A CULPA CONTRA A LEGALIDADE E O CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA
Guilt against legality and the medical code of ethics
Patrícia Ribeiro Serra Vieira
Ana Clara Oliveira de Sá
Resumo: A Resolução n.º 2.217/2018, que instituiu o atual Código de Ética Médica, afastando-se de
um viés mais protetivo em relação ao paciente, estabeleceu que a responsabilidade administrativa do
médico é pessoal e subjetiva, vedando a aplicação da culpa presumida nos casos de transgressão às
suas normas. No presente artigo, investiga-se a possibilidade de a responsabilização civil do médico
por condutas lesivas causadas ao paciente, diante da inobservância de normas regulamentares, buscar
seu fundamento na culpa contra a legalidade. Estabelecida essa premissa, analisar-se-á a natureza
jurídica da responsabilidade civil em casos de culpa contra a legalidade — tratada pela doutrina e
jurisprudência nacionais como hipótese de culpa presumida —, o arcabouço normativo a ela aplicado,
bem como os consectários processuais relevantes, como questões atinentes à inversão do ônus da
prova.
Palavras-chave: responsabilidade civil; presunção de culpa; ética médica; profissional liberal.
Abstract: Resolution n.º 2.217/2018, which established the current Code of Medical Ethics, moving
away from a more protective bias towards the patient, established that the doctor's administrative
responsibility is personal and subjective, prohibiting the application of presumed guilt in cases of
violation of its rules. In this article, we investigate the possibility of the doctor's civil liability for
harmful conduct caused to the patient, due to non-compliance with regulatory standards, seeking its
basis in guilt against legality. Having established this premise, the legal nature of civil liability in
cases of guilt against legality will be analyzed — treated by national doctrine and jurisprudence as a
hypothesis of presumed guilt —, the normative framework applied to it, as well as the relevant
procedural consequences, as issues related to the reversal of the burden of proof.
Keywords: civil responsability; presumption of guilt; medical ethics; liberal professional.
Submissão em:
19/10/2023
Aprovação em:
26/10/2023 e 27/10/2023
INTRODUÇÃO
A Resolução n.º 2.217/2018, modificada pelas Resoluções n.º 2.222/2018 e 2.226/2019,
instituiu o atual Código de Ética Médica. Para incorporar as abordagens pertinentes às mudanças na
Doutora em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Desembargadora do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJERJ).
Especialista em Direito Público e Privado pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ). Pós-
Graduada em Direitos Difusos e Coletivos pelo Curso Círculo de Estudos na Internet (CEI).
contemporaneidade, foram levadas a cabo as propostas formuladas pelos Conselhos Regionais de
Medicina, pelas entidades médicas, pelos médicos e por instituições científicas e universitárias.
Seu principal escopo é uma melhor adequação da normativa da atividade médica à
Constituição da República Federativa Brasileira de 1988 (CRFB/88). Adequação essa possibilitadora
de um melhor relacionamento do médico com o paciente, no intento de uma maior autonomia à sua
vontade.
O texto do atual Código de Ética Médica expressa a sua composição de 26 princípios
fundamentais do exercício da Medicina, 11 normas diceológicas (éticas), 117 normas deontológicas
(deveres impostos aos médicos1) e quatro disposições gerais2. A transgressão das normas
deontológicas sujeitará, segundo o mesmo Código, os infratores às penas disciplinares nele previstas.
O Código Ético, agora em vigor, é reflexo das mudanças sociais, tecnológicas e
empresariais3 que afetaram a relação médico-paciente ao longo dos tempos; visto que, por um lado,
os médicos de família foram dando lugar aos médicos credenciados e/ou referenciados, em sua
maioria, por planos de saúde. Contudo, denota-se, de outro lado, uma enorme resistência no sentido
de que se dê aplicabilidade aos direitos humanos nestas relações4, para que sejam respeitados os
direitos do paciente.
Como pontua Sílvio de Salvo Venosa, “nesta época a Medicina se socializa e se
despersonaliza. A necessidade premente de especialização faz com que a relação médico paciente
seja quase sempre exclusivamente profissional” (Venosa, 2010, p. 79). Evidenciando essa
contradição, Miguel Kfouri Neto adverte que “ao enorme progresso da medicina não correspondeu
análogo avanço do humanismo — e isso leva o homem atual a reclamar, constantemente, a
necessidade de humanização da Ciência Médica” (Kfouri Neto, 2019, p. 37).
Ainda de acordo com o autor, “A relação entre o médico e o enfermo não mais se restringe
às duas pessoas envolvidas na atividade curativa” (Kfouri Neto, 2019, p. 37). Pode-se afirmar que a
relação médico-paciente perdeu, como regra, sua característica de obrigação personalíssima, visto ser
1 Edmilson de Almeida Barros Júnior entende que o Código de Ética Médica representa “o que há de mais rigoroso no
Brasil, no que se refere a códigos de ética profissional, pois vedam de forma objetiva praticamente tudo, transformando,
quase sempre, qualquer conduta em dever e obrigação” (Barros Júnior, 2013, p. 208).
2 Na redação do Código de Ética Médica de 2018, não foram feitas alterações significativas em relação à numeração dos
artigos ou à estruturação do texto, quando se compara ao Código de 2009, em postura pragmatista de facilitação ao
manuseio para os operadores já acostumados com o Código anterior.
3 Como exemplo da incorporação de abordagens próprias do mundo contemporâneo, destaca-se que o Código de Ética
Médica de 2018 estabeleceu, de forma pioneira, em seu Artigo 37 (Capítulo V), os limites para o uso de redes sociais
pelos médicos no exercício da profissão.
4 A professora Heloisa Helena Barboza já denunciara, com base na obra de Leonardo M. Martin, intitulada Os direitos
humanos nos Códigos Brasileiros de Ética Médica, em pontuação ao Código de Ética Médica de 1988, que: “A alteração
de entendimentos também se fez sentir na atuação médica, que não ficou imune às profundas modificações socioculturais
e tecnológicas ocorridas no último século, indicando-se um conflito de pelo menos três paradigmas nos códigos brasileiros
de ética médica: o tecnocientífico, o comercial-empresarial e o benigno-humanitário. [...] Essa mudança decorreu também
da crescente interferência dos direitos humanos nas relações médico-paciente, especialmente no reconhecimento dos
direitos do paciente, que acabaram assimilados pelo Código de Ética Médica de 1988” (Barboza, 2004, p. 43).
intermediada — na maior parte das vezes, como ensina a experiência — por planos e seguros de
saúde, hospitais e até mesmo pelo próprio Estado. Raras são as situações nas quais há a contratação
direta realizada pelo paciente que procura o profissional da medicina de sua confiança.
Ao apontar os desafios dessa relação médico-paciente quase sempre intermediada por
terceiros, Miguel Kfouri Neto adverte:
Ora é o plano de saúde que veda a realização de determinado exame complementar – e o
médico, para não se indispor, cede diante daquela interferência – e culmina por retardar a
cura ou prescrever tratamento equivocado, ora é o hospital, a exigir a desinternação rápida,
quando ainda seria conveniente a permanência do paciente por mais tempo internado; ora é
o Estado, que despende recursos insuficientes para o custeio da saúde pública – e parece
mostrar-se insensível diante dos dramas cotidianos das pessoas desassistidas. E as situações
culminam por deteriorar vínculos – outrora fundados em recíproca fraternidade. Daí exsurge
a insatisfação e a revolta – que evolui para as demandas judiciais, mesmo inexistente a culpa
do médico, pelo mau resultado eventualmente verificado (Kfouri Neto, 2019, p. 38).
