NOTA DA EDITORA-CHEFE SEÇÃO ESPECIAL GÊNERO E INJUSTIÇAS EPISTÊMICAS

Editor-in-Chief’s Note Special Section Gender and Epistemic Injustices

 

“Se entendemos que desconfiar das certezas é uma virtude, entendemos também que o complemento de criar dúvidas inéditas vai tornando a informação mais interessante” (Bucci, 2023, p.127).

 

Recebi com alegria o convite da Desembargadora Adriana Ramos de Mello e da Dra. Janaína Matilda para participar do Seminário Gênero e Injustiças Epistêmicas, realizado pela EMERJ em parceria com a ENFAM. Trata-se de duas mulheres juristas cuja representatividade nos respectivos campos de atuação é reconhecida para além das fronteiras de nosso país.

Muito honrada recebi, a posteriori, a incumbência de apresentar esta Seção Especial da Revista Direito em Movimento v. 23 - Gênero e Injustiças Epistêmicas, composta por artigos resultantes do referido seminário, de visceral importância para o aprofundamento do estudo das injustiças epistêmicas no contexto de atuação da magistratura nacional, esta que ainda se vê cotidiana e continuamente mergulhada nos preconceitos inerentes às diferentes dimensões humanas, principalmente quando os conflitos envolvem gênero, cor de pele e orientação sexual.

O seminário trouxe temáticas variadas envolvendo as injustiças epistêmicas, alargando as fronteiras de compreensão e conhecimento dessa forma de injustiça que permeia uma hermenêutica de lacunas, mais persistentes do que gostaríamos de admitir, sempre que, por exemplo, os conflitos perante o Judiciário envolvem violência sexual contra meninas e mulheres ou testemunhos prestados por pessoas que, por discriminação pura e simples, são desqualificadas.

Importa referir o papel relevante da filósofa inglesa Miranda Fricker (2007), que cunhou o termo “injustiça epistêmica” na obra seminal e hoje traduzida para o português Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing, sobre a qual o evento da EMERJ foi construído.

Miranda Fricker apropria-se de uma melhor formulação do tema da “justiça” e dialoga de forma sistemática e profunda com a “injustiça”, procurando “entender como a injustiça se torna algo invisível no campo da produção do conhecimento, prejudicando muitos indivíduos em sua capacidade de conhecer” (Kuhnen, 2013, p.627).

De se sublinhar como a academia contemporânea aprofunda a análise e as perspectivas de seus

Editora: Cristina Tereza Gaulia


estudos e pesquisas.

Como Fricker, que analisa a questão da “justiça” pelo ângulo ainda muito desconhecido da “injustiça”, também outros intelectuais promovem uma inversão dos olhares e dos diálogos epistêmicos sobre os campos de investigação, alargando assim as fronteiras do conhecimento.

Pedro Ferreira de Souza (2018, p.23/24), doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília, por exemplo, analisa a “desigualdade econômica” tornando os “ricos” objeto de seu estudo e, assim, pontuando que “a desigualdade é diferente vista do topo”, e complementa com percuciência que “somos um país com alto grau de desigualdade [...]. Mesmo assim, o foco recai com muito mais frequência sobre os mais pobres e o que lhes ‘falta’.”

Na mesma linha de intelecção, Grada Kilomba (2019, p.43) refere que a compreensão do racismo somente será aprofundada quando houver o deslocamento do estudo dos discriminados para os que discriminam, tornando-se os brancos, a branquitude, objeto de estudo, e passando-se assim a compreender os mecanismos de ego dos brancos, de modo que o sujeito branco possa “ser capaz de ouvir”, tornando-se consciente “de sua própria branquitude e de si como perpetrador do racismo”.

Todas as manifestações trazidas no evento seguiram essa notável pauta de desconstrução dialógica do conceito tradicional de justiça, a possibilitar a sua reconfiguração pelo ângulo da injustiça epistêmica, que ainda permeia toda a hermenêutica do sistema judiciário.

Essa postura de abertura de um movimento mobilizador do pensamento, preparando a reflexão e problematizando os fatos e situações do mundo, da vida real, é necessária para distanciar a ciência jurídica de “silogismos matemáticos concebidos para formar certezas e confirmar valores específicos” (Barbosa, 2022, p.29).

