o
à injustiça, destacando a negligência histórica =
da
ciência em explorar essa última em profundidade. A partir da
epistemologia social proposta por Miranda Fricker,
analisa-se a injustiça epistêmica como fenômeno que limi=
ta o
acesso e a validação das experiências individuais e
coletivas, especialmente de grupos historicamente marginalizados. Tal
reflexão é fundamentada nas práticas epistêmicas
que, ao longo do tempo, legitimam e reproduzem desigualdades de gêner=
o,
raça e classe, resultando em epistemicíd=
io
e exclusão social. Nesse contexto, evidencia-se como a violênc=
ia
sexual contra mulheres e crianças, sobretudo contra mulheres negras,
não apenas viola direitos fundamentais, mas também constitui
forma grave de injustiça epistêmica, ao silenciar vítim=
as e
negar credibilidade aos seus testemunhos. O estudo busca, assim, articular
conceitos teóricos e dados empíricos, demonstrando a
relevância da abordagem de Fricker para
compreender as dinâmicas sociais que sustentam a violência sexu=
al e
para indicar caminhos de enfrentamento a partir da justiça cognitiva.
Metodologicamente, a pesquisa tem natureza qualitativa=
span>,
de caráter teórico-bibliográfico,
fundamentada na análise de referenciais da filosofia, sociologia,
antropologia e epistemologia social, em especial a obra de Miranda Fricker sobre injustiça epistêmica. O es=
tudo
parte da revisão crítica de literatura acadêmica e
documentos oficiais, articulando conceitos de justiça, injusti&ccedi=
l;a
e práticas epistêmicas às discussões sobre
violência sexual contra mulheres e crianças, com uso do
método exploratório-analítico.
Palavras-chave: justiça; injustiça epistêmica; epistemologia social; violência sexual; gênero e raça.
Abstract: This article discu=
sses
the concept of justice and its counterpoint to injustice, highlighting the
historical neglect of science in exploring the latter in depth. Based on the
social epistemology proposed by Miranda Fricker, this study analyzes episte=
mic
injustice as a phenomenon that limits access to and validation of individual
and collective experiences, especially those of historically marginalized
groups. This reflection is grounded in the epistemic practices that, over t=
ime,
legitimize and reproduce gender, racial, and class inequalities, resulting =
in epistemicide and social exclusion. In this context, i=
t is
evident how sexual violence against women and children, especially Black wo=
men,
not only violates fundamental rights but also constitutes a serious form of
epistemic injustice by silencing victims and denying credibility to their
testimonies. The study thus seeks to articulate theoretical concepts and
empirical data, demonstrating the relevance of Fricker's approach to
understanding the social dynamics that underpin sexual violence and to
indicating ways to address it through cognitive justice. Methodologically, =
this
research is qualitative in nature, theoretical and bibliographical, and bas=
ed
on the analysis of references from philosophy, sociology, anthropology, and
social epistemology, particularly Miranda Fricker's work on epistemic
injustice. The study begins with a critical review of academic literature a=
nd
official documents, linking concepts of justice, injustice, and epistemic
practices to discussions on sexual violence against women and children, usi=
ng
an exploratory-analytical method.
<=
span
style=3D'mso-bookmark:_Hlk156484427'>Keywords:
justice; epistemic injustice; social epistemolog=
y;
sexual violence; gender and race.
<=
span
style=3D'mso-bookmark:_Hlk156484427'>
INTRODUÇÃO
Justiça: substantivo abstrato que muitas vezes nos move como verbo e figura como adjetivo quando se quer retratar o que é justo, equânime, exat= o, afável, legítimo ou tudo aquilo que se entende por direito e correto. Pode também revestir-se de sentimento, sensaçã= ;o, emoção e até mesmo como instrumento de manobra para convencimento do certo ou errado nas situações mais inusitadas dentro do cenário sociopolítico, notadamente na agenda das políticas públicas. Muitos valem-se do termo para justificar = suas pautas e anseios, sem qualquer preocupação com a questã= ;o de fundo envolta na evocação dessa palavra.