Diante dos desafios dos novos tempos, o atual Código de Ética Médica buscou trazer o senso
humanitário e as contribuições da bioética com previsões específicas, dentre elas: 1. O médico
guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício, sendo-lhe vedado
utilizar seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano
ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade (Capítulo I, Princípio
Fundamental VI); 2. Não pode exercer a medicina, em nenhuma circunstância ou forma, como
atividade de comércio (Capítulo I, Princípio Fundamental IX); 3. O médico se responsabilizará, em
caráter pessoal e nunca presumido, pelos seus atos profissionais, resultantes de relação particular de
confiança e executados com diligência, competência e prudência (Capítulo I, Princípio Fundamental
XIX); 4. A natureza personalíssima da atuação profissional do médico não caracteriza relação de
consumo (Capítulo I, Princípio Fundamental XX); 5. No processo de tomada de decisões
profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as
escolhas de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles
expressos, desde que adequadas ao caso e com motivação científica (Capítulo I, Princípio
Fundamental XXI).
Porém, quando da normatização da responsabilidade profissional, afastou-se do viés de
maior proteção do paciente, já que a Resolução n.º 2.217/2018 delimitou a responsabilidade do
médico como pessoal, eminentemente subjetiva, impedindo a aplicação da culpa presumida quando
de transgressões àquele Código; normativa essa vigente desde seu antecessor, o Código de Ética
Médica de 2009 (Resolução CFM n.º 1.931/2009).
Sabe-se, entretanto, que, no âmbito jurídico, toda e qualquer conduta lesiva que venha a
importar em desobediência a uma norma regulamentar faz-nos caminhar para a seara da culpa contra
a legalidade, sempre alocada, pela doutrina e jurisprudência nacionais, na ambiência da culpa
presumida. Esse alerta é necessário, visto que não se exclui certa elucubração jurídica acerca da culpa
contra legalidade quando de realização, pelo médico, de conduta que lhe é vedada.
Como o Código de Ética Médica se restringe ao campo da responsabilidade administrativa,
não se fará prevalecer sobre o Código de Defesa do Consumidor (CDC) e as correntes doutrinária e
jurisprudencial recorrentes na matéria relatada neste artigo. O que se conclui é que a vítima, na seara
administrativa, na perseguição da responsabilidade ética, terá de envidar esforços à prova do ato
culposo do médico que lhe causou dano. Ou seja: no âmbito civil, tem-se a aplicabilidade da lei
protetiva das relações consumeristas e a aplicação da culpa presumida no que couber.
1 A NATUREZA JURÍDICA DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA E SEU PODER
NORMATIVO: UM ANÚNCIO ÀS PRÁTICAS MÉDICAS CONTRA A LEGALIDADE
O Conselho Federal de Medicina (CFM), autor do Código de Ética Médica em vigor, é órgão
delegado do Poder Público para tratar de questões atinentes à saúde pública e às atividades
desenvolvidas pelos profissionais médicos, sendo-lhe atribuído, pela própria Constituição da
República Federativa Brasileira5, como Conselho fiscal, poder regulamentar e fiscalizatório.
Sendo assim, tem-se assentado que os Conselhos fiscais de profissões regulamentadas são
criados por lei federal, na preservação, em sua grande maioria, da sua autonomia administrativa e
financeira, bem como dos princípios da ética e da disciplina da categoria laborativa a que se destinam.
Ora são constituídos como entes dotados de personalidade jurídica de direito público, ora, mais
diretamente, se apresentam como autarquias federais, “pois exercem atividade que, em princípio,
seria do Estado” (Cavalieri Filho, 2020, p. 237). Nesse sentido, alerta Ronaldo Pinheiro de Queiroz6
que:
5 O artigo 21, inciso XXIV, da CRFB, determina que compete à União Federal organizar, manter e executar a inspeção
do trabalho, atividade típica de Estado que foi objeto de descentralização administrativa, colocando-a no âmbito da
Administração Indireta, a ser executada por autarquia, pessoa jurídica de direito público criada para esse fim (Brasil,
1988).
6 Ronaldo Queiroz, em memória às discussões recorrentes no Judiciário Brasileiro, destaca: “Essa lei, contudo, foi
impugnada pela Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.717-6/DF, ajuizada em conjunto pelo Partido Comunista do Brasil
– PC do B –, pelo Partido dos Trabalhadores – PT – e pelo Partido Democrático Trabalhista – PDT. Em sede de cautelar,
no dia 22 de setembro de 1999, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, suspendeu a eficácia dos
dispositivos impugnados da Lei 9.649/98 (os dispositivos impugnados da Lei 9.649/98 foram o art. 58, caput e os
parágrafos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º. À exceção do § 3º, considerado prejudicado em face da modificação do texto
original da constituição pela Emenda Constitucional n. 19/98, todos os demais foram suspensos). No dia 07 de novembro
de 2002, o mérito da ADIN 1.717-6/DF foi julgado, tendo como Relator o Ilustre Ministro Sydney Sanches, que
transcreveu, na fundamentação do seu voto, trecho por ele averbado em sede de cautelar, quando disse que: ‘... não me
parece possível, a um primeiro exame, em face de nosso ordenamento constitucional, mediante a interpretação conjugada
dos artigos 5º, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da Constituição Federal, a delegação, a uma
entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e punir no que concerne ao
exercício de atividades profissionais.’ Importante salientar, por oportuno, que antes mesmo do julgamento da referida
ADIN, o Supremo Tribunal Federal já tinha enfrentado o tema no Mandado de Segurança n.º 22.643-9-SC, Relator
Ministro Moreira Alves, por votação unânime, em que se decidiu que: ‘(...) – Os Conselhos Regionais de Medicina, como
sucede com o Conselho Federal, são autarquias federais sujeitas à prestação de contas ao Tribunal de Contas da União
Várias são as naturezas jurídicas apontadas para os conselhos de fiscalização, como
autarquias de natureza especificamente corporativa, autarquias especiais, autarquias sui
generis, entidades paraestatais ou até mesmo entidades dotadas de personalidade jurídica de
direito privado. A natureza privatística dos conselhos profissionais ganhou força com a
edição da Lei 9.649, de 27 de maio de 1998, na qual se previu que os serviços de fiscalização
de profissões regulamentadas serão exercidos em caráter privado, por delegação do poder
público, mediante autorização legislativa (Queiroz, 2006).
Entender-se pelo enquadramento do Conselho Profissional como autarquia especial em nada
compromete a sua natureza de pessoa jurídica com poder delegado, que deve subserviência, apesar
de sua autonomia administrativa e financeira, aos princípios da Administração Pública. Contudo, o
entendimento não está pacificado na doutrina nacional:
Há quem defenda, contudo, que os conselhos não seriam autarquias por ausência de
supervisão ministerial a consubstanciar a tutela ou controle administrativo dos entes
descentralizados pelo ente central. Acontece que a supervisão ministerial não constitui fator
essencial para caracterizar um ente como autarquia. Ora, nos casos de descentralização
administrativa, a regra é a autonomia dos entes descentralizados e a exceção é o controle
destes últimos pela administração central, somente quando previstos em lei e nos estreitos
limites desta. A supervisão ministerial está prevista no art. 19 do Decreto-lei 200/67. Como
esse controle é uma exceção e está previsto em lei, nada obsta que lei posterior que crie um
ente descentralizado deixe de prever tal controle, sem que com isso exclua esse ente da
administração indireta ou desfigure sua natureza (Queiroz, 2006).
