A DEGENERAÇÃO DO ESTADO DE DIREITO: QUAL É A LIÇÃO DE
WEIMAR?
The erosion of constitutional government: what lesson does Weimar offer?
Pedro Estevam Alves Pinto Serrano
Alessandra Lopes Santana de Mello
Resumo: O artigo tem por escopo identificar as principais causas e condições que fomentaram a
ascensão do Regime Nazista na República de Weimar, bem como descrever como se operou a
transformação de um Estado Democrático em um Estado Totalitário, no período entre 1933 a 1945.
Após restar vencida na 1ª Guerra Mundial, a Alemanha experimentou uma série de crises que impôs
grande sofrimento às massas e ensejou elevada desconfiança quanto à eficiência do Estado e do
modelo democrático parlamentar. Tal conjuntura permitiu a ascensão do Partido Nacional-Socialista,
que questionava a ordem (não para modificá-la), mas para mantê-la sob a égide de novos atores.
Busca-se demonstrar como o Direito foi gradativamente modificado por dentro, isto é, por medidas
normativas decretadas pelo Poder Executivo, que instituíram um Estado Dual, uma combinação entre
Estado de Prerrogativas (arbitrário e violento) e Estado Normativo (imprescindível ao sistema
capitalista). O novo regime suprimiu direitos fundamentais de todos que não interessavam ao Partido
ou aos monopólios capitalistas, sem encontrar resistência efetiva dos demais poderes. Revisitar o
tema importa nesse início do século XXI, na medida em que a derrota militar do nazismo ou do
fascismo, ao final da 2ª Guerra Mundial (1945), parece não ter representado a extinção de suas
ambições ou de seus métodos. Os apelos por governos “fortes” ou por medidas de exceção ressurgem
novamente nos debates eleitorais, nas redes sociais ou no interior das instituições democráticas. Aos
operadores do Direito cumpre saber identificar, em suas realidades, as novas ondas autoritárias e
poder resistir aos retrocessos.
Palavras-chave: Estado de Direito; medidas de exceção; autoritarismo; retrocesso; democracia.
Abstract: The article aims to identify the main causes and conditions that fostered the rise of the
Nazi Regime in the Weimar Republic, as well as to describe how the transformation from a
Democratic State into a Totalitarian State occurred in the period between 1933 and 1945. After being
defeated in World War I, Germany experienced a series of crises that imposed great suffering on the
masses and led to a high level of distrust in the efficiency of the state and the parliamentary democratic
model. This situation allowed for the ascent of the National Socialist Party, which questioned the
order (not to change it) but to maintain it under the aegis of new actors. The article seeks to
demonstrate how the legal system was gradually modified from within, through normative measures
decreed by the Executive Branch, which established a Dual State, a combination of a Prerogative
State (arbitrary and violent) and a Normative State (indispensable to the capitalist system). The new
regime suppressed fundamental rights of all those who did not align with the Party or capitalist
monopolies, without encountering effective resistance from other branches of power. Revisiting the
topic is important in the early 21st century, as the military defeat of Nazism or fascism at the end of
World War II (1945) does not seem to have represented the extinction of their ambitions or methods.
Calls for "strong" governments or exceptional measures reemerge in electoral debates, on social
Pós-doutor em Direito Público pela Universidade de Paris; pós-doutor em Teoria do Direito pela Faculdade de Direito
da Universidade de Lisboa; doutor em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Mestre em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Master of Comparative Law
pela Samford University. Magistrada no Estado de São Paulo.
media, or within democratic institutions. Legal practitioners must know how to identify the new
authoritarian waves in their realities and be able to resist regressions.
Keywords: Constitutional government; exceptional measures; authoritarianism; regression;
democracy.
Submissão em: 25/10/2023
Aprovação em: 26/10/2023
27/10/2023
INTRODUÇÃO
Na Era Contemporânea, o propósito do Estado e o papel do Direito foram redesenhados
muitas vezes no mundo ocidental, consoante se infere da passagem do Estado Absolutista (séc. XVIII)
para o Estado Liberal Constitucional (séc. XIX); da passagem deste para o Estado Ditatorial ou
Totalitário (séc. XX); da criação do Estado Social-Democrático (séc. XX) e sua transformação em
Estado Neoliberal (séc. XXI).
Em busca da superação dos desafios de cada tempo, o homem buscou o avanço econômico
e científico, a formação de novos arranjos políticos e jurídicos, a fim de evitar o ressurgimento de
novas perturbações.
A História não é, todavia, uma direção. É plurívoca. Caminha entre sombras e luzes (Lafer,
1991, p. 34) e, não raro, entre mais sombras do que luzes, como se viu nas 1ª e 2ª Guerras Mundiais,
na prática do holocausto e no decreto de morte das minorias.
No pós-2ª Guerra Mundial, a ciência, como se pudesse compensar toda a destruição causada,
criou instrumentos capazes de reduzir as distâncias de tempo e espaço, de relativizar fronteiras, de
aproximar pessoas e facilitar a troca de conhecimento. Os avanços tecnológicos multiplicaram os
meios de produção e aumentaram o potencial de circulação de riquezas. No plano jurídico,
reafirmaram-se os direitos humanos e a ética coletiva, em detrimento da moral individual.
Não obstante, a miséria, a escassez, as desigualdades e as guerras não deixaram de existir.
As sociedades consideradas mais civilizadas ainda lutam contra a criminalidade, contra a violência e
contra o terror. As crises são recorrentes, as guerras iminentes, assim como as polarizações sociais e
os movimentos políticos extremados.
O progresso material não modificou nossos instintos primitivos e nossos impulsos de
dominação.
Não há surpresa, pois, que, nas primeiras décadas do século XXI, o mundo ocidental volte a
experimentar retrocessos democráticos e a temer a ascensão de regimes autoritários, ainda que estes
se apresentem com menor clareza, como sói acontecer na liquidez do mundo contemporâneo.
O risco de movimentos autoritários e de rupturas democráticas é concreto, não apenas por
ser a história pendular, movimentando-se entre avanços e retrocessos, mas por seguirmos em um
mundo globalizado, neoliberal, em que a tecnologia e a inteligência artificial conferem meios de
dominação mais violentos e menos aparentes.
O Direito não pode ignorar a realidade que o circunda ou recear conhecer os fenômenos
políticos, econômicos, sociológicos e até psicológicos que estão na base do autoritarismo. Se pretende
agir como ciência social que é, deve ser capaz de compreender a natureza humana, de forma a regular
o comportamento social, a economia e a política, ao invés de se deixar regular por estes.
No presente artigo, objetiva-se identificar algumas das causas e condições que permitiram a
ascensão do Regime Nazista na Alemanha a partir de 1930, por ser este um dos fenômenos mais
representativos de regime autoritário no século XX, que, no seu auge, rompeu com o Estado de Direito
e com a ordem centrada a partir do ser humano.