Etimologicamente a justiça tem origem no latim justitia, que significa "direito escrito,
leis", "equidade", "justeza",
"exatidão", ou seja, vincula-se de certo modo a
noção de direito através da ideia do que é just=
o.
Estudar e falar sobre a justi&ccedi= l;a não é tarefa estranha aos operadores do Direito, ou melhor, a todas as pessoas envolvidas no estudo das relações sociais e = seus desdobramentos múltiplos. Agora a injustiça, sim, frente a sua famosa antônima, não foi igualmente explorada pela ciênc= ia, seja no seu teor, seja na profundidade de suas raízes em mazelas soc= iais e jurídicas inarredáveis.
Tal negligência, segundo Miranda Fricker, rev= ela um problema da ordem do conhecimento e domínio sobre ele que deve ser revertido aplicando-se justamente a situação contrária= , ou seja, com o estudo da injustiça, porque não falar sobre a injustiça, relegá-la a um segundo plano em contraponto &agrav= e; massiva discussão da justiça, conduz ao pensamento de ser est= a a situação natural da sociedade e aquela uma verdadeira aberração, quando, na verdade, a realidade vivenciada por gra= nde parte da população é diametralmente oposta.
Nesse ponto é que Fricker, ao destoar do “habitual” estudo do caminho do justo, e passando a desvendar e desbravar o tortuoso caminho do injusto, é compreendida , como nome = de referência em uma seara relativamente nova da epistemologia, a chamada epistemologia social, com destaque da concepção nas dificulda= des relatadas pela autora quanto ao alcance dos indivíduos sobre suas próprias experiências na sociedade e a dimensão social = da moralidade das nossas práticas epistêmicas, do ponto de vista = da sua influência na aquisição de conhecimento, justificação, e da formação racional de crenças.
Por práticas epistêmicas entende-se “formas específic= as com que membros de uma comunidade inferem, justificam, avaliam e legitimam = os conhecimentos ao longo do processo de sua construção” (Kelly; Duschl, 2002, p. 19). Tal conceito, ela= borado com base em estudos de Filosofia, Sociologia, Antropologia e Retóric= a da Ciência e Ciências Cognitivas aplicadas ao raciocínio científico, é ao mesmo tempo pensado em seu potencial de informar, orientar, analisar as práticas de gênero e raç= ;a atuais como verdadeira ação contra estruturas fincadas em processos viciados sob o manto das disparidades sociais.
As práticas epistêmicas transmitem conhecimento que alcanç= am gerações. Basta pensarmos que as afirmações ace= rca da morte de Joana D’arc, queimada viva na fogueira em praça pública, do nascimento, morte e ressurreição de Jesus Cristo e da luta de Dandara de Palmares= ao lado de seu marido, Zumbi, foram transmitidas por meio de testemunhos de terceiros. Pouquíssimas pessoas tiveram acesso direto a essas informações – e as que tiveram já morreram. Assi= m, tudo que nos resta é o testemunho de alguém como fonte de informação e de conhecimento, no qual depositamos confiança. O problema é quando essas informações são monopolizadas por grupos e pessoas específicas, o que pode gerar, para além do epistemicídio= , a verdadeira injustiça epistêmica.
Ganha
força esse pensamento no ensinamento que Edward Craig (2002, p.11)
expõe no livro Knowledge and the State
of Nature: R=
20;O ser
humano precisa de crenças verdadeiras sobre seu meio ambiente,
crenças que podem servir para orientar suas ações para=
um
resultado bemsucedido. Sendo assim, eles precis=
am de
fontes de informação que os levem a acreditar nas verdades=
221;.
Desse modo, as crenças humanas são guiadas pela busca por aquilo que consideramos verdadeiro. A verdade, por sua vez, é um critério fundamental para nossas ações e decisões. Para estabel= ecer a verdade, contamos com fontes de informação que consideramos seguras e confiáveis. Essas fontes são responsáveis por distribuir, armazenar e compartilhar informações. A interação entre indivíduos, através da troca de informações e conhecimentos, é fundamental para a construção da sociabilidade e para a formação de nossas crenças, e quando há quebra nesse padrão, estar= emos diante de uma injustiça epistêmica.