A despeito da divergência acerca da natureza jurídica dos Conselhos Profissionais enquanto
gênero, é certo que o art. 1º da Lei n.º 3.268/57, ao instituir o Conselho Federal e os Conselhos
Regionais de Medicina, consagrou sua natureza jurídica de autarquia, pessoa jurídica de direito
público, dotada de autonomia administrativa e financeira.
Conforme ensina Sergio Cavalieri Filho, os Conselhos de Medicina, além de
supervisionarem a ética profissional em toda a República, desempenham função julgadora e
disciplinadora da classe médica, “cabendo-lhes zelar e trabalhar pelo perfeito desempenho ético da
medicina e pelo prestígio e bom conceito da profissão e dos que a exercem legalmente” (Cavalieri
por força do disposto no inciso II do artigo 71 da atual Constituição.’ Cabe destacar trecho do voto condutor do Relator,
na passagem onde diz que: ‘Esses Conselhos – o Federal e os Regionais – foram, portanto, criados por lei, tendo cada um
deles personalidade jurídica de direito público, com autonomia administrativa e financeira. Ademais, exercem eles a
atividade de fiscalização de exercício profissional que, como decorre do disposto nos artigos 5º, XIII, 21, XXIV, e 22,
XVI, da Constituição Federal, é atividade tipicamente pública. Por preencherem, pois, os requisitos de autarquia, cada
um deles é uma autarquia, embora a Lei que os criou declare que todos, em seu conjunto, constituem uma autarquia,
quando, em realidade, pelas características que ela lhes dá, cade um deles é uma autarquia distinta’. Antes disso, o antigo
Tribunal Federal de Recursos (TRF) havia reconhecido a natureza jurídica de autarquia federal com relação ao Conselho
Regional dos Representantes Comerciais de Brasília (Ministro Moacir Catunda, AI 40.892-DF, AI 40.907-DF, DJU
03.09.1980). O Superior Tribunal de Justiça, ratificando o posicionamento do TRF, editou a Súmula 66, dizendo que
‘Compete à Justiça Federal processar e julgar execução fiscal promovida por conselho de fiscalização profissional, no
entendimento de que, sendo autarquias federais, as ações em que são autores ficam afetas à Justiça Federal.’ Ora, o
desfecho do tema não poderia ser diferente, pois basta um simples cotejo com o Decreto-Lei n.º 200/67, Estatuto da
Reforma Administrativa Federal, no seu art. 5º, para verificarmos que os conselhos de fiscalização das profissões liberais
se enquadram perfeitamente na forma de autarquias (Queiroz, 2006).
Filho, 2020, p. 238). A função disciplinadora é materializada, em suma, no Código de Ética Médica,
aprovado por meio da Resolução do Conselho Federal de Medicina de n.º 2.217/2018, que irá regular
o modo de proceder do médico em sua atuação profissional7.
O exercício da medicina está sujeito a limitações legais e regulamentares, que devem ser
observadas pelos médicos em sua atuação profissional8 e, consequentemente, também pelos juízes
quando do julgamento de uma lide envolvendo suposta má prática médica, para avaliar se a conduta
daquele profissional observou os limites normativos ou se a inobservância dessas normas configurou
hipótese de culpa contra a legalidade. No entanto, é preciso ressalvar que o dano ao paciente pode
existir mesmo quando comprovado o agir médico em conformidade com as normas técnicas da
profissão, devendo-se investigar se o profissional agiu com culpa, que, neste caso, deverá ser provada,
não presumida. A propósito:
O médico deve proceder em conformidade com as normas e as técnicas da profissão, mas
não se compromete a curar. Não é qualquer mau resultado que constituirá fato ensejador da
responsabilidade civil do médico. Apenas eventos lesivos que decorrem da culpa profissional
impõem a obrigação de indenizar. [...] Se o diagnóstico ou o tratamento foram realizados
com base em critérios técnicos, de forma diligente, considerando o conhecimento
científico da época em que o serviço foi prestado, não existe culpa do profissional (André,
2020, p. 11, grifo nosso).
As resoluções representam, assim, limitações que “possuem certo aspecto de legalidade e
inclusive amparo legal e que regulam a atividade médica” (Ridolphi; Rangel, 2017, p. 3), interferindo
diretamente na autonomia do médico. É o caso dos deveres profissionais, que devem ser observados
pelos médicos em sua atuação profissional, e que vêm consagrados no Código de Ética Médica9.
Muito embora a codificação não vincule as decisões judiciais, pode auxiliar na interpretação e na
aplicação das normas jurídicas quando da apuração da responsabilidade civil médica, especialmente
nos casos de culpa contra a legalidade.
7 “No exercício da profissão médica, o relacionamento médico-paciente pode ser entendido como uma relação jurídica e,
deste modo, sujeita-se às suas regulamentações e limitações legais. O médico, enquanto profissional, deve se sujeitar às
normativas éticas discutidas e elaboradas pelo seu conselho de classe profissional, bem como atender às regulações
impostas pelo poder do Estado enquanto regulador, fiscalizador e controlador das atividades de saúde” (Ridolphi; Rangel,
2017, p. 1).
8 “Um Código de Ética Médica trata da ética codificada, contém dispositivos específicos para cada situação da prática
profissional médica, principalmente quanto ao relacionamento com pacientes, com a sociedade e com os próprios colegas”
(Ridolphi; Rangel, 2017, p. 1).
9 A relação médico-paciente é uma relação de direito privado regulada pelo Código Civil Brasileiro. “Neste sentido,
configura-se o não absolutismo na autonomia da vontade do indivíduo, pois, há situações em que faz-se [sic] necessária
a atuação ou proibitória do Estado sobre as vontades individuais e particulares, justamente para manter a ordem social e
a manutenção das relações humanas e jurídicas no Estado” (Ridolphi; Rangel, 2017, p. 10-11).
2 CULPA PRESUMIDA E INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA
Pela sistemática geral da responsabilidade civil, o médico, que deve guiar sua atuação
profissional em conformidade com as normas e as técnicas da profissão, não se compromete a curar,
assumindo, em regra, obrigação de meio em uma relação médico-paciente contratual10 e de
consumo11. Nos termos do art. 186, 927, caput e 951 do Código Civil de 2002 (CC/02), bem como
do art. 14, § 2º do CDC, a responsabilidade civil do médico é subjetiva, cujo fundamento, que deve
ser demonstrado durante a instrução processual, é a prática culposa, em uma de suas espécies —
imprudência, imperícia ou negligência.
Como “a prova da culpa, em muitos casos, é verdadeiramente diabólica, erigindo-se em
barreira intransponível para o lesado” (Cavalieri Filho, 2020, p. 51), a jurisprudência tem examinado
a prova da culpa com tolerância. Com isso, a regra geral que determina que cabe à vítima provar a
culpa do médico, para a caracterização de sua responsabilização pelo resultado danoso, é
excepcionada por diversos fundamentos.