Almeja-se compreender como se deu a transição entre um Estado de Direito para um Regime
Totalitário e verificar se essa experiência nefasta ensejou algum progresso à ciência do Direito,
tornando-o mais apto a proteger o ser humano.
O desafio impõe-se, à medida que a transformação do funcionamento dos Estados e das
sociedades, em um mundo globalizado, desafiam ainda mais a democracia.
1 LEGADOS DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL
1.1 Crise do liberalismo econômico
O “Breve Século XX”, expressão usada pelo historiador Eric Hobsbawm, foi marcado pela
guerra, uma “grande guerra” (1ª e a 2ª Guerras Mundiais), com duração de 31 (trinta e um) anos
(1914-1945), que fez com que todos vivessem e pensassem em termos de conflito no século XX
(Hobsbawm, 1995, p. 30).
A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) envolveu todas as grandes potências e quase todos
os Estados europeus, como os que integraram a Tríplice Aliança (França, Grã-Bretanha e Rússia) e
os que a ela se aliaram posteriormente (Itália, Grécia, Romênia, Portugal e EUA), assim como os que
integraram as “Potências Centrais” (Alemanha e Áustria-Hungria) e a estas também se juntaram
(Turquia, Bulgária e Japão).
A Alemanha (antiga Prússia), cujas unificação e industrialização se fizeram tardias,
pretendia assumir uma posição de supremacia política e marítima global, tal como a Grã-Bretanha;
repartilhar as colônias na África e demais continentes; bem como expandir territórios (espaço vital),
por meio de guerras externas (nacionalismo agressivo). A França queria compensar sua inferioridade
demográfica com a crescente economia e ficar à frente da Alemanha. As principais potências
alinharam-se entre os dois lados, mas todos desejavam expandir seu potencial de produção, de
comércio e de crescimento econômico.
O acirramento das disputas entre as principais potências acabou por colapsar a estrutura
ocidental (capitalista, na economia; liberal, na estrutura legal e constitucional; burguesa, no campo
social). Segundo Hobsbawm, a política e a economia haviam se fundido sob a lógica da competição
a qualquer preço e do crescimento sem limites (Hobsbawm, 1995, p. 37).
A ausência de limites para vencer a guerra produziu milhares de mortos e derrotou todos os
países envolvidos. Os vencidos e os vencedores ficaram falidos e extenuados, na medida em que o
embate havia ido muito além de seus recursos e forças. Depois da 1ª Guerra Mundial, muitos países
caminharam para as tiranias fascistas ou governos totalitários (Arendt, 1989, p. 339).
A Alemanha, além das perdas de guerra, fora apenada pelo Tratado de Versalhes, que, a
pretexto de garantir a paz, buscou alijá-la da economia europeia, ao dividir suas colônias entre França
e Grã-Bretanha, limitar o poderio de suas forças armadas, condená-la a pesadas indenizações,
restringir sua industrialização, determinar a ocupação militar em parte de seu território e engendrar o
isolamento econômico.
Para Hobsbawm1, tais sanções instalaram um foco de tamanha instabilidade na Europa no
pós-1918 que tornou quase certa a 2ª Guerra Mundial, além de trazer a violência dos campos de
batalha à política.
De um modo geral, os Estados se propuseram a garantir que não mais se submeteriam aos
horrores da guerra. Para tanto, líderes políticos abusaram de discursos nacionalistas e propagandas
que idealizavam de Estados-nações grandes, fortalecidos pela etnia, idioma, nacionalidade e cultura
(Hobsbawm, 1995, p. 56).
No plano econômico, mobilizaram-se para produzir material bélico em massa, tornar suas
economias altamente industrializadas e produtivas, além de desenvolver capacidade administrativa
para contabilizar custos e planejar estratégias políticas, econômicas e militares.
As ideias próprias ao liberalismo econômico, fortemente defendidas no mundo ocidental no
século XIX e início do século XX, foram cedendo, naquele contexto de guerra e de crises, para
movimentos de intervenção do Estado.
1 “Quase todos os que serviram na Primeira Guerra Mundial – em sua esmagadora maioria soldados rasos – saíram delas
inimigos convictos da guerra. Contudo, os ex-soldados que haviam passado por aquele tipo de guerra sem se voltar contra
ela às vezes extraíam da experiência partilhada de viver com a morte e a coragem um sentimento de incomunicável e
bárbara superioridade – inclusive em relação a mulheres e não combatentes – que viria a formar as primeiras fileiras da
ultradireita do pós-guerra” (Hobsbawm, 1995, p. 34).
1.2 Críticas ao liberalismo político e jurídico, por Carl Schmitt
Carl Schmitt2, na obra O Conceito do Político (1922), identifica que a humanidade se
organiza a partir de âmbitos de preocupações centrais, em torno dos quais promove seu
desenvolvimento.
Afirma que, no século XVI, o cerne dos interesses humanos era a teologia, segundo a qual a
paz e o progresso alcançariam aos que observassem os deveres religiosos. No século XVII, a
metafísica foi o referencial que impulsionou o desenvolvimento da matemática, da astronomia e das
ciências naturais. No século XVIII, a racionalização do saber humano foi a mola propulsora do
desenvolvimento da humanidade. No século XIX, a economia ganhou destaque em função da
industrialização, da produção e consumo. No século XX, a técnica ensejou crença fervorosa na arte
de dominar a natureza e a produção econômica.
Segundo Schmitt, o homem sempre buscou um ponto de neutralidade e de despolitização
para obter entendimento, união e segurança. Todavia, assim como a religião não garantiu a paz,
também não o fizeram as ciências naturais, a economia ou a técnica. Recorda que, depois das guerras
religiosas, vieram as guerras nacionais, as disputas por expansão de territórios, por aquisição de
recursos naturais e de novos mercados de consumo.
Apoiando-se em Hegel — para quem o homem burguês não quer deixar a esfera do privado
apolítico e absolutamente livre do Estado, mas, antes, deseja proteção às suas posses e segurança à
sua fruição — Schmitt pontua que o acúmulo de propriedades reclama poder social e o controle
político. Por isso, a partir do século XIX, o econômico une-se fortemente ao político (Schmitt, 2015,
p. 111-112).
Enfatiza que, embora os liberais se oponham ao político e ao Estado, precisam que o sistema
lhes garanta a proteção da propriedade privada e elimine as perturbações à liberdade de uso desses
bens e rendas. O Estado e o Direito não escapam à função de proteger as posses, os lucros e a
autonomia privada.
Acresce que se, no âmago de cada indivíduo não há nada neutro e se as diferenças de
interesses econômicos e políticos são inexoráveis, o risco de conflitos de interesses e de classes
sociais também o é. A iminência de combate é real e não fruto de um pessimismo ou de uma dialética
abstrata.
