MIME-Version: 1.0 Content-Type: multipart/related; boundary="----=_NextPart_01DC536A.0953FC10" Este documento é uma Página da Web de Arquivo Único, também conhecido como Arquivo Web. Se você estiver lendo essa mensagem, o seu navegador ou editor não oferece suporte ao Arquivo Web. Baixe um navegador que ofereça suporte ao Arquivo Web. ------=_NextPart_01DC536A.0953FC10 Content-Location: file:///C:/519668CF/file1727.htm Content-Transfer-Encoding: quoted-printable Content-Type: text/html; charset="us-ascii"
IN=
JUSTIÇA
EPISTÊMICA E VIOLÊNCIA SEXUAL: UMA VIOLAÇÃO AOS
DIREITOS HUMANOS DAS MENINAS E MULHERES
Epistemic
injustice and sexual violence: a violation of girls' and women's human righ=
ts
Adriana Ramos de Mello<=
span
style=3D'mso-bookmark:_Hlk156484427'>*
Caetano E. da Fonseca Costa=
**
Resumo: O artigo discorre sobre como o sistema
patriarcal, ao se infiltrar na prática judicial, reforça
injustiças epistêmicas. Esse tipo de injustiça ocorre
quando preconceitos identitários, sejam conscientes ou implíc=
itos,
levam o ouvinte a atribuir menor credibilidade ao depoimento de uma pessoa.
Diante disso, perpetua a violência simbólica e impacta
negativamente a credibilidade das mulheres, impedindo o seu acesso pleno
à justiça.
A permanência de rótulos com=
o “mulher
decente”, “mulher honesta”, “mãe de
família”, a represália à liberdade sexual exerci=
da
em outro momento ou a rotulação como “mulher
promíscua” e a facilidade em desacreditar a vítima e seu
testemunho, além de imporem rótulos e julgamentos morais que
descaracterizam a violência sexual e a proteção
jurídica, ainda estão muito presentes no julgamento de crimes
sexuais, o que demonstra a urgente necessidade de se transformar o sistema =
de
justiça e de se rever a “neutralidade” do Direito. Medid=
as
legais existem, como a Lei Maria da Penha, a Lei do Feminicídio e a =
Lei
Mariana Ferrer, além de decisões das cortes superiores, a exe=
mplo
da ADPF 1.107, mas sua eficácia termina comprometida pela
persistência de padrões culturais e jurídicos que
desconsideram as experiências das vítimas. Nesse contexto, a
implementação de um sistema de justiça mais inclusivo e
sensível às especificidades de gênero, raça e cl=
asse
é imperativa para a efetivação dos direitos humanos.
Conclui-se que o reconhecimento da injustiça epistêmica deve s=
er
acompanhado de ações concretas que visem a desmantelar estrut=
uras
discriminatórias, assegurando que as vozes das meninas e mulheres se=
jam
ouvidas e respeitadas.
Palavras-chave= : violência sexual; violência de gênero contra a mulher; injustiça epistêmica; estereótipos; Poder Judiciário.
INTRODUÇÃO
A violência sexual contra meninas e
mulheres reflete profundas desigualdades de poder entre homens e mulheres na
sociedade. Essas desigualdades se manifestam de várias formas, como
feminicídios, estupros, assédio sexual, violência
obstétrica e divisão sexual do trabalho. No sistema judicial,
essas desigualdades são evidentes, especialmente nos julgamentos de
crimes contra as mulheres, em que estereótipos de gênero e
preconceitos implícitos podem influenciar a credibilidade dos
testemunhos femininos e o julgamento dos casos.