Sem a pretensão de exaurir a temática, destacam-se alguns desses fundamentos: (i) inversão
judicial do ônus da prova com base no art. 6º, VIII, do CDC12; (ii) distribuição dinâmica do ônus da
10 Há certa divergência na doutrina acerca da classificação da relação médico-paciente como contratual ou extracontratual,
especialmente para fins de enquadramento da responsabilidade correspondente. “Contudo, no caso dos profissionais
liberais e, especificamente, do médico, a discussão sobre a responsabilidade contratual ou aquiliana surte pouco ou
nenhum efeito prático, já que aplicação do Código de Defesa do Consumidor (a qual, ainda que criticável [para parte da
doutrina], encontra-se consolidada em nossa jurisprudência para os casos de responsabilidade médica) funciona por
mecanismos totalmente independentes dessa dicotomia [...]” (Souza, 2012, p. 43). Além disso, “observe-se que inexiste
diferença ontológica entre as duas modalidades de responsabilidade, contratual e extracontratual. Sob qualquer situação,
ocorrendo culpa, aflora o dever de indenizar. Contudo, existindo contrato, é dentro de seus limites que será apurado o
inadimplemento total (isto é, o descumprimento), ou o inadimplemento parcial (a mora). Se não há contrato e a culpa
emerge de um dever de conduta, é nessa ação do agente que a culpa deve ser aferida. No entanto, em toda responsabilidade
profissional, ainda que exista contrato, há sempre um campo de conduta profissional a ser examinada inerente à profissão
e independe da existência de contrato” (Venosa, 2010, p. 83). “A prova da culpa, pelo sistema tradicional do Código
Civil, assim como o nexo causal entre a conduta e o dano, incumbem à vítima, ao paciente e seus herdeiros, tanto na
relação contratual como na relação extracontratual. Sempre será menos custosa a prova da culpa quando existe contrato,
quando se examina o inadimplemento” (Venosa, 2010, p. 91).
11 Doutrina e jurisprudência majoritárias entendem que a relação médico-paciente amolda-se no conceito de relação de
consumo. Muito embora o próprio Código de Defesa do Consumidor excepcione a responsabilidade médica da regra geral
objetiva, em seu art. 14, § 4º, é certo que “não se excepciona a aplicação dos demais princípios do Código com relação a
esta categoria, como por exemplo a inversão do ônus da prova, a proteção contratual etc.” (Arruda, 1995, p. 139 apud
Venosa, 2010, p. 94). Doutrina minoritária, a seu turno, entende que, quando o legislador consumerista dispôs que a
responsabilidade pessoal do profissional liberal será subjetiva, o que fez foi excluir a responsabilidade de médicos e outros
profissionais liberais do âmbito da legislação consumerista como um todo (Kfouri Neto, 2019, p. 64). Além disso, vale
frisar que dentre os expoentes desta corrente doutrinária, destaca-se o posicionamento de Kfouri Neto (2019).
12 “Art. 6º São direitos básicos do consumidor: [...] VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão
do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele
hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;” (Brasil, 1990). Segundo Sergio Cavalieri Filho, o “médico
é prestador de serviço pelo que, não obstante subjetiva a sua responsabilidade, está sujeito à disciplina do Código do
Consumidor. Pode consequentemente o juiz, em face da complexidade técnica da prova da culpa, inverter o ônus dessa
prova em favor do consumidor, conforme autoriza o Art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor. A
hipossuficiência de que ali fala o Código não é apenas econômica, mas também técnica, de sorte que, se o consumidor
não tiver condições econômicas ou técnicas para produzir a prova dos fatos constitutivos do seu direito, poderá o juiz
inverter o ônus da prova a seu favor” (Cavalieri Filho, 2020, p. 422). Ressalta-se exemplo de aplicação do dispositivo
pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ): “No que pertine à alegação de que sendo a responsabilidade do médico ‘albergada
prova com base no parágrafos do art. 373 do Código de Processo Civil (CPC/15)13; (iii) inversão
automática do ônus da prova nas obrigações de resultado (criação doutrinária e jurisprudencial14), nos
casos em que o profissional médico se compromete contratualmente a alcançar um resultado
específico15; (iv) culpa profissional evidenciada no próprio fato (teoria da res ipsa loquitur), como no
caso de objetos esquecidos dentro do corpo do paciente durante o procedimento cirúrgico 16 e (v)
culpa contra a legalidade, quando há inobservância de normas legais e regulamentares técnicas, objeto
de aprofundamento no presente artigo.
pela teoria subjetiva’ não pode ser aplicada a inversão do ônus da prova, melhor sorte não assiste ao recorrente. A
responsabilidade subjetiva do médico (CDC, art. 14, § 4º) não exclui a possibilidade de inversão do ônus da prova, se
presentes os requisitos do art. 6º, VIII, do CDC, devendo o profissional demonstrar ter agido com respeito às orientações
técnicas aplicáveis, adotando as cautelas devidas. [...] A inversão do ônus da prova não implica a procedência do pedido;
significa apenas que o juízo de origem, em face dos elementos de prova já trazidos aos autos e da situação das partes,
considerou presentes os requisitos do art. 6º do CDC (verossimilhança da alegação ou hipossuficiência), requisitos estes
insusceptíveis de revisão na via do recurso especial, cometendo ao médico o ônus de demonstrar que exerceu sua profissão
dentro dos protocolos técnicos aplicáveis. A atribuição deste ônus deverá ser levada em consideração, na análise do
conjunto probatório, ao final da instrução, sendo o médico responsabilizado apenas se demonstrada a sua culpa, ao
contrário do que ocorreria caso se cuidasse de responsabilidade objetiva, em que bastaria a comprovação do nexo de
causalidade. Assim, evidenciado o nexo, mas comprovado pelo médico que agiu sem culpa, de acordo com as normas
técnicas aplicáveis, não haverá imposição a ele de responsabilidade civil pelo evento” (Brasil, 2011).
13 “Art. 373. O ônus da prova incumbe: I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito; II - ao réu, quanto à
existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. § 1º Nos casos previstos em lei ou diante de
peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do
caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso,
desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus
que lhe foi atribuído. § 2º A decisão prevista no § 1º deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do
encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil. § 3º A distribuição diversa do ônus da prova também pode
ocorrer por convenção das partes, salvo quando: I - recair sobre direito indisponível da parte; II - tornar excessivamente
difícil a uma parte o exercício do direito. § 4º A convenção de que trata o § 3º pode ser celebrada antes ou durante o
processo.” (Brasil, 2015).
14 Dentre os precedentes encontrados na jurisprudência neste sentido, destaca-se o REsp n.º 1.395.254/SC (2013/0132242-
9). Dentre os precedentes encontrados na jurisprudência neste sentido, destaca-se o REsp n.º 1.395.254/SC
(2013/0132242-9).
15 “Como nesse caso a atuação médica decorre na maioria das vezes de circunstâncias nas quais o paciente não sofre de
moléstia alguma e a finalidade buscada é somente obter um resultado favorável do ponto de vista estético, a
responsabilidade é tratada pela doutrina e pela jurisprudência de forma mais severa. Leva-se em conta que nessa premissa,
se não fosse assegurado um resultado feliz pelo cirurgião, certamente não haveria o consentimento do paciente no
tratamento ou na operação” (Venosa, 2010, p. 90).