E foi tocante a conscientização gradual mobilizada pelas manifestações de juízas, professoras, estudiosas, juristas, que, de forma emocionante e emocionada, descortinaram como ocorre a descredibilização de sobreviventes (Jerade, 2024)1, ou de testemunhas, seja por sotaque, por falta de vocabulário, cor de pele ou vestimenta (Rodrigues; Duarte)2

A injustiça epistêmica é, portanto, como disse o Min. Rogério Schietti em sua fala de abertura, uma questão que cala fundo quando se revela a ausência de credibilidade posta e imposta pelo mainstream da cultura jurídica dominante, constructo social a ser repensado e reformulado, com o cuidado que cada história de gênero requer.

 


1 “O termo ‘sobrevivente’ é usado porque a noção de vítima carrega uma normatividade sobre a sexualidade feminina como passiva e uma ideia de uma subjetividade permanentemente danificada” (Jerade, 2024).

2 Sobre as injustiças testemunhal e hermenêutica, referem Rodrigues e Duarte (2024), que ocorrem “quando um indivíduo é prejudicado em sua capacidade de ser entendido e reconhecido devido a preconceitos sociais e estereótipos”. Tais injustiças são oriundas de uma lacuna hermenêutica (falta de vocabulário para expressar o fato) e de um preconceito hermenêutico, pois “os ouvidos do ouvinte estão ‘fechados’ para a experiência do outro”. O somatório origina o “testemunho desacreditado”.


Fenômeno sociológico de dimensão estrutural, profundamente enraizado na maneira pela qual o Judiciário pauta e pensa as questões inerentes aos processos judiciais, essa redução de credibilidade ocorre por formas conscientes ou inconscientes, por força de preconceitos e discriminações identitárias, que Fricker diagnostica como a “dificuldade dos ouvintes” e que

[...] reside no fato de que mesmo que afirmem não ter preconceito na base de suas crenças, ainda assim, o ambiente social em meio ao qual os julgamentos ocorrem contém inevitavelmente resíduos de preconceitos que ameaçam influenciar a recepção crítica do que se ouve e a credibilidade do falante. O próprio treinamento da virtude ocorre no ambiente social e, por mais que o sujeito reflita sobre a herança social que lhe é transmitida e confronte-a por meio de sua experiência individual de trocas testemunhais, há o risco de permanência de níveis de preconceito (Kuhnen, 2007, p.631-632).

 

Quando, portanto, a coragem de quebrar regras colonizadoras do pensamento jurídico traz a lume propostas de reconstituição do tecido com o qual é formado o conhecimento jurídico conservador, estamos vivendo a emancipação crítica dos conceitos e ideias que permeiam toda a maneira de pensar e aplicar o Direito a que os operadores do sistema de justiça se acostumaram irrefletidamente.

Afastar as injustiças epistêmicas das situações judicializadas que envolvem gênero, cor da pele e orientações sexuais diversas, e ousamos dizer, que envolvem “castas sociais”(Wilkerson, 2021)3, é mais que proposta de mudança, é já agora obrigação institucional por força dos Protocolos de Julgamento com Perspectiva de Gênero (Res/CNJ 429/2023) e com Perspectiva Racial (Res/CNJ 598/2024), perfazendo promessa de reconfiguração de toda a epistemologia jurídica nacional, afastando desqualificações, descredibilizações e discriminações, os três “Ds” das injustiças epistêmicas.

Para uma luta de fato contra a tessitura dogmática conservadora (“que conserva os preconceitos”) das decisões judiciais, e para que seus prolatores sejam finalmente sensibilizados para as injustiças epistêmicas que estão presentes em todas as instâncias e tribunais, inclusive no plano administrativo, onde ainda se descredibilizam denúncias de assédios diversos e remanescem impunes atos de discriminação e desrespeito de gênero, classes sociais e de raça, necessário se faz a discussão e reflexão constantes sobre os processos de ocultamento da realidade que permeiam as instituições e as instâncias de poder.

Conhecer a política dos afetos (Safatle; Evaristo; Queiroz; Oliveira) e entender como os afetos


3 Isabel Wilkerson expõe no livro Castas: as origens do nosso mal-estar uma contundente pesquisa, realizada nos EUA (racismo segregativo e leis Jimmy Crow), na Alemanha (extermínio de judeus nos campos de concentração nazistas) e na Índia (castas e a exclusão dos Dalits), que revela o sistema das castas sociais para além das questões relativas a raças, classes sociais e outros fatores, proporcionando ao leitor brasileiro uma possibilidade de maior compreensão das desqualificações das “nossas castas”, que sofrem, desde sempre, as injustiças epistêmicas.