Os danos resultantes das práticas relativas à injustiça epistêmica afetam vários setores da vida dos indivíduos= que são vítimas dela. Por causa disso, eles são impedidos = de se desenvolver dentro dos padrões que se referem a uma vida definida como completa, sendo necessário entender e identificar o que s&atild= e;o injustiças e opressões epistêmicas, pois só assim elas podem ser combatidas.
O objetivo do presente artigo é investigar os pressupostos e conceitos relacionados à injustiça epistêmica, em sua mais clara definição, e relacioná-la à violência sex= ual contra mulheres e contra crianças.
Mostra-se relevante a definição de Fricker = frente à violência sexual contra meninas e mulheres sob a lente da perspectiva de gênero e raça, e, para tanto, a definição de injustiça epistêmica utilizou dados= e fatos atinentes à temática com recorte quanto a mulheres bran= cas e negras, maiores vítimas de delitos sexuais segundo dados estatísticos mais recentes.
1 DADOS
ESTATÍSTICOS SOBRE A VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA MULHERES
Conforme Facio (2014), é direito da mulher levar = uma vida na qual não exista violência contra ela – considera= ndo que esse tipo de violência parte de ações e fatos que, minimamente, violam seus diretos humanos, ou limitam o seu exercício= .
Segundo
a OEA (1994), a violência contra a mulher se enquadra em toda conduta=
que
resulte em morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou
psicológico à mulher, independentemente de ela se dar no
âmbito público ou no âmbito privado. Essa violência
decorre das discrepâncias que existem nas relações entre
homem e mulher, que reproduzem a subordinação e a desvaloriza=
ção
das mulheres em relação aos homens. Ela decorre do gêne=
ro,
e não apenas do sexo.
Nessa linha de raciocínio, a
2ª edição do VIV=
A: instrutivo
de notificação de violência doméstica, sexual e
outras violências conceitua a violência sexual como:
[...] qualquer ação na qual uma pessoa, valendo-se de sua posição de poder e fazendo uso de força física, coerção, intimidação ou influência psicológica, com uso ou não de armas ou drogas, obriga outra pessoa, de qualquer sexo e idade, a ter, presenciar ou participar de alguma maneira de interações sexuais, ou a utilizar, de qualquer mod= o, a sua sexualidade, com fins de lucro, vingança ou outra intenção. Incluem-se como violência sexual situações de estupro, abuso incestuoso, assédio sexual, sexo forçado no casamento, jogos sexuais e práticas eróticas não consentidas, impostas, pornografia infantil, pedofilia, voyeurismo; manuseio, penetração oral, anal ou genital, com pênis ou objetos, de forma forçada (Brasil, 2016)= .
Destarte, a violência sexual enquadra-se como um tipo de violência não letal monitorada através de notificações hospitalares registradas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) do Ministério da Saúde (MS).
De acordo com dados do Atlas da Viol&=
ecirc;ncia
de 2024, crianças representam 65,1% das vítimas de violê=
;ncias
sexuais, sendo que, desse
número, cerca de 86,7% são meninas.
=
&nb=
sp; =
&nb=
sp; =
Gráfico 1
Fonte: (Cerqueira; Bueno, 2024, p. 35).
Sobre o feminicídio, as mulher= es negras e pardas têm 1,7 vezes mais chances de serem mortas do que as não negras. Em termos de percentual, 2.601 mulheres negras foram vítimas de homicídio no Bra= sil no ano de 2021, o que representa 67,4% do total de mulheres assassinadas e = 4,3 para cada 100 mil.
Os dados apresentam um panorama alarm= ante sobre a violência contra a mulher no Brasil, evidenciando como as for= mas de agressão se modificam ao longo da vida.
A análise por faixa etá=
ria
revela um ciclo de violência que se inicia na infância e se est=
ende
até a velhice, com diferentes nuances e atores envolvidos, demonstra=
tivo
de que a violência contra a mulher não é um fenôm=
eno
isolado, mas sim resultado de uma cultura machista e patriarcal que natural=
iza
a desigualdade de gênero e legitima o uso da força contra as
mulheres, como módulo integrante da injustiça epistêmic=
a. Confira-se:

=
&nb=
sp; =
&nb=
sp;
Gráfico 2
Fonte: (Cerqueira; Bueno=
, 2024,
p. 51).