16 Existem célebres casos na medicina nos quais a culpa resulta às escâncaras do próprio fato como o esquecimento de
objetos cirúrgicos dentro do corpo do paciente após procedimento cirúrgico ou a amputação de uma perna quando o
problema estaria na outra. Em casos como esses fica flagrante que normas técnicas relativas à boa prática médica foram
violadas, sendo desproporcional exigir do paciente que demonstre, em tais circunstâncias, a existência da culpa do
profissional médico. Conforme ensina Ebert Chamoun, a culpa in re ipsa “deriva inexoravelmente das circunstâncias em
que ocorreu o fato danoso, de tal modo que basta a prova desse fato para que ipso facto fique demonstrada a culpa, à guisa
de uma presunção natural [...]”. (Cavalieri Filho, 2020, p. 52). Em “tais casos apresentam uma peculiaridade: neles, a
prova do fato implica, por sua própria natureza, a prova do dano e a prova da culpa, de tal modo que não se trata de
suposta inversão do ônus probatório sobre a culpa decorrente de presunção legal, mas sim de uma prova polivalente,
capaz de demonstrar, sozinha, mais de um requisito da responsabilidade civil, por força das próprias regras de
experiência” (Souza, 2012, p. 37). Pode-se afirmar, assim, que a prova do fato do esquecimento de instrumento cirúrgico
no interior do corpo da vítima evidenciaria, ao mesmo tempo, o dano e o fundamento da responsabilidade civil subjetiva,
a culpa do médico, em sua espécie negligência. O mesmo não se pode dizer em relação à culpa contra a legalidade. Nesses
casos, a prova da inobservância da regra técnica prevista em lei ou em regulamento, por si só, não comprova o dano
sofrido e a negligência do médico. Nesses casos, o paciente deve comprovar o dano, porém há uma presunção relativa da
culpa e caberá ao médico demonstrar uma das causas excludentes de responsabilidade civil ou que, mesmo observando a
norma técnica alegada no caso, o resultado danoso adviria de igual forma.
Visando conferir uma apresentação sistemática (embora não exauriente) da matéria, destaca-
se, ainda, a existência da inversão automática do ônus da prova, consagrada na legislação
consumerista quando diante de responsabilidade por fato do serviço, inaplicável, porém, para
presumir a culpa do médico como profissional liberal.17
Há muito debate doutrinário e jurisprudencial acerca dos efeitos práticos da inversão do ônus
da prova e, comumente, de forma equivocada, chega-se a afirmar que nesses casos a responsabilidade
tornar-se-ia objetiva. É certo, porém, que o fato da culpa ser presumida nesses casos não torna a
responsabilidade objetiva, não é alterado seu fundamento, ela permanece subjetiva. As presunções
(relativas) de culpa, legalmente previstas, apenas invertem o ônus da prova, a considerar a dificuldade
da vítima em produzir a prova da culpa nesses casos específicos.
Dessa forma, quando as circunstâncias do caso indicarem, afasta-se do sistema clássico de
responsabilidade civil subjetiva, no qual cabe à vítima provar a culpa do causador do dano,
invertendo-se o ônus da prova. Caberá, então, ao réu demonstrar que não agiu com culpa,
comprovando a presença de uma das causas excludentes de responsabilidade, como o caso fortuito, a
força maior e a culpa exclusiva da vítima.
Reforçando a não alteração do fundamento da responsabilidade civil nesses casos, Sergio
Cavalieri Filho afirma que a diferença entre a culpa presumida e a culpa provada “reside num aspecto
meramente processual de distribuição do ônus da prova” (Cavalieri Filho, 2020, p. 52). Digno de nota
que parte da doutrina não comunga do entendimento de que a questão da inversão do ônus da prova
seria meramente processual, como defendido por Cavalieri Filho.
É possível afirmar que as normas relativas à prova não pertencem exclusivamente ao direito
processual, o diálogo com o direito material é evidente. As classificações a respeito da
responsabilidade civil contratual ou extracontratual e das obrigações de meio e de resultado ilustram
essa zona de intercessão, carregam consigo questões afeitas à problemática do ônus da prova, mesmo
sendo clássicas divisões do direito material. Com a inversão do ônus da prova não há a alteração do
fundamento da responsabilidade civil do médico, que continua sendo a culpa (questão de direito
material), porém, os efeitos práticos são significativamente sentidos ao se afastar da regra geral
civilista, aproximando-se da responsabilidade objetiva, sem nela converter-se18.
17 O Código de Defesa do Consumidor consagra dois sistemas de inversão do ônus da prova. O primeiro sistema é o da
inversão do ônus da prova ope judicis, regra de instrução processual, de modo que a jurisprudência entende que o
momento adequado para sua realização é o saneamento do processo, no qual deverá o juiz esmiuçar, dentre outras
questões, os pontos ainda controvertidos e a quem incumbe o ônus de prová-los. O segundo sistema é o da inversão legal
do ônus da prova que, por decorrer de expressa previsão legal, é considerado pela jurisprudência como regra de
julgamento, já que não haveria que se falar em surpresa das partes (Cavalieri Filho, 2020, p. 417).
18 Eduardo Nunes de Souza é crítico dessa aproximação entre responsabilidade subjetiva e objetiva, promovida por meio
das inúmeras hipóteses de culpa presumida existentes no ordenamento jurídico brasileiro na temática da responsabilidade
civil médica. “E, realmente, pela própria natureza da atividade, a responsabilidade do médico parece indissociável do
conceito de culpa. No entanto, e muito embora a doutrina amplamente majoritária continue afirmando a natureza subjetiva
dessa responsabilidade, assiste-se atualmente à sua progressiva aproximação da responsabilidade objetiva, com um
3 A MARCA DA CULPA CONTRA A LEGALIDADE
A culpa contra a legalidade implica em transgressão à norma regulamentar, sendo que o dano
dela derivado fala por si à imputação de responsabilidade civil, ou seja, pretende ter o condão de gerar
o dever do ofensor de indenizar a pessoa vitimada. Esta facilitação decorrente de casos em que se
denota a culpa derivada do descumprimento de norma regulamentar se baseia justamente na
desnecessidade já concebida, diante do fato em concreto, de se gerar um ônus excessivo à vítima para
a obtenção de provas substanciais à comprovação de que o ato do médico ofensor é culposo
(obrigação de indenizar originada do mero descumprimento do dever genérico de diligência).
Portanto, “fala-se em culpa contra a legalidade quando o dever violado resulta de texto expresso em
lei ou regulamento” (Cavalieri Filho, 2020, p. 52).
A culpa contra a legalidade pode ser assim caracterizada: há um dever jurídico ou ético
imposto por lei ou regulamento, esse dever foi descumprido pelo profissional médico, a violação
desse dever resultou em um dano ao paciente, provado o nexo causal entre o dano e o descumprimento
da norma regulamentar. Com isso, caracterizada está a responsabilidade do médico, sendo
desnecessária a investigação de sua conduta para aferição da culpa.
Importante salientar, porém, que a presunção da culpa, nesses casos, não desonera o autor
da ação do ônus de provar, quanto ao fato constitutivo de seu direito, os demais pressupostos da
responsabilidade civil, quais sejam, a conduta do médico, o dano experimentado e o nexo de
causalidade. Em relação a este último pressuposto, é imperiosa a comprovação de que o
descumprimento da norma regulamentar é idônea à produção do resultado, caso contrário, não há que
se falar em nexo de causalidade. A infração da norma regulamentar precisa ser o fator determinante
da produção do resultado, pois apenas assim estará cristalino o nexo de causalidade, sob pena de não
poder ser imputado o resultado danoso ao agente descumpridor da norma.