As principais pesquisas sobre violê=
ncia
no Brasil apontam que as principais vítimas de violência sexua=
l no
país são meninas. De acordo com o Anuário Brasileiro de
Segurança Pública de 2025, foram 83.988 vítimas de est=
upro
e de estupro de vulnerável no ano de 2023. As vítimas s&atild=
e;o,
basicamente, meninas (88,2%), negras (52,2%), de até 13 anos (61,6%),
violentadas por familiares ou conhecidos (84,7%). Os estupros de
vulneráveis representam a maioria das ocorrências, com 76% dos
casos. A cada hora, o Brasil registra 7 estupros de crianças e
adolescentes (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2=
025,
p. 218). Já o Atlas da Violência de 2025 (Cerqueira; Bueno; 20=
25,
p. 65-69). aponta que, em 202=
3,
mais de 177 mil mulheres foram vítimas de algum tipo de violên=
cia
doméstica. Entre meninas de 0 a 9 anos, a forma =
mais
frequente de violência são os casos de negligência
(49,5%); entre meninas de 10 a 14 anos, se destaca a violência sexual
(45,7%); e entre os 15 e 19 anos, a violência mais comum é a
física (39,3%), apesar de múltiplas formas de violência
também serem observadas (29,8%).&nb=
sp;
As meninas e mulheres enfrentam barreiras=
no
seu direito de acesso à justiça, principalmente negras e
indígenas, tendo em vista os estereótipos de gênero e
raça existentes no sistema de justiça. Juízes e
juízas, não raras vezes, exigem rígidos padrões=
de
comportamento para as mulheres em relação aos homens, e de ac=
ordo
com a Recomendação nº 33 do Comitê CEDAW, os
estereótipos de gênero “impedem o acesso das mulheres
à justiça em todas as áreas do direito, e podem ter um
impacto particularmente negativo sobre as mulheres vítimas e
sobreviventes da violência. Os estereótipos distorcem
percepções e resultam em decisões baseadas em
crenças e mitos preconcebidos em vez de fatos relevantes” (CED=
AW,
2015, item 26).
De acordo com o IPEA, apenas 8,5% das
vítimas de estupro procuram a polícia para denunciar, e apenas
4,2% dos casos são relatados pelos órgãos de saú=
;de,
demonstrando o alto índice de subnotificação dos crime=
s de
violência sexual praticados no Brasil (IPEA, 2023, online). Fa=
tores
como racismo e sexismo fazem com que meninas e mulheres desistam de procura=
r os
órgãos oficiais para realizar o registro de ocorrência.=
O
medo de represálias e a falta de confiança no sistema de
justiça também fazem com que esse tipo de crime seja
subnotificado. Pesquisas ainda apontam que grande parte da violência
sexual praticada contra crianças e adolescentes é efetivada p=
or
familiares ou pessoas próximas da própria vítima, o que
dificulta a denúncia e a apuração do crime (Fór=
um
Brasileiro de Segurança Pública, 2024, p. 161, online)=
.
O sistema patriarcal, ao se infiltrar na
prática judicial, reforça injustiças epistêmicas,
fenômeno identificado por Miranda Fricker (2023, p. 17). Esse tipo de
injustiça ocorre quando o ouvinte atribui menor credibilidade ao
depoimento de uma pessoa devido a preconceitos identitários, sejam
conscientes ou implícitos. Essa prática perpetua a
violência simbólica, impactando negativamente a credibilidade =
das
mulheres, impedindo o acesso pleno à justiça e prejudicando
especialmente vítimas e sobreviventes de violência.
Em outros termos, estereótipos de
gênero frequentemente influenciam decisões judiciais, prejudic=
ando
a imparcialidade e integridade do sistema de justiça e resultando em
decisões baseadas em crenças preconcebidas, ditadas pelo patr=
iarcado.
1
DAS FORMAS DE INJUSTIÇA EPISTÊMICA DE ACORDO COM MIRANDA FRICK=
ER
Miranda Fricker define a injustiça
epistêmica em duas formas: testemunhal e hermenêutica. A
injustiça testemunhal ocorre quando a credibilidade dada ao depoimen=
to
de uma pessoa é reduzida devido a preconceitos. A injustiça
hermenêutica, por outro lado, acontece quando há uma lacuna nos
recursos de interpretação coletiva, que prejudica a
compreensão das experiências sociais de um indivíduo. A=
mbas
impactam as relações jurídicas e excluem
populações vulneráveis da participação n=
as
estruturas de poder. A importância de se reconhecer a injustiça
epistêmica no âmbito da violência sexual é a de se
nomear e identificar formas diversificadas de violências, processo que
visibiliza violações de direitos e ajuda a reivindicar a
respectiva proteção, como ocorreu na construção=
do
termo “assédio sexual” por movimentos de mulheres e auto=
ras
feministas para conceituar avanços sexuais indesejados.
No entanto, mesmo com a
identificação dessas formas de prejuízo de tratamento
às vítimas e com mudanças legislativas, é frequ=
ente
que doutrina e jurisprudência mantenham valores patriarcais em suas d=
ecisões,
atuando o Direito como elemento integrador e legitimador das desigualdades =
de
gênero, contribuindo para a sua (re)produção.