O que se percebe com o estudo de tal
documento é um ciclo de violência sistêmica que se perpe=
tua
ao longo da vida das mulheres e apresenta verdadeira interseccionalidade da
violência sexual com outras formas de violência por faixa et&aa=
cute;ria.
1.1 Infância: Ne=
gligência
e Abuso Sexual
Os primeiros anos de vida são marcados pela
negligência, com pais e mães como principais agressores. A
ausência de cuidados básicos, a falta de afeto e a
negligência emocional deixam marcas profundas nas crianças,
comprometendo seu desenvolvimento físico e psicológico.
2 INJUSTIÇA EPISTÊMICA
Miranda Fricker (2007) passou a usar o termo “injustiça epistêmica” em um livro publicado com o mesmo nome, como sendo um conceito para explicitar – dentro de um cenário que envolve ética, política e epistemologia = 8211; o formato da prática que exclui indivíduos no que se trata de perpetuação do conhecimento através de testemunhos, e = de compreensão de conhecimentos e experiências sociais. =
Para ela, essa prática que exclui se dá devido a formatos políticos e a relações sociais que são baseadas= em injustiça. “É a ideia de que podemos ser injustamente discriminados em relação à nossa capacidade enquanto conhecedores por conta de preconceitos acerca do falante, tais como gênero, origem social, etnia, raça, sexualidade, tom de voz, sotaque e assim por diante” (Byskov, 2020, p.116).
Segundo Fricke=
r
(2007, p. 151), “para que algo seja uma injustiça, ele deve ser
prejudicial, mas também tem de ser errado, seja porque
discriminatório ou porque, de qualquer forma, injusto.”
Nesse sentido é que as práticas epistêmicas com as relações de poder estabelecidas equivocadamente – segun= do Fricker (2007) – fragilizam a capacidade cognit= iva do indivíduo que serve para perceber potenciais informantes, como também a possibilidade de compreender determinados fatos e acontecimentos que são mascarados no contexto do entendimento social coletivo.
Nesse
sentido, nas palavras de Breno Ricardo Guimarães Santos (1998, p. 17=
0):
De
pressões sociais advindas de relações de poder exercer=
em
alguma influência nas normas epistêmicas de credibilidade que
utilizamos para avaliar a autoridade racional de interlocutores em uma troca
epistêmica cotidiana. Segundo Fricker, &e=
acute;
possível que as normas que regulam a concessão de credibilida=
de a
indivíduos ou grupos envolvidos nessas trocas reproduzam estruturas =
de
poder constituídas socialmente. Ou seja, é possível que
pessoas ou grupos que detêm algum tipo de vantagem ou poder social te=
ndam
a negar credibilidade a agentes epistêmicos que possuem autoridade
racional de fato acerca de determinado assunto. Uma recusa em reconhecer tal
autoridade por conta de preconceitos identitários é um dos mo=
dos
de conceber o que Fricker chama de injusti&cced=
il;a
epistêmica.
Denota-se o tratamento do papel que a injustiça epistêmica desempenha ne= ssas atividades, e Fricker o faz com a indicação de duas formas primárias desse tipo de injustiça: a injustiça testemunhal e a injustiça hermenêutica.
O testemunho é peça chave para a construção da sociedade e, por esse motivo, as trocas epistêmicas exercem um papel importante na construção das relações sociais, já que um testemunho não deve ser considerado de modo isolado, sem a percepção do ouvinte e do depoente. Preconceitos e esteriótipos podem descredibilizar uma narrati= va verdadeira, sem justificação epistêmica que a valide. A credibilida= de, ou sua ausência, é de suma importância para produzir justiça ou injustiça epistêmica.