(e desafetos!) são propostas políticas que se enraízam a partir das falas dos grupos dominantes pode revolucionar a maneira de pensar a partir de “crenças melhores”.

Dos afetos expandidos decorrerá também a expansão do glossário epistemológico, e com esse alargamento, o desvelamento da realidade, tão necessário para o desocultamento das injustiças reiteradas, decorrentes de uma epistemologia jurídica, que, ultrapassada, não tem mais lugar no século XXI.

Lembro, ao encerrar este prefácio, do trabalho de Christian Dunker (2020, p.66), que propõe uma educação para a escuta, trazendo o repertório de Lacan, que propunha ser o tratamento psicanalítico “essa passagem da fala vazia para a fala plena”.

Sem dúvida, com razão Dunker (2020, p.67): “Escutar toma tempo. Tempo e generosidade com o outro, para dilucidar os mal-entendidos [...]. Escutar é poder ‘não entender’, é poder respeitar o ‘desentendido’, é fazer funcionar, na prática, a paixão da ignorância”.

 

Cristina Tereza Gaulia

Doutora e Mestra em Direito

Editora-Chefe da Revista Direito em Movimento EMERJ

 

 

REFERÊNCIAS

 

BARBOSA, Antônio Lúcio Túlio de Oliveira. Porvir, atualidade e ter sido: a marca da temporalidade da decisão judicial no horizonte hermenêutico da alteridade. Direito em Movimento: um outro Direito é possível, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, 1. sem., p.15-40, 2022. Disponível em: https://ojs.emerj.com.br/index.php/direitoemmovimento/article/view/403/177. Acesso em: 14 ago. 2025.

BUCCI, Eugênio. Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta. Belo Horizonte: Autêntica, 2023.

 

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Resolução n. 492, de 17 de março de 2023. Estabelece, para adoção de Perspectiva de Gênero nos julgamentos em todo o Poder Judiciário [...]. Brasília, DF: CNJ, 2023. Disponível em: atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/4986. Acesso em: 15 ago. 2025.

 

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Resolução n. 598, de 22 novembro de 2024. Estabelece as diretrizes para adoção de Perspectiva Racial nos julgamentos em todo o Poder Judiciário      [...].                           Brasília,    DF:                  CNJ,         2024.          Disponível   em: original121813202411266745bc8528359.pdf. Acesso em: 15 ago. 2024.

 

DUNKER, Christian. Paixão da ignorância: a escuta entre psicanálise e educação. São Paulo: Contracorrente, 2020.

 

FRICKER, Miranda. Injustiça epistêmica: poder e a ética do conhecimento. Tradução: Breno R.

G. Santos. São Paulo: EDUSP, 2024.


JERADE, Miriam. A instituição da justiça em face das injustiças epistêmicas da violência sexual. Texto que integra a coletânea relativa ao Seminário Gênero e Injustiças Epistêmicas (2024).

 

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios do racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

 

KUHNEN, Tânia Aparecida. FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: power and the ethics of knowing. New York: Oxford University Press, 2007. Resenha. Princípios: revista de filosofia, [S.l.],   v.   20,   n.   33,   p.   627-639,   2015.   Disponível   em:

https://periodicos.ufrn.br/principios/article/view/7531. Acesso em: 2 dez. 2024.

 

OLIVEIRA, Clayton de Moura. A política dos afetos: uma análise da relação obra-corpo-mundo como produção de potência de vida. 2. ed. [S.l.]: Independently published, 2023. E-book (212 p.). ISBN: 979-8376412879.

 

QUEIROZ, Veronica Santana. Conceição Evaristo e a política dos afetos: caminhos para a Bioética. Rio de Janeiro: Telha, 2022.

 

RODRIGUES, Bruna dos Santos Costa; DUARTE, Maria das Graças Fernandes. Injustiças epistêmicas e a violência sexual contra meninas e mulheres. Texto que integra a coletânea relativa ao Seminário Gênero e Injustiças Epistêmicas (2024).

 

SAFATLE, Vladimir Pinheiro. O circuito dos afetos: Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

 

SOUZA, Pedro H. G. Ferrera de. Uma história de desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil, 1926-2013. São Paulo: Hucitec: Aupocs, 2018.

 

WILKERSON, Isabel. Castas: as origens do nosso mal-estar. Tradução: Denise Bottmann, Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.