Fricker argumenta que a injustiça
epistêmica é uma questão essencial a ser abordada, pois
limita não apenas o acesso à justiça, mas també=
m o
reconhecimento e a valorização das experiências vividas=
por
indivíduos de grupos vulneráveis. Para combater essa
injustiça, é necessário criar um ambiente que
favoreça a escuta ativa e a interpretação justa das
experiências dessas pessoas, promovendo assim uma maior inclusã=
;o
no campo do conhecimento e da justiça social.
A violência sexual contra meninas e
mulheres é um exemplo de como a injustiça epistêmica se
manifesta, com estereótipos de gênero resultando na
descredibilização e culpabilização das ví=
;timas,
julgamentos morais sobre sua vida, descaracterização da
violência sexual e desconsideração da ausência de
consentimento. Esse padrão leva a uma análise limitada dos cr=
imes
sexuais, focando apenas na presença de violência física=
ou
grave ameaça, ignorando contextos mais amplos e elementos como o his=
tórico
do agressor.
Como elucida Mardegan (2023, p. 83),
“em casos de estupro, é possível perceber um padr&atild=
e;o
de julgamento em que as vítimas apenas têm seus depoimentos
valorizados se correspondem à figura da vítima idealizada pela
sociedade e pelo Judiciário brasileiro”.
Mesmo com o prestígio constitucion=
al e
infraconstitucional orientados à igualdade de gênero, ainda
há muita dificuldade de efetivação dessa igualdade na
realidade fática e de efetivo acesso das mulheres ao poder social,
definido por Fricker (2023) como uma capacidade prática socialmente
situada para controlar ações dos outros, onde essa capacidade
pode ser exercida (ativa ou passivamente) por agentes sociais particulares =
ou,
alternativamente, pode-se operar puramente de forma estrutural.
Um exemplo é a decisão de
esterilização compulsória de Janaína Aparecida
Aquino, em Mococa (SP), evidenciando preconceito de identidade contra mulhe=
res
em situação de vulnerabilidade. Ela foi intimada a fazer a
cirurgia de ligamento de trompas, por já ter oito filhos, mesmo sem =
consentimento
prévio de sua parte. Por esse motivo, o juiz Djalma Moreira Gomes
Júnior determinou a condução coercitiva de Janaí=
;na,
sem direito a defesa, que foi levada à cirurgia de laqueadura mesmo
contra sua vontade.
De acordo com a nota do Conselho Nacional=
de
Saúde sobre o caso, “a decisão é uma afronta aos
direitos humanos e à liberdade individual sobre o próprio cor=
po
de Janaína. O fato, ainda que proibido, aflige diversas mulheres em
vulnerabilidade, que muitas vezes são tratadas como animais a serem
castrados, ferindo a integridade e a dignidade dessas pessoas. Por meio da
liminar que obrigava a prefeitura de Mococa (SP) a realizar o ato, o juiz f=
eriu
a Lei n. 9.263/1996, que só permite a esterilização qu=
ando
voluntária e veda qualquer tipo de indução ao ato por
parte do poder público”.
A permanência da presença de
rótulos como “mulher decente”, “mulher honestaR=
21;
e “mãe de família”, a represália à
liberdade sexual exercida em outro momento ou a rotulação como
“mulher promíscua” e a facilidade em desacreditar a
vítima e seu testemunho, bem como impor a ela rótulos e
julgamentos morais que levam à descaracterização da
violência sexual e da proteção jurídica,
estão muito presentes no julgamento de crimes sexuais e demonstram a
necessidade de transformação do sistema de justiça e
revisão da “neutralidade” do Direito.
Casos como o julgamento de Mariana Ferrer
mostram a revitimização evidente e a necessidade de uma
legislação que proteja a dignidade da vítima. O caso
ocorreu em 2018, em Florianópolis (SC), com a acusação=
de
estupro de vulnerável, que teve como vítima a jovem Mariana F=
errer.
Imagens da audiência de instrução de 2020 foram divulga=
das,
nas quais o advogado do acusado exibiu fotos da influenciadora e disse que =
“jamais
teria uma filha do nível” dela. O Conselho Nacional de
Justiça penalizou o juiz do caso com uma advertência por causa=
de
sua conduta omissa. A repercussão do caso gerou a Lei nº
14.245/2021: alterou o CPP para coibir a prática de atos
atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas.