Todavia, a credibilidade não anda só. Segundo Fri= cker (2007, p.13), ela está enlaçada ao conceito de “poder social”, que “é uma capacidade prática socialmente situada para controlar ações dos outros, onde esta capacidade pode ser exercida (ativa ou passivamente) por agentes sociais particulares = ou alternativamente, pode-se operar puramente estruturalmente”.= p>
As posições que ocupamos têm relação e se exteriorizam com o exercício do “poder social”, e a distribuição do grau de credibilidade que é dado a cad= a um na posição social será uma das maneiras de se estabele= cer as chamadas identidades sociais.
E uma consequência direta dos chamados “grupos identitários” é o preconceito com base na identidade. <= o:p>
O
poder identitário é uma subespécie do poder social e
influencia fortemente nas conexões epistêmicas existentes entr=
e os
seres ao serem socialmente situados, seja na injustiça testemunhal ou
hermenêutica. De acordo com Fricker (2007=
, p.
14, grifos da autora),
[...] há, pelo menos, uma forma de poder social=
que
requer não apenas coordenação social prática, m=
as
também uma coordenação social imaginativa. Pode haver
operações de poder que dependem do
agente ter compartilhado concepções de identidade social R=
11;
concepção viva na imaginação social coletiva que
governa, por exemplo, o que é ou significa ser uma mulher ou um homem, ou o que significa ser gay ou hétero, jovem ou velho, e assim =
por
diante. Sempre que houver uma operação de poder que
dependa, em algum grau significativo, dessa concepção imagina=
tiva
compartilhada de identidade social, então, o poder identitário
está em ação. =
O poder de identidade, quando baseado nos conceitos de identidade social, pode impactar na colheita da prova em crimes de violência sexual.= p>
E a relação entre o gênero e= o benefício da credibilidade epistêmica quanto à colheita= da prova em delitos sexuais mostra-se de suma importância na medida em q= ue seus representantes dominam as trocas de informações e falas = que se dão entre seu grupo e outros grupos, invalidando os testemunhos d= os representantes dos grupos que não o seu. Essas trocas são a base da “injusti&cced= il;a epistêmica testemunhal”, que se origina do preconceito de quem = ouve e que não aparece explicitamente na invalidação do que é exposto por quem fala.
Esse
domínio repercute no silenciamento, diminuição,
inviabilização, de grupos vulneráveis, que aqui neste
artigo limita-se ao aspecto do gênero. A injustiça
hermenêutica desemboca, por fim, na <=
span
class=3Dnfaseforte>noção
de "poder de anulação" do indivíduo e seus
interesses.
3 TIPOS DE INJUSTIÇA EPISTÊMICA
As injustiças são hermenêuticas quando o indivíduo não consegue interpretar os fatos ocorridos e por ele vivenciados, em razão de uma espécie de “apagão jurídico” hermenêutico, daquela situação. =
Vivendo uma situação de violação de direito humano ou g= arantia fundamental que não resta explicitamente amparada na legislação, o indivíduo sente-se impotente para com a infringência vivenciada. A consequência disso é que o sujeito não entende nem expressa, da melhor forma, o dano que lhe foi infringido.
Nesse sentido, na visão de Flicker, é de extrema importância a adoção de políticas públicas na análise da distribuição do poder político e social, para que se entenda como se formam as prát= icas de conhecimento. A injustiça epistêmica pode ser traduzida em = uma exclusão prejudicial da participação de um indivíduo, ou de um = rol de indivíduos, na elaboração, propagação= e manutenção de conhecimento, o que hoje resta evidenciado com a baixa participação feminina nos espaços de poder estratégicos na formulação de tais políticas. No âmbito dos três Poderes da República, mulheres – em especial mulheres negras – detêm sub-repre= sentatividade e, por conseguinte, dificuldades nas formulações de ações para públicos excluídos do perfil hegemônico de poder.
O
caso de Carmita Wood, como descrito por Susan Brownmil=
ler
(2000) no livro In Our Time: Memoir
of a Revolution e analisado por Miranda
Carmita
era uma funcionária da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos,
quando seu superior hierárquico a tocou de forma inapropriada, a bei=
jou
à força e exibiu comportamento sexualmente explícito na
sua presença.