2 “[...] para uma era teológica, tudo se resolve por si mesmo quando as questões teológicas são postas em ordem; tudo o
mais “será concedido” então aos homens. E correlativamente para as outras eras: para um tempo humanitário-moral, trata-
se apenas de educar e de formar moralmente os homens, todos os problemas se tornam problemas de educação; para um
tempo econômico, precisa-se apenas de resolver corretamente o problema da criação de bens e da repartição de bens, e
todas as questões morais e sociais já não constituirão dificuldades; para o pensamento meramente técnico, através de
novas invenções técnicas também o problema econômico será solucionado e todas as questões inclusivamente as
econômicas, recuam diante da tarefa do progresso técnico [...]” (Schmitt, 2015, p. 147-148).
Nesse quadro, em que a contraposição de classes se faz sempre presente, conclui que à
política compete promover a separação entre amigos e inimigos3, isto é, distinguir grupos de pessoas
de acordo com as afinidades de interesses econômicos, políticos e sociais, a fim de traçar prioridades
e estratégias de ações ao Estado.
O Direito nunca se desconecta do político, de sorte que, mesmo que um Estado se apoie em
um Direito Natural, representará senão a vontade e a visão do grupo dominante na política e na
economia. Em suas palavras:
[...] a soberania do direito significava apenas a soberania dos homens que põem e manipulam
as normas jurídicas, que o domínio de uma “ordem mais elevada” é uma frase vazia se não
tiver o sentido político que determinados homens, com base nesta ordem mais elevada,
querem dominar sobre homens de uma “ordem mais baixa” (Schmitt, 2015, p. 118).
A defesa da apoliticidade é, para Schmitt, uma “armadilha intelectual”4 utilizada para ensejar
desconhecimento e mascarar realidades.
Tais reflexões críticas ao liberalismo político e jurídico implicarão diretamente na
conformação dos Estados, do Direito e na relação entre o Direito e a política a partir de 1918 na
Alemanha.
1.3 Os desafios da recém-nascida República de Weimar (1918)
Em 09.11.2018, após o término da Primeira Guerra Mundial, o Imperador alemão Guilherme
II abdicou do trono e deu lugar à Proclamação da República de Weimar.
Marie Goupy, na obra L´état d´exception: ou l´impuissance autoritaire de l´État à l´époque
du liéralisme, observa que a República de Weimar já nasceu enfraquecida. Isso porque, para sua
constituição, uniram-se forças políticas muito distintas (forças liberais, sociais-democratas,
comunistas e outras), sem que houvesse consenso claro sobre a direção política a ser seguida pelo
novo Estado (Goupy, 2016, p. 87-90).
3 Tal distinção, explica o autor, não se dá no plano pessoal. Não significa que um indivíduo ou uma família deva se opor
à outra diretamente. Os grupos de pessoas se formam a partir de seus centros de interesses e são esses grupos ou os
Estados que disputarão espaços, riquezas e poder (Schmitt, 2015, p. 114).
4 “Assim, o conceito político do combate torna-se, no pensamento liberal, do lado econômico, concorrência, e de outro
lado, do lado “espiritual”, discussão; no lugar de uma diferenciação clara de ambos os diferentes status de “guerra” e
“paz”, surge a dinâmica da eterna concorrência e da eterna discussão. O Estado torna-se sociedade, e torna-se de facto,
de um dos lados, do lado ético-espiritual, numa representação ideológico-humanitária da “humanidade”; do outro lado,
na unidade econômico-técnica de um sistema de produção e transporte. Da vontade de se defender do inimigo, que está
dada na situação de combate e que é completamente óbvia, emerge um ideal social ou um programa racional-construído,
uma tendência ou um cálculo econômico. Do povo politicamente unido emerge, de um dos lados, um público
culturalmente interessado, e, do outro lado, em parte o pessoal da fábrica e trabalhador, em parte uma massa de
consumidores. Do domínio e do poder emerge, no polo espiritual, a propaganda e a sugestão das massas e, no polo
econômico, o controlo” (Schmitt, 2015, p. 126).
A aliança pró-república era demasiadamente frágil e sujeita a constantes tensões. Pesava
sobre o parlamento alemão uma verdadeira crise de confiança. A elite burguesa receava que o
parlamento representasse apenas as decisões de interesses das massas proletárias. Os proletários
temiam que o Legislativo perpetuasse os interesses das elites. A aristocracia duvidava que um
parlamento plural, representativo de forças políticas diversas, tivesse meios de adotar soluções
rápidas e eficientes para conter o avanço do comunismo e a revolta dos proletariados (Goupy, 2016,
p. 62).
Segundo Goupy, conquanto a atmosfera antiparlamentar não se limitasse ao território
alemão, havendo na Europa intensas discussões em torno da separação de poderes, dos poderes de
crise e da fé exagerada no parlamento (“legiscentrismo”5), na República de Weimar o contexto de
perturbações era mais intenso.
Além das perdas da guerra e das sanções impostas pelo Tratado de Versalhes, os veteranos
mutilados da guerra não ajustavam em seus ambientes; a classe operária/trabalhadora padecia de
frustração pelas promessas não realizadas pelos movimentos comunistas; a Alemanha padecia de
crise de hiperinflação a partir de 1923, de elevado desemprego e perda de poder aquisitivo dos
trabalhadores, sobretudo a partir da Grande Depressão econômica mundial (1929).
Os defensores do capitalismo já não conseguiam convencer as massas de que o “melhor
sistema econômico” era o capitalismo.
É nesse contexto que o Partido Nacional-Socialista ascende ao poder, com a nomeação de
Adolf Hitler ao cargo de Chanceler, em 30.01.1933, e instala um regime de exceção.
A pretexto de salvaguardar a ordem e a segurança, a experiência nazista em Weimar
subverteu os valores de justiça e de ética cultivados tradicionalmente pelo mundo ocidental e
descartou seres humanos como itens supérfluos e dispensáveis, consoante restará demonstrado.
2 O ESTADO DUAL ALEMÃO, POR ERNST FRAENKEL
Ernst Fraenkel, advogado judeu nascido na Alemanha e veterano de guerra, na obra Dual
State: a contribution to the Theory of Dictatorship, descreve, com propriedade, como se deu a
implantação do Regime Nazista, a partir de 1933.
5 “Legiscentrismo” (fé exagerada no parlamento) era uma expressão crítica utilizada por parte das elites conservadoras,
que temia a prevalência dos interesses das massas nas deliberações da Assembleia Legislativa, o órgão considerado mais
representativo e democrático da República, em que o povo podia exercer sua soberania. Nesse movimento
antiparlamentar, foram também empregadas expressões como “absolutismo parlamentar” e “ditadura do parlamento”
(Goupy, 2016, p. 62-65).
O valor da obra é inestimável, por ter sido escrita em Berlim, no período entre 1936 a 1938,
isto é, no curso dos acontecimentos, por alguém que vivenciou a transformação do Estado de Direito
em Estado Ditatorial, bem como por descrever as técnicas de Estado adotadas pelo novo regime.