Nesse sentido, ao analisar casos de
discriminação de gênero e de injustiça
epistêmica, é preciso adotar uma perspectiva interseccional, q=
ue
desvela como diferentes marcadores sociais da diferença, como
raça/etnia, classe, idade etc., condicionam formas diversas de
injustiça epistêmica.
2 DO CONCEITO DE INJUSTIÇA
EPISTÊMICA À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA DAS CORTES SUPERIORES=
As cortes superiores desempenham um papel
fundamental na validação ou invalidação das
experiências de algumas pessoas pertencentes a grupos marginalizados,
principalmente ao lidar com questões de raça, gênero,
sexualidade e direitos humanos. Quando as experiências dessas pessoas
não são consideradas nas decisões judiciais, a
injustiça epistêmica é perpetuada.
Na jurisprudência do Superior Tribu=
nal
de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, destacamos o Recurso Espec=
ial
nº 2037491 – SP, de relatorial do Ministro Rogerio Schietti Cruz=
. Em
seu voto, é abordada a presunção de inocência e =
o direito
constitucional ao silêncio diante do déficit de credibilidade =
do
acusado dada a recusa em colaborar com a persecução penal. O
ministro identifica o preconceito racial implícito e o excesso de
credibilidade conferido ao testemunho dos policiais, que levou à
ausência de respaldo probatório do processo, algo recorrente no
caso de reconhecimento de pessoas.
Já a Ação de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1.107, de relatoria da Minist=
ra Cármen
Lúcia, definiu que é inconstitucional a prática de des=
qualificar
a mulher vítima de violência durante a instrução=
e o
julgamento de crimes contra a dignidade sexual e de demais crimes de
violência contra a mulher, englobando também casos de
violência doméstica e política. Fica vedada, entã=
;o,
eventual menção, inquirição ou
fundamentação sobre a vida sexual pregressa ou ao modo de vid=
a da
vítima em audiências e decisões judiciais.
Para visibilizar e enfrentar a
injustiça epistêmica, importante medida é a
utilização de perspectivas de gênero, raça, clas=
se,
idade e outros marcadores sociais da diferença para julgar. A
efetivação da igualdade e da não
discriminação em relação às partes e aos
envolvidos e envolvidas no processo depende da possibilidade de identificar=
se
há situações de poder de gênero que produzam um
desequilíbrio entre as partes na disputa. O Brasil, assim como
vários países, já adota protocolos de julgamento com
perspectiva de gênero.
A presença de estereótipos =
no
sistema judicial distorce percepções, comprometendo a
justiça e resultando em decisões parciais. Para combater essas
injustiças, é necessário que julgamentos incorporem
perspectivas de gênero, raça e classe, reconhecendo
desequilíbrios de poder que afetam as partes no processo. Juí=
zes
devem assumir uma postura ativa para combater a injustiça
epistêmica, garantindo a igualdade e a não
discriminação.
3 O RISCO DA REPRODUÇÃO INCONSCIENTE DA
ESTRUTURA DO PATRIARCADO NA JURISDIÇÃO
A
magistratura brasileira termina por reproduzir em suas decisões majo=
ritariamente
a representação do homem branco, hétero, religioso e de
elevada condição tanto financeira como social.
Em
outras palavras, os efeitos da colonização do Brasil ainda se
dão a favor dos que estiveram sempre no poder, incluso o patriarcado,
que, inconscientemente ou não, se introduz na formação
daquele juiz, que no seu inventário de vida vai tecendo e construind=
o os
valores morais que lhe são transmitidos, quer seja pela
educação, quer seja pela cultura, hábitos ou religi&at=
ilde;o.
Reproduz
esses valores muitas vezes de forma inconsciente, sem ter a noç&atil=
de;o
do seu próprio pertencimento à sua especial
condição social, cultural e econômica, enfim ao lugar q=
ue
ocupa.
Nessas condições,
a passagem pelo iter da alteridade fica-lhe prejudicada, quando
não identifica e respeita a diversidade de conceitos que lhe s&atild=
e;o
oferecidos à interpretação no seu regular exercí=
;cio
da jurisdição.
Assim
acontece com o patriarcado, diante da dificuldade do juiz de absorver e
contemplar a diversidade que brota da igualdade material conforme contempla=
da
pela Constituição Federal.