Antes de 1975, não existia um termo
específico para definir o tipo de violência sofrida por Carmit=
a. A
ausência do termo "assédio sexual" criava uma lacuna=
na
linguagem comum, dificultando a compreensão e a denúncia desse
tipo de abuso. A falta de um nome para a experiência de Carmita a imp=
ossibilitava
de articular e comunicar de forma clara o que estava acontecendo. Essa lacu=
na a
colocava em uma posição de desvantagem, tanto cognitiva quanto
social.
Ações desse tipo, que excluem, podem ser entendidas como casos de injustiça quando elas decorrem de um erro em atribuir autoridade epistêmica a determinado indivíduo devido = a um preconceito relacionado à identidade, o que acaba por dar a ele a im= agem de alguém menos capacitado dentro de uma troca epistêmica. No = caso Wood, há os dois exemplos dessa forma de injustiça: a “injustiça testemu= nhal” – ao ser ouvida perante autoridades e terceiros – e a “injustiça hermenêutica” – prévia &ag= rave; atuação comunitária.
Assim, nas palavras de Santos (2010, p. 144):
=
Fricker
oferece uma definição refinada de injustiça
hermenêutica nos seguintes termos: é a injustiça de ter
alguma área significativa de sua experiência social obscurecid=
a do
entendimento coletivo devido a um preconceito estrutural de identidade pres=
ente
nos recursos hermenêuticos coletivos (2007, p. 155). Ainda que guardem
diferenças essenciais entre si, o que aproxima os dois tipos de
injustiça discutidos até aqui é o caráter
preconceituoso envolvido na sua motivação. Em ambos os casos,=
a
causa das injustiças é essencialmente discriminatória.
Elas são originadas em um preconceito que afeta pessoas por conta de=
seu
pertencimento a um grupo socialmente impotente, por conta de uma visã=
;o,
estrutural no segundo caso, preconceituosa acerca da identidade social dest=
e grupo.
Em ambos os casos existe a possibilidade de estarmos diante de uma
injustiça epistêmica de caráter sistemático. Por=
um
lado, uma injustiça testemunhal sistemática é uma na q=
ual
o preconceito de identidade envolvido rastreia o sujeito que é
vítima deste estereótipo negativo através de diferentes
esferas da atividade social. Por outro lado, no caso da injustiça
hermenêutica, a marginalização sofrida pelo agente pode=
ser
sistemática na medida em que ela é acarretada e/ou acarreta
outros tipos de marginalização, como
marginalizações socioeconômicas.
A
injustiça pode, portanto, ocorrer de modo cumulativo e intersecciona=
l,
trazendo uma situação de injustiça sistêmica.
3.1. Injustiça Testemunhal
O primeiro tipo – injustiça testemunhal – é observa= do quando o preconceito reflete no poder de uma pessoa de traduzir conheciment= o, devido a algum déficit de credibilidade que outro sujeito lhe atribu= i. Aqui, o que baseia a injustiça é uma “economia epistêmica” que delimita um baixo nível de credibilidade= a pessoas que são de alguma forma excluídas socialmente.=
A descredibilidade é ainda mais fortalecida no preconceito, nos estereótipos de gênero criados coletivamente,= e “são associações amplamente sustentadas entre um dado grupo social e um ou mais atributos” (Frick= er, 2010, p. 30). Esses estereótipos surgem a partir dos papéis e lugares impostos pelo patriarcalismo, pelo mercado e pela induç&atil= de;o à alienação do pensamento.
Essa forma acontece quando o precon=
ceito
de um ouvinte não dá crédito ao discurso do falante, e=
nquanto
a segunda se dá em um momento antes do testemunho, melhor dizendo,
quando essa impede que suas experiências tenham sentido na vida socia=
l e
privada (Fricker, 2007, p. 7).
Assim,
deduz-se que: se, ao ser questionado sobre algum fato ocorrido, um indiv&ia=
cute;duo
não tem as ferramentas que o permitam articular sua fala, ele sai
prejudicado desse diálogo. Aqui, o interlocutor não acessa as
experiências daquele que fala.