Fraenkel observa que o Regime Nazista não se resumiu à disseminação da violência,
arbitrariedades e ao desrespeito aos direitos fundamentais, como sugere o imaginário popular.
Assevera que foi, em verdade, uma combinação entre arbitrariedades (desrespeito às leis/ausência de
limites) e ordem (respeito às leis).
Ao mesmo tempo em que o governo incorria em arbitrariedades e violência ilimitados, o que
denominou Estado de Prerrogativas, havia um corpo normativo que continuou a ser respeitado pelas
Cortes Administrativas e Judiciais, garantindo a existência e funcionamento de um Estado Normativo.
Essa dualidade - longe de ser contraditória - foi justamente a chave que permitiu a rápida
transição do Estado de Direito para o Estado Autoritário.
De início, ocultou a violência e as arbitrariedades, dificultando a percepção geral de tais
práticas; depois, normatizou e “ordinarizou” as barbaridades, como se fossem rotinas legítimas, uma
vez autorizadas por leis e decretos; ao final, eliminou a capacidade de resistência dos indivíduos e
das instituições, de sorte que apenas fontes externas (outros Estados) puderam rompê-las.
Esse dualismo também permitiu ao Estado Alemão atender às diversas crises que pairavam
sobre a República de Weimar, ao aliar um Estado Autoritário (que toma decisões rápidas), a um
Estado racial (que escolhe seus inimigos e destrói seus opositores), a um Estado militar (que acelera
o crescimento da indústria armamentista, eleva o número de empregos e aquece a economia), a um
Estado interventor na economia (que direciona o crescimento econômico em prol da auto suficiência
da Alemanha), a um Estado expansionista (que busca expansão territorial para além das fronteiras) e
a um Estado capitalista (que garante a propriedade privada e a segurança jurídica).
2.1. Fundamentos constitucionais à ascensão do Regime Nazista
A Constituição de Weimar (1919) atribuía ao Presidente do Reich, em seu art. 48, §2º,
poderes excepcionais para agir em situações crises graves:
Se a segurança e a ordem pública forem gravemente perturbadas ou ameaçadas dentro do
Reich alemão, o presidente do Reich pode tomar as medidas necessárias para restabelecê-
las, intervindo, se necessário, com a ajuda das forças armadas. Para o efeito, pode suspender
temporariamente, no todo ou em parte, os direitos fundamentais previstos nos artigos 114.º,
115.º, 117.º, 118.º, 123.º, 124.º e 153.º
Para garantir a existência do Estado e restabelecer a ordem e a segurança pública, a
Constituição de Weimar facultava ao Poder Executivo adotar quaisquer medidas, fazendo uso,
inclusive, das forças armadas e suspensão dos direitos fundamentais, como a liberdade de expressão,
liberdade de imprensa, liberdade de reunião e de associação, inviolabilidade das comunicações,
inviolabilidade do domicílio, proibição do confisco ou de restrições à propriedade além dos limites
da lei.
Após o incêndio do parlamento alemão (27.02.1933), houve a promulgação pelo Presidente
Hindenburg do Decreto Emergencial (28.02.1933), que, para proteger o “Povo e o Estado”6 e para
combater a ameaça comunista e os inimigos do Estado, permitiu: i) a suspensão dos direitos
fundamentais acima referidos; ii) a intervenção federal nos governos estaduais e locais, caso estes
deixassem de tomar medidas necessárias ao restabelecimento da segurança e da ordem pública ou
desobedecessem às ordens do governo do Reich; iii) prisão perpétua, pena de morte e de confisco de
bens, para quem se opusesse às ordens do Reich, praticasse conspiração ou atentasse contra seus os
membros.
O artigo 76 da Constituição de Weimar também permitia ao Poder Legislativo produzir
emendas constitucionais, respeitados quóruns qualificados para instalação da assembleia (presença
de 2/3 dos membros do parlamento) e aprovação das medidas (2/3 dos presentes).
Em 24.03.1933, o Parlamento Alemão promulgou então a “Lei dos Plenos Poderes”,
concedendo poderes legislativos ao Chanceler (Hitler), facultando-lhe modificar a Constituição, sem
controle prévio ou posterior dos demais poderes, desde que não contrariasse as instituições do
Reichstag (Parlamento) e do Reichsrat (Conselho Administrativo).
Assim, ancorados no “Decreto Emergencial” e na “Lei de Plenos Poderes”, propalou-se o
entendimento de que os atos do Poder Executivo poderiam derrogar/modificar a própria Constituição,
observando-se que o art. 76 da Constituição de Weimar não havia imposto limitações materiais ao
poder de emenda conferido ao Poder Legislativo, assim como não o havia feito a Lei de Plenos
Poderes em relação ao Poder Executivo.
Marie Goupy revela que importantes juristas europeus, como Carl Schmitt, Jacobi, Carré de
Malberg e Maurice Hauriou sustentaram prontamente o acerto e legitimidade dessas medidas, que
inflaram exponencialmente os poderes do Chefe do Poder Executivo (Goupy, 2016, p. 109-110).
Argumentavam, de um modo geral, que os “poderes de crise” conferidos ao Poder Executivo
não contrariavam as bases de um Estado Constitucional Moderno, mas promoviam indispensável e
necessário reequilíbrio de poderes, na medida em que o parlamento havia sido superestimado pela
Constituição de Weimar.
6 O nome Decreto Emergencial era Decree of the Reich President for the Protection of People and State of 28. February
1933. O preâmbulo era: On the basis of Article 48, Section 2, of the German Constitution, the following is decreed as a
defensive measure against Communist acts of violence that endanger the state (Reichstag [...], [Alexandria], [2023?]).
Sustentavam que os “atos legislativos” do Executivo não modificariam normas
constitucionais em caráter perene, por serem provisórios e vigentes apenas na situação de crise, não
havendo risco de subversão democrática.
Defendiam a ideia de que o Poder Executivo era mais eficiente na tomada de decisões em
contexto de crise, em comparação ao parlamento, além de ser igualmente democrático, uma vez que
o Presidente havia sido eleito, assegurando o princípio do majoritário democrático.
Ainda, alegavam que o controle dos atos do Poder Executivo poderia ser evitado, na medida
em que os demais Poderes não poderiam se sobrepor às escolhas políticas realizadas.
Os debates doutrinários acerca da separação de poderes e dos “poderes de crise” atribuídos
ao Poder Executivo ocorreram largamente no período entreguerras7.
2.2 Estado de Prerrogativas
Munido de plenos poderes, o Chanceler alemão Adolf Hitler e o Partido Nacional-Socialista
adotaram medidas que modificaram as bases da República Federativa de Weimar.