Não tem consciê=
ncia
esse(a) juiz(a) da injustiça que reproduz e do seu elemento estrutur=
al
(e estruturante), no momento em que reforça por suas decisões=
as
relações do poder (do homem branco, hétero, rico e
religioso), em prejuízo manifesto dos que não têm igual
acesso ao sistema de justiça. Miranda Fricker (2023, p. 195), ao cit=
ar
Nancy Hartsock, assinala: “Os dominados vivem em um mundo estruturado por
outros para seus propósitos – propósitos que, no
mínimo, não são nossos e que, em vários graus
são hostis ao nosso desenvolvimento e até à nossa
existência”.
O
comprometimento, pois, repetitivo desse inconsciente, desvinculado da ideia=
de
efetivação de um compromisso real com os paradigmas de iguald=
ade
(material), permeia a jurisdição no Brasil.
A
consciência, portanto, desse preconceito estrutural é
cláusula essencial para o equilíbrio material hermenêut=
ico
do juiz, como assinala Fricker (2023, p. 202):
A desigualdade hermenêutica é inevitavelmente
difícil de detectar. Nossos esforços interpretativos sã=
;o
naturalmente voltados para interesses, à medida que nos
esforçamos ao máximo para entender as coisas que eles nos aju=
dam
a entender. Como consequência, a participação
hermenêutica desigual de um grupo tenderá a aparecer de maneira
localizada em pontos hermenêuticos críticos – locais da =
vida
social em que os poderosos não tem interesse em obter uma
interpretação adequada, talvez até onde tenham um
interesse positivo em sustentar a má interpretação
existente (tais como que proposições sexuais repetidas no loc=
al
de trabalho nunca são nada mais que forma de “flerte”, e=
sua
desconfortável rejeição pela destinatária &eacu=
te;
apenas uma questão de ela “não ter senso de humor.
O juiz,
dessa forma, reproduz os valores, conscientemente ou não, que lhe fo=
ram
ensinados dentro de uma governança ditada pelo colonizador-homem bra=
nco,
religioso e de elevada condição econômica e social.
Em
linhas gerais, assim exerce o juiz a regulação, em prol dos q=
ue
governam e detêm o poder, negando a seu jurisdicionado uma equidade
interpretativa que só a emancipação está a
permitir, em que necessariamente há de existir a consciência
prévia dos privilégios recebidos pelo homem ao longo da
formação da elite política, econômica e social
brasileira.
O
patriarcado, já se disse, se reforça então nessa
jurisdição, se repete e se “legitima” atrav&eacut=
e;s
da reprodução pelo juiz de valores que terminaram sendo
oferecidos e introduzidos na sua cultura pelo homem branco empoderado.
A
expressiva maioria dos juízes atualmente ainda foi educada e criada
pelos paradigmas e pelos valores (em regra) da família constru&iacut=
e;da
pelo patriarcado, onde o homem hétero ocupa o ponto central e princi=
pal
do poder.
Reproduz,
em outras palavras, no seu atuar institucional, com superficial naturalidad=
e,
os conceitos que têm como adequados e corretos para o status
financeiro e social que ocupa, sem questionar ou ao menos enxergar a
diversidade que brota daquele jurisdicionado que lhe é diferente.
A
jurisdição, nesse sentido, da reprodução
inconsciente de paradigmas eventualmente preconceituosos e previamente
modelados, representa como consequência o espelho da
regulação, porque reforça com toda certeza o poder de =
quem
já o detém, se considerada principalmente a versão
política, social, econômica e – também é
correto dizer – de gênero (masculino).
Pela
doutrina de Bourdieu, consolida-se o habitus pela
repetição de um modelo por determinado grupo, e essa
condição se insere, se repete e se reforça (estrutural=
e
estruturante) através dos paradigmas sociais, culturais,
econômicos e simbólicos. O conceito vem delineado pelo mesmo a=
utor
na obra Poder, Derecho Y Clases Soc=
iales,
que assim o define:
Las estructuras que son
constitutivas de un tipo particular de entorno (v.g. las condiciones materi=
ales
de existencia de un tipo particular de condición de clase) y que pue=
den
ser asidas empiricamente bajo la forma de regularidades asociadas a un ento=
rno
socialmente estructurado, producen habitus, sistemas de disposiciones
duraderas, estructuras estructuradas predispuestas a funcionar como estruct=
uras
estructurantes, es decir, en tanto que principio de generación y de
estructuración de prácticas y representaciones que pueden ser
objetivamente “reguladas” y “regulares” sin ser en =
nada
el produto de obediencia e reglas, objetivamente adaptadas a su finalidade =
sin
suponer la mirada expresa de las operaciones necesarias para alcanzarlas y,
siendo todo eso, colectivamente orquestadas sin ser el producto de la
acción organizadora de un jefe de orquesta (Bourdieu,
2001, p. 25).