Isto quer dizer que se presume a culpa do ofensor em casos de culpa contra legalidade,
porque a situação fática torna límpida a responsabilidade do ofensor, pelo descumprimento da norma
(o que se instituiu chamar culpa in re ipsa). A Terceira Turma do STJ, no julgamento do REsp n.º
1749954-RO, de Relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze, julgado em 26/2/19, entendeu que:
Em ação destinada a apurar a responsabilidade civil decorrente de acidente de trânsito,
presume-se culpado o condutor de veículo automotor que se encontra em estado de
evidente desprestígio do papel da culpa como requisito do dever de indenizar do médico. Trata-se de tendência vinculada,
via de regra, a uma concepção que associa a prescindibilidade da prova da culpa a uma proteção mais eficaz do paciente
– mas que não pode, de todo modo, ignorar expressa disposição legal (tanto do art. 951 do Código Civil quanto do § 4º
do art. 14 do Código de Defesa do Consumidor, como se verá adiante) a determinar o caráter subjetivo do dever de
indenizar do médico” (Souza, 2012, p. 34).
embriaguez, cabendo-lhe o ônus de comprovar a ocorrência de alguma excludente do nexo
de causalidade (Brasil, 2019).
Não provada a culpa do réu, o pedido indenizatório deverá ser, necessariamente, pela regra
geral, julgado improcedente. Mesma solução deverá ser adotada, a despeito da comprovação dos
pressupostos da responsabilidade civil pelo autor, caso o réu comprove uma das causas excludentes
dessa responsabilidade, já que lhe incumbe o ônus de provar a existência do fato extintivo do direito
do autor por ele alegado, nos termos do inciso II do supramencionado dispositivo19.
A teoria da culpa contra a legalidade é uma construção jurisprudencial que decorre de uma
interpretação sistemática do ordenamento jurídico. Ora, se existem normas regulamentares e legais
impondo condutas a indivíduos, essas normas objetivam alcançar determinados resultados, como, por
exemplo, a segurança viária. O descumprimento dessas normas, já que impede a consecução dos
objetivos almejados pelo legislador, gera a presunção de que aquele que violou a norma deu causa ao
resultado não querido pelo ordenamento jurídico.
A interpretação teleológica pressupõe que as normas são editadas com um escopo definido
pelo legislador. Não é a inobservância de toda e qualquer norma regulamentar que repercutirá na
responsabilização civil do infrator, caracterizando a presunção de sua culpa. Apenas haverá
repercussão quando, da análise do caso concreto, verificar-se que o comportamento objetivamente
representa a violação do bem jurídico que buscava ser protegido pela norma.
Pode-se, assim, afirmar que não é qualquer violação a qualquer norma objetiva de cuidado
regulamentar que irá gerar a responsabilização civil por culpa presumida. É necessário investigar qual
o fim de proteção da norma. Se aquela norma de proteção violada no caso concreto não impediria a
produção do resultado, esse resultado não pode ser objetivamente imputado a quem a descumpriu.
Como a medicina é atividade que, por si só, envolve riscos, a ética médica ganha significativo relevo
na relação médico-paciente, diminuindo a ocorrência de resultados danosos.20
19 “Art. 373. O ônus da prova incumbe: [...] II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo
do direito do autor. [...]” (Brasil, 2015).
20 Faz-se necessário ressaltar, porém, como pontua Wilson Melo da Silva, que “[...] aqueles que atuam de conformidade
com os Regulamentos, continuam, no entanto, responsáveis por todos os outros danos que poderiam ou deveriam prever,
fora dos mesmos” (Silva, 1973, p. 11). A responsabilidade pelos danos, nos casos em que não houve a transgressão de
qualquer disposição regulamentária, mas que decorreram de desatenção, descuido ou desleixo, será apurada segundo a
regra geral da responsabilidade subjetiva. Exige-se do médico, além da observância das normas regulamentárias, a atuação
de maneira atenta e prudente. Presentes os pressupostos da responsabilidade civil, haverá a responsabilização do médico,
o que diferencia é a necessidade ou não de comprovação da culpa, já que havendo inobservância das normas
regulamentares a culpa será presumida.
4 A RESPONSABILIDADE MÉDICA NO DIREITO BRASILEIRO: BREVE RELATO
A responsabilidade civil médica é tema dinâmico que envolve ainda, sobretudo no campo
doutrinário, fervorosos debates acerca da melhor forma de se tratar a responsabilidade de um
profissional liberal21 que desempenha, se não a mais relevante, uma das mais importantes atividades
laborativas, figurando a pessoa humana como principal22.
Por isso, esse estudo fica restrito à relação médico-paciente, como integrante de um contrato
sui generis23, ou melhor, especialíssimo, ao ponto de alguns estudiosos do Direito entenderem que a
prestação de serviço médico deve estar fora da sistematização afeita ao Código de Defesa do
Consumidor24.
A responsabilidade do médico, quando caracterizada uma transgressão à integridade
psicofísica de paciente seu, na qualidade de profissional liberal, costumeiramente, é direta, contratual,
de natureza subjetiva (baseada, em geral, no ato culposo do médico) e envolve duas modalidades
obrigacionais: a obrigação de meios (como regra) e a obrigação de resultado (como exceção) (Lopes,
21 Além disso, destaca-se que a própria classificação do médico como profissional liberal é controvertida. “Pois, apesar
do profissional exercer o monopólio da técnica, a profissão médica não pode ser considerada liberal num todo. O médico
tem a autonomia no tratamento, entretanto deve seguir convenções que guiem a sua atuação sob risco de transcender
limites éticos, além de legais” (Ridolphi; Rangel, 2017, p. 3).
22 Jorge Bustamante Alsina, especialista argentino na matéria Responsabilidade civil, também anuncia: “El tema de la
responsabilidad profesional de los médicos tiene cada vez um auge mayor y los repertórios de jurisprudência exhiben
permanentemente sentencias condenatórias de quienes han sido demandados por daños y perjuicios, a causa de los
efectos de lãs malas prácticas médicas em intervenciones quirúrgicas, diagnósticos, tratamientos clínicos, prescripción
de medicamentos, estúdios prequirúrgicos y prácticas de prevención de enfermedades” (Alsina, 1995, p. 253).
23 Para Silvio Venosa, falar que o contrato que estabelece a relação médico-paciente é sui generis nada esclarece. Importa
saber apenas que o contrato será bilateral, oneroso e comutativo, estabelecendo, como regra, uma obrigação de meio.
Assim, quando a iniciativa do médico é unilateral, decorrendo do seu dever de prestar assistência humanitária àquele que
dela necessita, tem-se uma relação extracontratual, de modo que a responsabilidade médica emergirá da conduta do
médico e não do contrato. O autor destaca que a responsabilidade do médico pode ser até mesmo de natureza estatutária,
quando o profissional contratado por hospital público causa dano ao paciente. Neste caso, a responsabilidade do hospital
seria objetiva com base no art. 37, § 6º, da CRFB, e o Estado terá direito de regresso em face do médico caso fique
configurada sua responsabilidade subjetiva (Venosa, 2010, p. 84). “O sistema protetivo do consumidor supera essa
aparente diferença entre responsabilidade contratual e aquiliana, isto porque o fundamento da responsabilidade civil do
fornecedor deixa de ser a relação contratual (responsabilidade contratual) ou o fato ilícito (responsabilidade aquiliana)
para se materializar em função da existência de um outro tipo de vínculo: a relação de consumo contratual ou não”
(Venosa, 2010, p. 86).