Dentre as transformações empreendidas, Ernst Fraenkel destaca: i) a distinção entre Estado
Político e Estado Administrativo; ii) a fusão entre o Estado e o Partido Nacional-Socialista; iii) a
abolição de direitos e garantias individuais aos “inimigos”; iv) a supressão das limitações legais ao
exercício do poder de polícia no cumprimento do Decreto Emergencial e v) a eliminação do poder de
revisão judicial sobre tais atos.
A lógica adotada partia da premissa de que o Poder Executivo não deveria servir apenas à
prática de atos administrativos ou à prestação de serviços públicos essenciais. Competia-lhe, antes e
acima de tudo, tomar as decisões políticas diretivas dos rumos do Estado.
Pregava-se que apenas o Executivo guardava condições de alcançar os propósitos do Estado
e de salvaguardar sua existência. Garantir a sobrevivência do Estado era mais importante do que
respeitar direitos ou a normas processuais, uma vez que, sem Estado, não haveria direitos.
Adotou-se uma importante distinção entre “Estado Político” e “Estado Administrativo”. Os
atos políticos, praticados pelo Poder Executivo, deveriam ser considerados soberanos e imunes ao
controle das cortes administrativas ou judiciais. Os atos administrativos, próprios do funcionamento
da máquina estatal e de sua burocracia, continuariam sujeitos às regras legais, ao controle
administrativo e à revisão judicial.
A condução política do país e sua legislação, por serem tarefas de cunho político, deveriam
ficar ao encargo do Chanceler e do Partido Nacional-Socialista. Aliás, o Estado e o Partido tornaram-
7 Denominação do período que se estende do fim da Primeira Guerra Mundial (11.11.1918) até o início da Segunda Guerra
Mundial (01.09.1939).
se instituições fundidas e indistintas, de tal sorte que os membros do partido também poderiam emitir
ordens aos servidores públicos, à polícia alemã e aos civis.
A ordem jurídica fora também severamente modificada. O Decreto Emergencial de
28.02.1933 passou a ser aplicado de forma cada vez mais estendida. Embora o art. 48, §2º, da
Constituição de Weimar autorizasse a suspensão de apenas alguns direitos e garantias fundamentais,
na prática, decidiu-se que qualquer medida poderia ser tomada contra os inimigos do Estado, a
pretexto de preservar a ordem e a comunidade étnica.
Reconheceu-se o direito de expropriar bens, de suprimir liberdades e de eliminar vidas de
comunistas, judeus, minorias, críticos, opositores políticos e até de inimigos pessoais dos agentes do
Estado ou do Partido Nacional-Socialista, privando-os de proteção legal.
Sob a égide da teoria do perigo indireto, buscava-se a eliminação de todos os focos de
conflitos, tensões e todas as manifestações das diferenças. Dizia-se que qualquer desafeição permitiria
o crescimento de atividades comunistas e de subversão à ordem e à segurança públicas, tornando-se
essencial garantir a homogeneidade do povo alemão.
No decorrer do tempo, Fraenkel8 observou que a abolição dos direitos e garantias
fundamentais atingiu a todos que não interessavam ao Regime Nazista ou não demonstravam perfeito
alinhamento ideológico ao governo, mesmo que fossem arianos.
Uma lei promulgada sobre a Gestapo (polícia política), em 10 de fevereiro de 1936, proibiu
o controle administrativo dos atos diretamente praticados pela Gestapo, dos praticados de acordo com
ordens gerais ou com as especiais da Gestapo e dos atos praticados sob a jurisdição da Gestapo
(Fraenkel, 2017, p. 27-28).
Fraenkel registra inúmeras decisões judiciais reveladoras de que, após breve período de
resistência, o Poder Judiciário curvou-se à teoria do perigo indireto, abstendo-se de analisar a
legitimidade dos atos políticos/atos de poder de polícia lastreados no Decreto Emergencial, sob o
fundamento de que o mérito desses atos era político, não competindo revê-los (Fraenkel, 2017, p. 24-
37).
A proibição de controle dos atos dito “políticos” pelas Cortes Administrativas e pelo Poder
Judiciário permitiu a escalada das arbitrariedades e violência, na medida em que eliminou barreiras
aos excessos e tornou imunes os agentes do Estado e membros do Partido Nacional-Socialista.
Em consequência à ausência de controle, esses agentes deixaram de motivar e de publicar
os atos praticados; passaram a decidir questões alheias ao Decreto Emergencial e a desbordar dos
8 Fraenkel narra, em sua obra, diversos casos em que civis foram punidos por não realizar a saudação “Heil Hitler” diante
de um veículo ou de alguma autoridade governamental, embora não houvesse um dever legal de fazê-lo; por realizar
doações a instituições assistenciais não protegidas pelo Regime Nazista, por revelar a falta de perfeito alinhamento
ideológico; bem como de casos em que Testemunhas de Jeová chegaram a perder o pátrio-poder em relação aos seus
filhos menores, por não enviá-los aos acampamentos da Juventude Hitlerista, o que era percebido como uma crítica velada
ao regime (Frankel, 2017, 47-48 e 54-55).
parâmetros do Decreto Emergencial em proveito próprio, do partido ou dos empresários apoiadores
do regime.
Em nome da “Proteção do Povo e do Estado”, foram desrespeitados princípios estruturantes
do Estado de Direito, como o princípio da legalidade, princípio da anterioridade da lei penal,
proibição do bis in idem (dupla punição pelo mesmo fato), devido processo legal nos âmbitos formal
e substancial, bem como houve desrespeito às decisões judiciais e à coisa julgada9.
2.3 Estado Normativo
Em que pesem as arbitrariedades do Estado de Prerrogativas, a preservação do sistema
capitalista era um dos pilares de sustentação do Regime Nazista.
A este competia proteger a liberdade contratual, os negócios jurídicos, a obrigatoriedade de
cumprimento dos contratos (pacta sunt servanda), a propriedade privada, as regras de livre
concorrência e de proteção às marcas e patentes (Fraenkel, 2017, p. 73).
A previsibilidade das ações do Estado era imprescindível a que os empresários calculassem
os riscos de seus investimentos financeiros. A certeza de proteção jurídica à propriedade dos meios
de produção e dos lucros era também indispensável à confiança no novo sistema.
A despeito da denominação “socialista” no nome do partido, é fato que o Partido Nacional-
Socialista não protegeu a classe trabalhadora, como prometido. Ao Regime Nazista mais interessava
proteger as forças produtivas da “nação capitalista” do que os interesses do proletariado.
A fixação de salários, jornadas de trabalho e questões trabalhistas foram deixadas a cargo
dos empresários, a pretexto de que os trabalhadores precisavam sacrificar temporariamente seus
interesses em prol de uma nação forte e estável (Fraenkel, 2017, p. 101-103).
As Cortes Administrativas e Judiciais foram expressamente proibidas pelo Partido Nacional-
Socialista de promover interferência nos preços, nas margens de lucros, nas taxas de juros ou de
revisar contratos na ausência de leis.