Esse o
campo de atuação da magistratura, porque o juiz se insere em
grupo, com particulares características e habitus financeiro,
cultural e social bem definidos.
O
capital simbólico age, por sua vez, pelo sentido e significado que se
atribui à jurisdição, enquanto elemento essencial e
catalisador do convício em sociedade.
Nisso o
elemento simbólico de Bourdieu termina se “justificando”=
, oficializando-se
o conceito na sociedade, ainda que não reproduzido fielmente por uma
igualdade efetiva e material que haveria de se esperar da magistratura.
CONCLUSÃO
A análise da violência sexual
contra meninas e mulheres revela um grave dilema social e judicial,
profundamente enraizado nas desigualdades de poder, estereótipos de
gênero e preconceitos raciais. Esse fenômeno não apenas
deslegitima as vozes das vítimas, mas também perpetua
injustiças epistêmicas que dificultam seu acesso à
justiça e à reparação. Os dados apresentados
demonstram a magnitude dessa violência, especialmente contra as
populações mais vulneráveis, como meninas e mulheres
negras, frequentemente descreditadas em função de um sistema
patriarcal.
Medidas legais existem, como a Lei Maria =
da
Penha, Lei do Feminicídio e a Lei Mariana Ferrer, além de
importantes decisões das cortes superiores, como a proferida nos aut=
os
da ADPF 1.107, mas sua eficácia termina comprometida pela
persistência de padrões culturais e jurídicos que
desconsideram as experiências das vítimas. A necessidade de um
sistema de justiça mais inclusivo e sensível às
especificidades de gênero, raça e classe se revela imperativa =
para
a efetivação dos direitos humanos.
O reconhecimento da injustiça
epistêmica deve ser acompanhado de ações concretas que
visem desmantelar estruturas discriminatórias, assegurando que as vo=
zes
das meninas e mulheres sejam ouvidas e respeitadas. Portanto, a
transformação do sistema judicial é não apenas
desejável, mas essencial para garantir a dignidade, a integridade e =
os
direitos fundamentais de todas as vítimas de violência sexual.=
Políticas públicas para a
prevenção a esses crimes e capacitações
específicas sobre questões de gênero e direitos humanos
para todas as pessoas que atuam no sistema de justiça, com ênf=
ase
na magistratura e servidores do Poder Judiciário, são essenci=
ais
para a mudança de mentalidade no sistema de justiça, levando =
em
conta o contexto social e as desigualdades sociais e de gênero existe=
ntes
na sociedade brasileira, pois só assim poderemos ter uma justi&ccedi=
l;a
mais igualitária e respeitosa em relação aos direitos
humanos das meninas e mulheres.
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*
Desembargadora do TJ=
RJ. Doutora em Direito Público e Filosofia Jurí=
;dico-Política
pela Universidade Autônoma de Barcelona. Presidente do Fórum
Permanente de Violência Doméstica, Familiar e de Gênero.
Professora da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) e =
do
Mestrado Profissional em Direito e Poder Judiciário da ENFAM. E-mail=
: mello.adriana25@gmail.com.
** Desembargador
do TJRJ. Mestre em Direito pela
Universidade Estácio de Sá. Mestre em Direitos Humanos pela
Universidade de Barcelona. Diretor-geral da EMERJ biênio 2015/2016.
Presidente do Fórum Permanente de Direitos Humanos da Escola da
Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ). E-mail: cae.tanocosta@yah=
oo.com.br.
Adriana Ramos de Mello; Caetano E. da Fonseca Co=
sta
Injustiça epistêmica e violên=
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nbsp; Direito
em Movimento, ISSN: 2238-7110, Rio de Janeiro, v. 23, e665, p. 1-11, 2025.<=
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DOI: 10.70622/2238-7110.2025.665 |