24 Deve-se ressaltar que, apesar de preponderar corrente jurídica no sentido da responsabilidade subjetiva do médico, se
vê como posicionamento dominante a aplicabilidade do artigo 951 do Código Civil Brasileiro vigente, que dispõe sobre
a responsabilidade por prática culposa pelos profissionais de saúde, conjugado com o Código de Defesa do Consumidor,
que, apesar de retirar do campo da responsabilidade, pelo risco do serviço desenvolvido, os atos dos profissionais liberais,
deixa todo restante do texto da Lei consumerista, no que não for incompatível com o seu artigo 14, § 4º (apuração da
responsabilidade do médico pelo seu ato culposo), à possível aplicação pelo Magistrado, quando da resolução de um caso
concreto que envolva dano pela prática da Medicina. É o que se demonstra: “Responsabilidade subjetiva do médico: Os
médicos são profissionais liberais e, por isso, se submetem, no que tange à responsabilidade civil, aos arts. 951, do novo
CC, e 14, § 4º, da Lei 8.078/90, que exigem a prova da culpa como sucedâneo de dever de reparar os danos impostos por
condutas negligentes, imprudentes e inábeis. O dever de indenizar, para esse segmento, não decorre do risco da atividade
que exercem. Estão, pois, em princípio, livres da teoria do risco profissional e da responsabilidade objetiva” (Zuliani,
2003, p. 48 apud Oliveira, 2009, p. 675).
1995, p. 231)25. Nesse sentido, a doutrina e jurisprudência nacionais, diante do caso em análise
concretamente, buscam o seu enquadramento em uma das duas modalidades, tal como se verifica:
Na responsabilidade contratual, em que existem obrigações preestabelecidas entre as partes,
deve-se avaliar se as obrigações da parte contratada são de resultado ou de meio, em face das
relevantes conseqüências que tal distinção acarreta na apuração da responsabilidade. Nas
obrigações de resultado, o devedor se obriga a alcançar uma finalidade. Nas obrigações de
meio, o devedor se obriga a empregar os meios a seu alcance para a consecução de um
objetivo. Claro está que nas obrigações de resultado, o alcance da finalidade do contrato
depende exclusivamente do prestador dos serviços. Já nas obrigações de meio, o fim buscado
depende não só do prestador de serviços, mas também das condições do contratante (Silva,
2007, p. 14-15).
Conforme lição de Miguel Kfouri Neto, afirmar que, na maior parte dos casos, a obrigação
do médico será “de meio” significa considerá-la como uma obrigação aleatória. Ou seja, obrigação
que “[…] depende de acontecimentos incertos, que escapam à previsão, mesmo do médico mais
experiente e preparado. Assim, nem o médico pode prometer a cura, tampouco o paciente pode
esperar, com certeza absoluta, resultado satisfatório” (Kfouri Neto, 2019, p. 53).
A obrigação de meio é ínsita ao dever do médico de prestar a devida assistência ao seu
paciente, que nutre, da relação com ele estabelecida, uma legítima expectativa de se ver tratado
adequadamente, visando à recuperação da sua saúde e/ou melhoria do estado psicofísico.
Caso contrário, ficará, da execução do contrato, evidenciada a culpa médica. Desta situação
lesiva, de um lado, caberá, porém, ao paciente (vítima) a prova dos fatos que alega como fundamento
da sua pretensão jurídica. Ao médico, de outro lado, caberá, na condição de devedor demandado,
demonstrar os fatos impeditivos ou inibidores desta pretensão.
No Brasil, há corrente doutrinária e jurisprudencial alternando aquele estado de coisas (status
processual), visto que a situação jurídica fica alterada quando se vê criada uma presunção em desfavor
do médico, pela inversão do ônus da prova, quando ele assume um resultado vitorioso, diante do
desempenho de atividade profissional que, pela sua especialidade, implica na produção de um
resultado certo e buscado pelo paciente. A obrigação médica será de resultado no célebre caso da
cirurgia estética embelezadora e nos procedimentos técnicos como exames clínicos. A propósito,
pontua-se precedente do Ministro Luis Felipe Salomão, objeto do Informativo de n.º 491 do STJ:
25 Serpa Lopes chega a nos dissuadir da falta de importância em se buscar o enquadramento da responsabilidade do médico
como contratual ou extracontratual, pois, para ele, “de qualquer modo, pouco importa a natureza do contrato que vincula
o profissional e o seu cliente, pouco importa que se trate de uma responsabilidade contratual ou extracontratual, de
qualquer modo, em se tratando de uma infringência dessas obrigações [...] Assim, portanto, se o médico chamado
determina, desde logo, o nascimento do vínculo contratual com o seu atendimento, quer diretamente com o enfermo, quer
com a pessoa que o chamou em benefício do doente, por outro lado, considera-se delitual a ação assegurada aos membros
da família estranhos à formação do contrato e que porventura vieram a sofrer prejuízos com a morte do parente” (Lopes,
1995, p. 264-265).
Nos procedimentos cirúrgicos estéticos, a responsabilidade do médico é subjetiva com
presunção de culpa. Esse é o entendimento da Turma que, ao não conhecer do apelo especial,
manteve a condenação do recorrente – médico – pelos danos morais causados ao paciente.
Inicialmente, destacou-se a vasta jurisprudência desta Corte no sentido de que é de resultado
a obrigação nas cirurgias estéticas, comprometendo-se o profissional com o efeito
embelezador prometido. Em seguida, sustentou-se que, conquanto a obrigação seja de
resultado, a responsabilidade do médico permanece subjetiva, com inversão do ônus da
prova, cabendo-lhe comprovar que os danos suportados pelo paciente advieram de fatores
externos e alheios a sua atuação profissional. Vale dizer, a presunção de culpa do cirurgião
por insucesso na cirurgia plástica pode ser afastada mediante prova contundente de
ocorrência de fator imponderável, apto a eximi-lo do dever de indenizar. Considerou-se,
ainda, que, apesar de não estarem expressamente previstos no CDC o caso fortuito e a força
maior, eles podem ser invocados como causas excludentes de responsabilidade dos
fornecedores de serviços. No caso, o tribunal a quo, amparado nos elementos fático-
probatórios contidos nos autos, concluiu que o paciente não foi advertido dos riscos da
cirurgia e também o médico não logrou êxito em provar a ocorrência do fortuito. Assim, rever
os fundamentos do acórdão recorrido importaria necessariamente no reexame de provas, o
que é defeso nesta fase recursal ante a incidência da Súm. n. 7/STJ. REsp n.º 985.888-SP,
Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 16/2/2012 (Brasil, 2012).
Deve-se, portanto, ter em conta que este é um regime de exceção protetivo da vítima, na
criação de um benefício processual. E mais, todo este regime não tem sua memória calcada em Lei,
mas sim em construção jurisprudencial (Fulgêncio, 1958, p. 80). 26 Ou seja, foi firmada jurisprudência
para que, nos casos de obrigação de resultado, se inverta o onus probandi (o encargo de produzir
prova pelo médico visando à exclusão de sua responsabilidade, na simples dicção do artigo 373, inciso
II, do Código de Processo Civil brasileiro)27.
26 Como a responsabilidade civil, ainda na década de 1960, era instituto ínsito ao Direito das Obrigações, ainda não
detentora de autonomia e/ou independência disciplinar, o civilista em referência já alertava que “a presunção, segundo
uns, deve existir no momento da realização do dano, por ser o em que o credor deveria ter a coisa em mãos, dela dispor
ou tirar partido; segundo outros, o texto se coloca no momento em que estatui sobre o dano, isto é, do julgamento; segundo
outros, deve se considerar o momento em que, conforme as previsões existentes no dia do dano, os lucros se deveriam
realizar. [...] A verdade é que, no fundo, tudo se reduz a deixar campo à prudência do juiz, iluminada pela experiência
quotidiana e pela face segura da jurisprudência (Giorgi)” (Fulgêncio, 1958, p. 80).