Ao Estado Normativo competia manter a normalidade do sistema capitalista, os interesses
dos monopólios, dos cartéis, das holdings e de grandes empresas. O apoio político e financeiro
prestado por estes ao Regime Nazista estava atrelado à eliminação dos inimigos (concorrentes) e ao
direcionamento de políticas que lhes fossem favoráveis.
Não raro pequenos e médios empresários foram descartados ou atingidos pelas
arbitrariedades dos agentes do Estado/Partido. Fraenkel relata casos de comerciantes que foram
9 Fraenkel relata casos em que houve dupla condenação judicial de indivíduos pela prática de mesmo crime, quando se
acreditava que os atos atribuídos aos acusados eram mais graves do que o demonstrado na primeira ação judicial; casos
em que decisões judiciais absolutórias foram ignoradas e desrespeitadas por agentes do Estado, que aplicaram a punição
que o Poder Executivo julgava conveniente, em violação à coisa julgada (Fraenkel, 2017, p. 36-37).
acusados de ser judeus ou opositores ao regime, quando não o eram, apenas para que perdessem sua
clientela ou fossem eliminados pelos concorrentes. Ninguém estava a salvo dos abusos do regime.
A manutenção desse Estado Normativo era importante, pois, à preservação do sistema
capitalista e à transição do Estado Democrático para o Estado Ditatorial/Totalitário. De se pontuar,
todavia, que o Estado Normativo era subsidiário ao Estado de Prerrogativas, de sorte que suas ações
eram permitidas apenas se convenientes pelo Estado de Prerrogativas e de seus agentes.
A expressão “inimigo”, a ser combatido pelo Estado de Prerrogativas, poderia ser facilmente
atribuída a quem representasse obstáculos à expansão dos interesses dos grandes capitalistas ou dos
membros do Partido Nacional-Socialista.
3 A DEGENERAÇÃO DO ESTADO DE DIREITO ALEMÃO
3.1 Primazia do político, em detrimento do jurídico, e do irracionalismo
O fato de a República de Weimar ter mantido um Estado Normativo em funcionamento e de
ter preservado os poderes (Legislativo, Judiciário e Conselhos Administrativos) e outras instituições
democráticas não evitou a degenerescência do Estado de Direito. Estado Normativo não era sinônimo
de Estado de Direito.
À sombra do Decreto Emergencial e da Lei de Plenos Poderes, o conceito do político foi
alargado de tal modo que se sobrepôs sobre o conceito de justiça. Operou-se uma inversão de papéis.
O Direito – que deveria controlar o exercício dos poderes do Estado – passou a ser conformado a
partir da política.
O desequilíbrio na separação de poderes e a impotência do Parlamento, do Poder Judiciário
e das Cortes Administrativas permitiram a abolição indiscriminada de direitos e garantia
fundamentais de quem não fosse útil ao regime ou a ele se opusesse.
O Nacional-Socialismo Alemão considerou todos os homens desiguais, separou-os por raças
e defendeu que apenas indivíduos da mesma raça e hereditariedade biológica, unidos pelos mesmos
laços culturais, poderiam cooperar para o senso comum e para a paz (Fraenkel, 2017, p. 101-103).
Tais discriminações e violência não se impuseram apenas para garantir a ordem, mas para
garantir ao Partido Nacional-Socialista sua manutenção no poder. Mesmo após assumir o controle do
Estado e reprimir as ondas subversivas do proletariado, o Regime Nazista continuou a agir para
controlar todos os seguimentos da sociedade e todos os aspectos da vida humana, sem distinção entre
interesses públicos e privados e em busca de um domínio total (Arendt, 1998, p. 421).
Mobilizou o exército, todas as polícias, órgãos e servidores públicos, grupos paramilitares e
simpatizantes para se espraiar sobre todos os âmbitos da vida (famílias, igrejas, clubes de lazer,
associações, espaços de trabalho, de comércio e outros).
É curioso constatar que a organização totalitária não contou apenas com aqueles que
desejavam extrair proveito do Estado, como a elite capitalista ou classe média burguesa conservadora.
Encontrou adesão também da elite intelectual e da “ralé”, expressão adotada por Hannah Arendt para
se referir aos proletariados, desempregados e excluídos de toda sorte, denominados “subprodutos” da
burguesia (Arendt, 1998, p. 364).
O alinhamento de pessoas dotadas de visões de mundo e de interesses tão distintos é um
fenômeno de causas múltiplas e complexas, que o espaço reservado a este artigo não permite
investigar com profundidade.
Interessa-nos destacar apenas que, em situações de grave crise, quando a maioria das pessoas
não se vê representada pelos parlamentares ou governantes e predomina um sentimento de descrença
generalizado, opera-se um colapso do sistema partidário e um colapso do sistema de classes.
Segundo Arendt, na crise aguda, os partidos políticos perdem o poder de representação,
perdem o apoio dos simpatizantes neutros e não conseguem mais recrutar membros dentre a geração
mais jovem (apatia política). A divisão de classes deixa de fazer sentido, remanescendo apenas massas
desorganizadas (Arendt, 1998, p. 361-362).
Quanto mais fragmentada e fragilizada a sociedade, mais propícia fica à manipulação, aos
discursos populistas, às propagandas nacionalistas e às promessas de que só um governo forte poderá
transformar a realidade e eliminar os culpados. Não por acaso os discursos e as propagandas nazistas
foram permeados pela falta de verdade10, pela falta de lógica e demonstrações de força.
A irracionalidade dos apelos exerce grande poder de atração e convida as massas ao
engajamento em um movimento organizado, que visa destruir a ordem estabelecida, para salvar a
ordem. Quanto mais distante da realidade, maior é a chance de sucesso da propaganda totalitária,
observa Arendt11, como se houvesse uma revolta contra o realismo e contra o bom senso.
Nessa conjuntura, nasce uma solidariedade entre as massas de homens insatisfeitos,
descrentes do Direito e desconectados entre si, mas suscetíveis ao uso de medidas de força e violência,
bem como nascem as condições de ascensão de regimes ditatoriais ou totalitários.
10 “A diferença entre a verdade e a mentira deixa de ser objetiva e passa a ser uma questão de poder e de esperteza, de
pressão e de repetição infinita. Líderes de movimentos totalitários, como Hitler e Stalin, mentiam, mas davam às massas
mentiras com uma pompa impressionantes” (Arendt, 1998, p. 387).
11 “A eficácia desse tipo de propaganda evidencia uma das principais características das massas modernas. Não
acreditavam em nada visível, nem na realidade da sua própria experiência; não confiam em seus olhos e ouvidos, mas
apenas em sua imaginação, que pode ser seduzida por qualquer coisa ao mesmo tempo universal e congruente em si”
(Arendt, 1998, p. 401).