Dessa forma, a exposição das informações fica comprometida. Em outras palavras, o ouvinte precisa adentrar no universo do expositor para ter maior empatia e compreensão da dificuldade epistêmica do momento.
A
experiência forense mostra que esse tipo de injustiça é
mais comum do que se imagina e permeia processos em que mulheres são
partes, mas muitas vezes não são ouvidas, apenas e tão
somente por serem mulheres e restarem julgadas precipitadamente por esteriótipos de gênero.
O
nervosismo no momento do relato de um crime mediante violência sexual=
, ou
até mesmo o silêncio em outras circunstâncias, muitas ve=
zes
é ignorado pelo ouvinte ou mal interpretado.
3.2 Injustiça Hermenêutica
É possível supor que existe uma interrupção no processo = de compreensão e no processo de expressão efetiva. Esse desencon= tro – por si só – não gera problemas, mas aparece qua= ndo a experiência social do indivíduo falante é prejudicial= e, em consequência disso, ele não dá conta de entendê= ;-la nem de explicitá-la.
Fricker (2007, p. 158) traduz isso como “a injusti&cced= il;a de ter alguma área relevante da experiência social obscurecida pela falta de entendimento coletivo devido à marginalização hermenêutica”, como no exemplo do = caso Wood. Esse tipo de injustiça, considerado por F= ricker, exclui os indivíduos. Na construção e revisão de recursos epistêmicos para a convivência social, há participações desiguais por parte dos diversos grupos participantes. Assim, alguns são impossibilitados de expor seus testemunhos, relativos às suas experiências, dentro de uma formatação que o torne inteligível. Isso foi batizado = por Fricker de “injustiça hermenêutica”.
Ela propõe que as normas que governam as práticas epistêmic= as podem ser limitadas por estruturas de poder sociais, e que a concepção do sujeito conhecedor é essencialmente socia= l, estando sujeita a interferências sociopolíticas (= Fricker, 1998, p. 160).
No eixo racial, Gonzalez (1984, p. 225) retrata isso ao discorrer q= ue o movimento feminista brasileiro estava organizado a partir de um modelo ocidental e judaico-cristão, que pouco considerava os dados étnicos e raciais da população brasileira e seu histórico escravocrata, o esquecimento ou a ignorância influen= te sobre as práticas epistêmicas atuais.
Para Pohlhaus Jr. (2017, p.17), “[=
...]
os conhecedores epistêmicos dominantes são encorajados a ignor=
ar a
injustiça estrutural através do cultivo de hábitos
particulares que direcionam sua atenção para longe da
injustiça racial através de vícios
epistêmicos”.
CONCLUSÃO
A filosofia política passou a usar e analisar a ideia sobre injustiça epistêmica, mais precisamente depois que Fricker (2007) delimito= u seu conceito como o “mal cometido a alguém especificamente em sua capacidade epistêmica”.
O propósito da injusti&ccedi= l;a epistêmica pode adulterar e limitar o poder de conhecimento que o indivíduo tem em relação à verdade sobre os conceitos voltados para a realidade político-social que o envolve. É a chamada injustiça hermenêutica, que nas relações de gênero ocorre no total desconhecimento de m= eninas e mulheres não apenas sobre seus direitos, como também dos deveres de outras pessoas no respeito quanto a sua liberdade sexual e individual. Em um país em que a exploração sexual infa= ntil ainda é naturalizada em muitas cidades e territórios, o desco= nhecimento e a deturpação limitam, manipulam e impedem que essas meninas= e mulheres conheçam a si mesmas e seu estado de vítimas em muit= as situações.
Para Fricker=
span>
(2007), constantemente a injustiça está presente nos mais
diversos contextos sociais, assim se tornando algo normal, que,
consequentemente, se dissimula nas ideias e discussões. Com isso,
entendê-la em suas particularidades facilita a sua
evidenciação, que é um caminho para se chegar à
prática da justiça. Para a autora, a injustiça
epistêmica se dá em episódios – acontecimentos
– nos quais a palavra do indivíduo é posta em
questão devido a alguma crença preconceituosa.