3.2 Era possível ao Direito evitar o totalitarismo alemão?
Após a 2ª Guerra Mundial, o reconhecimento do holocausto, dos campos de concentração e
dos horrores perpetrados, iniciou-se a busca aos culpados e, como não poderia deixar de ser, o Direito
experimentou uma crise.
Constatou-se que as “medidas de exceção” de natureza provisória, que tinham por escopo
suspender a ordem jurídica a fim de restabelecer a ordem e de conservar o Estado, protraíram-se no
tempo e estabeleceram um novo regime.
O positivismo jurídico kelseniano fora acusado de ser corresponsável pelo terror, sob o
fundamento de que o Direito Positivo - calcado em uma norma hipotética fundamental e autônomo
em relação aos valores (moral), à política e demais ciências humanas, pregava o respeito às leis postas,
desde que conformes às normas superiores previstas no ordenamento jurídico, o que conferiu
sustentação ao Regime Nazista.
A esse respeito, é curioso constatar que o mesmo positivismo jurídico que submetera o
Estado à estrita legalidade e fora aclamado como vitorioso na luta contra o absolutismo nos séculos
XVIII e XIX, agora, no século XX, viu-se acusado de favorecer o totalitarismo.
Muitos defenderam o retorno ao Direito Natural, sob a premissa de que a validade das leis
precisaria ser extraída não apenas de sua forma, mas de sua compatibilidade com valores supremos,
aceitos como dignos de serem perseguidos. Sustentou-se que o Direito Natural deveria integrar o
Direito Positivo e, sendo natural, deveria ser hierarquicamente superior, como fonte de justiça.
Outros questionaram a relação entre Estado e Direito. Indagaram se o Direito deveria ser
reconhecido apenas no conjunto de normas produzidas pelo Estado (Direito Legalista) ou se poderia
ser reconhecido também como produto dos costumes (Direito Consuetudinário) e de decisões
judiciais (Direito Judiciário), valendo-se de outras fontes, como as normas geradas a partir do
comportamento humano e da experiência social.
Grande também foi a crítica que se atribuiu aos juízes e intérpretes do Direito, consignando-
se que a estes não competiria apenas declarar o sentido da lei, mas construí-lo no caso concreto, a
partir da formação de juízos de valor e de escolhas.
Os debates entre jusnaturalismo e positivismo jurídico culminaram, na segunda metade do
século XX, com o “constitucionalismo” ou “pós-positivismo”, segundo o qual o Direito deve primar
por valores e princípios, a serem respeitados como cânones de justiça e interpretação das normas
jurídicas. Tais valores, posicionados acima das regras jurídicas, devem conduzir à criação, à
interpretação e à aplicação do direito.
Luigi Ferrajoli preconiza que a ciência jurídica deve guardar um papel crítico e projetual no
que tange à substância do Direito. A democracia deve deixar de ser caracterizada apenas por sua
dimensão formal e representativa, para assegurar limites aos órgãos de representação; respeito às
liberdades que nem mesmo a maioria pode violar; bem como zelar pelos direitos sociais, a serem
satisfeitos pela maioria (Ferrajoli, 2016, p. 53).
Mas, acaso já existisse um Direito valorativo, teria ele evitado o totalitarismo em Weimar?
Teria ele conferido maior poder de resistência aos operadores do Direito, às Cortes Judiciais e
Conselhos Administrativos na Alemanha, evitando que estes se curvassem tão facilmente ao Regime
Nazista?
Concordamos com Marie Goupy, para quem os regimes totalitários não surgiram de abusos
do direito formal ou da aparente neutralidade do Direito, mas justamente da defesa de valores como
Deus, família, propriedade, tradição, comunidade, entre outros. Em suas palavras12:
A destruição totalitária das liberdades não começa jamais pelo abuso das garantias formais
e procedimentais, mas, ao contrário, parte do desprezo destas em nome de um direito à
“verdadeira religião”, à “comunidade de igualdade de raças” ou bem se ancora em nome do
“proletariado” (Goupy, 2016, p. 157, tradução livre).
Não há dúvida de que a defesa de valores e de direitos essenciais ao homem representa uma
evolução ao Direito e confere maiores chances ao desenvolvimento de uma sociedade mais justa e
solidária. Não se reputa, todavia, que a constitucionalização rígida de princípios de justiça e a previsão
de cláusulas pétreas constitucionais bastará à contenção de novas ondas autoritárias.
O Direito valorativo não elimina as dificuldades da escolha dos valores que merecem
prevalecer; não elimina os interesses subjacentes ao jurídico, como a política, a economia, a moral e
todas as suas crises; não blinda a sociedade contra os excessos ou contra os retrocessos, como já se
vê no início deste século XXI.
Isso não significa, em absoluto, que o Direito, em quaisquer de suas acepções, possa ser
indiferente aos momentos de graves crises.
3.3 O Direito não pode ser ingênuo
A descrença no Direito e nas soluções pacíficas aos conflitos sociais leva as massas a
aderirem aos movimentos autoritários. A confiança é substituída por medos, angústias e incertezas,
como observa Zygmunt Bauman13.
12 “La destruction totalitaire des libertés ne commence jamais pas l´abus de garanties formelles et de procédures, mais
toujours, au contraire, par le mépris de celles-ci au nom d´um droit de la “vraie religion”, de celui de la ‘communauté des
égaux de race”, ou bien encore de celui du “prolétariat” (Goupy, 2016, p. 157).
13 “Acima de tudo, sentimos que o domínio sobre nossas vidas escorrega por entre os dedos, rebaixando-nos à condição
de peões movimentados em uma partida de xadrez jogada por estranhos indiferentes às nossas necessidades, se não
categoricamente hostis e cruéis, e assaz dispostos a nos sacrificar em busca dos próprios objetivos. O conceito de futuro,
até há pouco associado a mais conforto e menos inconveniência, hoje quase sempre evoca a ameaça horripilante de sermos
Para que a democracia seja percebida como algo indispensável por todos, é preciso que o
Direito seja um instrumento mais efetivo na redução das desigualdades sociais e da concentração de
riquezas, bem como seja um vetor mais significativo de diálogo e de justiça social.
O Estado de Direito não é algo completo ou uma ideia que se realiza pelo direito positivo,
mas um projeto que apenas se concretizará na medida em que seus valores forem efetivados na vida
dos integrantes de toda sociedade (Serrano, 2016, p. 100).
Mas não é só. Parece-nos ser imprescindível que os operadores do Direito possam
compreendê-lo como um produto da realidade histórica, política e social, de sorte a percebê-lo como
um agente que transforma o todo, mas que também é conformado pelo todo, isto é, pelos interesses
econômicos, políticos e sociais.
A ciência do Direito deve ser estudada de maneira crítica e multidisciplinar, ao lado da
filosofia e demais ciências políticas e sociais. Enquanto o Direito estiver isolado e preso à sua
roupagem técnica, serão reduzidas as chances de percepção por parte de seus operadores acerca dos
movimentos de transformação que o permeia e das intenções que se escondem nos atos normativos e
decisões judiciais.
Em Weimar, como vimos, importantes juristas e as Cortes Judiciais cederam com relativa
facilidade aos “poderes de crises” concedidos ao Poder Executivo e aos abusos cometidos pelo Estado
de Prerrogativas, legitimando-os.
Não se ignora que o baixo poder de resistência dos técnicos do Direito muito se deve ao
cenário de violência e medo criado pelo Regime Nazista.
Não podemos deixar de notar, todavia, que houve também um despreparo os profissionais
do Direito, ao acreditarem que os “poderes ilimitados” atribuídos ao Chanceler alemão seriam
utilizados provisoriamente (apenas durante o período de anormalidade), com moderação e
desprovidos de interesses pessoais, econômicos ou políticos.
Essa é uma questão que merece ser objeto de reflexões, haja vista que as crises e os “estados
de necessidade” sempre existiram na história humanidade e sempre existirão.
A depender do tempo histórico e da crise instalada, já foram considerados inimigos e dignos
de perseguição o cristão, o judeu, o comunista, o estrangeiro, o pobre, o bandido, o corrupto, entre
tantos outros que foram despojados da condição de ser humano e, por conseguinte, de todos os
direitos, para fins de perseguição e destruição (Serrano, 2016, p. 143-145).
A figura do “inimigo” sempre é construída politicamente para justificar um Estado
autoritário, que age com violência a pretexto de guardar a nação, o Estado de Direito ou a própria
percebidos ou classificados como ineptos ou incompetentes para o trabalho, de negarem nosso valor e dignidade e por
isso sermos marginalizados, excluídos e proscritos” (Bauman, 2019, p. 39).
Constituição, mesmo que as medidas adotadas nunca encontrem previsão na Constituição ou na
ordem jurídica estabelecida (Serrano, 2016, p. 149).
Tal agir contraria, por certo, a finalidade precípua a qualquer Estado de Direito. É
inconcebível que um Estado democrático eleja “inimigos” e deles retire os direitos fundamentais,
como se não se amoldassem à espécie humana, quanto mais no século XXI.
A experiência de Weimar, que ensejou a morte de 6 (seis) milhões judeus, de inúmeros
ciganos, testemunhas de Jeová, homossexuais, pessoas portadoras de deficiências, eslavos e de outros
minorias, deve servir como antidoto àqueles que possam pretender aceitar narrativas forjadas à
legitimação de violência e arbitrariedades pelo Estado ou que possam compreender que ações
autoritárias sejam necessárias e passageiras.
A história do século XX deve ser suficiente para demonstrar que o Direito não comporta tais
ingenuidades.
CONCLUSÃO
Vimos no presente artigo que o Estado de Direito tem uma evolução histórica complexa,
estando em constante desenvolvimento e sujeito ao movimento pendular de avanços e retrocessos.
A passagem do Estado absolutista para o Estado de Direito, nos séculos XVII e XIX, apoiou-
se no positivismo jurídico, na estrita legalidade e na defesa da técnica, acreditando-se que estes
bastariam à paz e à garantia de direitos fundamentais. A experiência nazista demonstrou, no entanto,
que as crises econômica, política e social ensejaram a formação de movimentos políticos extremados,
que abriram portas ao totalitarismo.
O Direito fora facilmente solapado por interesses políticos e econômicos. A pretexto de
garantir a existência do Estado (pressuposto do Estado de Direito), o ordenamento jurídico alemão
secundou medidas de força, de violência, de suspensão de direitos fundamentais, que causaram terror
e destruição.
A compreensão da degenerescência do Estado de Direito na República de Weimar a partir
de 1933 fora inicialmente obscurecida pela combinação entre Estado de Prerrogativas e Estado
Normativo. O primeiro, guiado por interesses políticos, era absoluto, violento e ilimitado. O segundo,
guiado por interesses econômicos, garantia aparência de normalidade da vida cotidiana, além da
propriedade privada e dos meios de produção de interesse do Estado de Prerrogativas.
No pós-2ª Guerra Mundial, restaram evidentes o sacrifício do jurídico em prol do político,
assim como os equívocos dos juristas e legisladores que sustentaram a temporariedade desse
sacrifício. Mesmo após a eliminação dos subversivos, a pretensão ao domínio total fez-se presente
para garantir a manutenção do poder.
O positivismo jurídico kelseniano foi criticado e até apontado como corresponsável pelos
horrores do regime totalitário. Muito se discutiu em que medida e por quais razões o Direito não
evitou e até apoiou os ideais nazistas. Em resposta às críticas, propôs-se um Direito mais valorativo,
uma democracia mais substancial e garantista do mínimo humano existencial.
Conquanto tal concepção tenha favorecido a universalização dos direitos humanos, a
construção de uma justiça mais social e garantista, o que merece ser celebrado, é provável que não
pudesse evitar o levante autoritário ocorrido na primeira metade do século XX, ainda que
preexistente.
Vimos que, não apenas as massas, mas também os operadores do Direito deixaram de
acreditar nas soluções pacíficas aos conflitos, na separação e equilíbrio de poderes do Estado e na
primazia do jurídico sobre o político ou econômico. Tal inversão permitiu o desprezo ao “valor-fonte”
de todo o sistema, qual seja, o ser humano (Lafer, 2011, p. 22).
A experiência nazista é exemplo de que a figura do “inimigo” é forjada para justificar um
Estado autoritário, que visa atender a interesses distintos daqueles declarados formalmente ou
protegidos constitucionalmente. É exemplo também de que medidas de exceção quase nunca são
passageiras, na medida em que seus motivos podem ser recriados ou renovados.
As lições de Weimar exsurgem, portanto, valiosas ao Direito e devem ser relembradas nesse
início de século XXI.
A conjuntura de crises encontra-se novamente em curso, em decorrência do neoliberalismo
agressivo e dos ressentimentos decorrentes das promessas frustradas de melhoria das condições de
vida pelo progresso tecnológico e globalização.
A descrença no Estado, na política e na democracia ressurgem em diversos países, como se
vê nas atuais disputas eleitorais, nas campanhas do “nós e eles”, na disseminação de fake news, no
retorno dos discursos nacionalistas e populistas, agora controlados por algoritmos e disseminados
pela tecnologia da informação.
Se as crises são inevitáveis, assim como a criação da figura do “inimigo”, cumpre ao Direito
resistir de forma mais contundente do que o fez em Weimar.
Além de buscar sua efetividade, de modo a que seja percebido por todos como indispensável,
é preciso que esteja atento às transformações políticas, econômicas e sociais que o circundam, para
evitar que ele (o Direito) seja transformado em instrumento de legitimação das arbitrariedades.
O estudo multidisciplinar parece-nos imprescindível à aquisição dessa consciência,
sobretudo em momentos em que o irracionalismo e o autoritarismo se avizinham novamente.
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