E preconceito, esteriótipos,
dominação, força social e ideias no imaginário =
que
discriminam ou antecipam julgamentos são circunstâncias muito
afetas – infelizmente – a ações que envolvam a
perspectiva de gênero sob enfoque.
Nesse norte, segundo Fricker, a injustiça hermenêutica ocorre quando um indivíduo &eacu= te; prejudicado em sua capacidade de ser entendido e reconhecido devido a preconceitos sociais e estereótipos. Essa injustiça se manife= sta quando (i) há uma lacuna hermenêutica –= falta um vocabul&aacu= te;rio adequado para descrever a experiência de um grupo social marginalizad= o; (ii) há um preconceito hermenêutico: os ouvidos do ouvinte estão "fechados" para a experiência do outro devido a preconceitos; e (i= ii) há um testemunho desacreditado: a credibilidade = do testemunho do indivíduo é questionada por motivos sociais, co= mo raça, gênero ou classe.
O resultado mais evidente é um poder de anulação, o que vemos nas questões de gê= nero com o silenciamento de vítimas que, ao não terem= as palavras para descrever sua experiência, são silenciadas, com a voz apagada e suas necessidades e demandas não atendidas. Invisibilização com a= falta de um vocabulário adequado que torna a experiência do indivíduo invisível para a sociedade. Se não há nome para algo, é como se esse algo não existisse. Por fim, a= descredibilização, entendida como um preconceito hermenêutico que leva à descredibilização do testemunho da vítima, fazendo com que suas experiências sejam questionadas e minimizadas.
Assim, é de se concluir que a injustiça
hermenêutica contribui para a perpetuação de desigualda=
des
sociais, pois impede que grupos marginalizados participem plenamente da vida
social e política, e a relação entre crenças, ver=
dade
e injustiça epistêmica é complexa e multifacetada.
Por isso, a capacitaçã= ;o do sistema de justiça sobre a situação epistêmica retratada por Fricker revela-se como pontap&eac= ute; inicial para a diminuição das injustiças que escancara= m a sociedade brasileira. Noutro giro, a ausência de ética nas questões que envolvem injustiça influencia os indivídu= os, considerando que estes são sujeitos epistêmicos que produzem e reproduzem conhecimento por meio de diversas formas, inclusive por meio de testemunho. Um exemplo é a explicitação do testemunho = de uma mulher que, devido a crenças relativas a gênero, não é considerada séria, mesmo não sendo claro o preconcei= to que invalida a sua declaração.
O sistema de justiça est&aac= ute; eivado da injustiça retratada por Fricker. É preciso agir, a fim de corrigir erros da história da humanidade, formada por contextos = de forte discrepância no que se refere ao acesso à educação e à impossibilidade de se inserir no mercado = de trabalho, considerando as diferenciações que são impos= tas a homens e mulheres e as repercussões nos dias atuais.= p>
A injustiça epistêmica, =
ao
desacreditar o testemunho de determinados grupos, prejudica a
formação de crenças verdadeiras e a
construção de uma sociedade justa e equitativa. É fund=
amental
que busquemos formas de superar a injustiça epistêmica, promov=
endo
a diversidade de perspectivas e valorizando o conhecimento de todos.
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Mestra em Políticas Públicas
pela Universidade Estadual do Ceará. Especialista em Direito
Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Bacharel em=
Direito
pela Universidade Cidade de São Paulo. Título de extens&atild=
e;o
em Direitos Humanos e Internacional pela Universidade de Coimbra. Juí=
;za Formadora
da Escola Nacional da Magistratura. Juíza de Direito do Tribunal de
Justiça do Estado do Ceará.
Bruna dos Santos Costa Rodrigues
Injustiças epistêmicas e a
violência sexual contra meninas e mulheres: sobre dados e fatos
&=
nbsp; &nbs=
p; &=
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p; &=
nbsp; &nbs=
p; &=
nbsp; &nbs=
p; &=
nbsp;
&=
nbsp; &nbs=
p; &=
nbsp; Direito
em Movimento, ISSN: 2238-7110, Rio de Janeiro, v. 23, e666, p. 1-14, 2025.<=
span
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p; 5
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DOI: 10.70622/2238-7110.2025.666 |