27 Cf. Recurso Especial de n˚ 236708/MG, 1999/0099099-4, Relator Ministro Carlos Fernando Mathias (Juiz Federal
convocado do TRF 1ª Região), Quarta Câmara, data do julgamento: 10/02/2009, publicação DJ de 18/05/2009, Ementa:
Civil. Processual civil. Recurso especial. Responsabilidade civil. Nulidade dos acórdãos proferidos em sede de embargos
de declaração. Não configurada. Cirurgia plástica estética. Obrigação de resultado. Dano comprovado. Presunção de
culpa do médico não afastada. Precedentes.1. Não há falar em nulidade de acórdão exarado em sede de embargos de
declaração que, nos estreitos limite s em que proposta a controvérsia, assevera inexistente omissão do aresto embargado,
acerca da especificação da modalidade culposa imputada ao demandado, porquanto assentado na tese de que presumida
a culpa do cirurgião plástico em decorrência do insucesso de cirurgia plástica meramente estética; 2. A obrigação
assumida pelo médico, normalmente, é obrigação de meios, posto que objeto do contrato estabelecido com o paciente não
é a cura assegurada, mas sim o compromisso do profissional no sentido de um prestação de cuidados precisos e em
consonância com a ciência médica na busca pela cura. 3. Apesar de abalizada doutrina em sentido contrário, este Superior
Tribunal de Justiça tem entendido que a situação é distinta, todavia, quando o médico se compromete com o paciente a
alcançar um determinado resultado, o que ocorre no caso da cirurgia plástica meramente estética. Nesta hipótese, segundo
o entendimento nesta Corte Superior, o que se tem é uma obrigação de resultados e não de meios. 4. No caso das
obrigações de meio, à vítima incumbe, mais do que demonstrar o dano, provar que este decorreu de culpa por parte do
médico. Já nas obrigações de resultado, como a que serviu de origem à controvérsia, basta que a vítima demonstre, como
fez, o dano (que o médico não alcançou o resultado prometido e contratado) para que a culpa se presuma, havendo,
destarte, a inversão do ônus da prova. 5. Não se priva, assim, o médico da possibilidade de demonstrar, pelos meios de
prova admissíveis, que o evento danoso tenha decorrido, por exemplo, de motivo de força maior, caso fortuito ou mesmo
de culpa exclusiva da “vítima” (paciente). 6. Recurso especial a que se nega provimento.
ASPECTOS CONCLUSIVOS
Constatada a ocorrência da má prática médica (ou erro médico), geradora de um dano ao
paciente, pode haver a responsabilização do médico nas três esferas: civil, criminal e ética, exigíveis
de forma autônoma e independente entre si. Em âmbito civil, a responsabilidade do médico decorre
do descumprimento de todas as obrigações de natureza não penal causadoras de dano (material,
moral, estético, à imagem e perda de uma chance, por exemplo) ao paciente, desde que estabelecido
o nexo de causalidade e a culpa (provada ou presumida).
Nas três esferas de responsabilização existem diversos dispositivos normativos regulatórios
da prática médica, salvaguardando os direitos do paciente. As peculiaridades do caso concreto devem
ser observadas pelo juiz para aferir, em especial, se a violação à norma regulamentar no caso concreto
foi idônea à produção do resultado danoso, para que seja estabelecido o obrigatório elo de
causalidade.
Regra geral, a responsabilidade civil médica é contratual, subjetiva e com culpa provada.
Acontece que, nos casos de responsabilidades complexas, que decorrem de fatos de outrem, a tarefa
do paciente (ou de habilitados) de provar que o resultado danoso decorreu de negligência,
imprudência ou imperícia do médico nem sempre será tarefa simples. Exigir da vítima (ou de seus
sucessores) a comprovação da culpa médica é impor a produção de prova diabólica; noutras vezes, a
culpa decorre das próprias circunstâncias do evento, sendo desnecessária sua comprovação, quando
estiver comprovado o fato danoso.
A prova da culpa médica é especialmente difícil de ser produzida por duas razões principais:
a jurisprudência é exigente na comprovação da culpa, admitindo-a apenas nos casos de erro grosseiro
e de injustificável omissão na assistência ao paciente, e a matéria é eminentemente técnica. Por essas
razões, jurisprudência e doutrina têm reconhecido, cada vez mais, novas circunstâncias de inversão
do ônus da prova e de culpa presumida em favor do paciente.
O fato de o Código de Ética médica ter-se implementado de maneira a assentar toda a
atividade médica no âmbito das obrigações de meios ― impondo a prova pela vítima do ato culposo
do profissional liberal ― não estabeleceu mudança alguma na jurisprudência brasileira quando do
trato jurídico da matéria. Pelo contrário, o que se apura é um condicionamento maciço de julgados
no sentido de dar aplicabilidade, no possível, aos princípios e regras afeitos ao Código de Defesa do
Consumidor, admitindo-se inclusive que a relação médico-paciente perdeu a sua característica
humanitária.
Também não parece ter força o Código para delimitar condutas regulamentares e fazê-las
valer, na seara judicial, contra os médicos faltosos, para que se tenha o reforço da aplicação da culpa
presumida, mesmo quando no desempenho de atividade mais comum da medicina, atentam contra
deveres expressamente previstos. Ou seja, não se trata o tema dentro de uma concepção ou espaço
interpretativo afeito à culpa contra legalidade, assim como se vê, na jurisprudência, em questões
relativas a acidente automobilístico, sendo certo que ambas impõem risco de inegável natureza social.
Deve-se levar em conta também que a cultura sociojurídica estimulada por ocasião da
vigência da Lei consumerista implica, em matéria de responsabilidade civil médica, na busca da
emissão do querer do consumidor, ou melhor, do seu consentimento informado de forma clara e
objetiva, como uma das tantas maneiras de se fazer valer, como imperioso, o princípio da boa-fé
objetiva e a preservação da dignidade da pessoa humana.
REFERÊNCIAS
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BARROS JÚNIOR, E. A. A Inconstitucionalidade das sanções ético-disciplinares aplicadas. In:
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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (4. Turma). Recurso Especial n. 236708/MG.
Responsabilidade civil. Nulidade dos acórdãos proferidos em sede de embargos de declaração não
configurada. Cirurgia plástica estética. Obrigação de resultado. Dano comprovado. Presunção de
culpa do médico não afastada. Precedentes. Relator: Min. Ministro Carlos Fernando Mathias, 18 de
maio de 2009. Disponível em:
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medica/codigo-2010/resolucao-cfm-no-1931-2009/. Acesso em: 16 de jan. de 2023.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (4. Turma). Agravo Interno no Agravo em Recurso
Especial n. 969.015/SC. Ação de obrigação de fazer cumulada com indenização. Erro médico.
Inversão do ônus da prova. Possibilidade. Súmula 83 do STJ. Verossimilhança das alegações e
hipossuficiência. Súmula 7 do STJ. Agravo interno desprovido. Relatora: Min. Maria Isabel
Gallotti, 07 de abril de 2011. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp. Acesso em:
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nar=S.DISP.&&b=INFJ&p=true&t=&l=20&i=721#:~:text=No%20caso%2C%20o%20tribu-
nal%20a,provar%20a%20ocorr%C3%AAncia%20do%20fortuito. Acesso em: 16 jan. 2023.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Recurso Especial n. 1.395.254/SC. Direito
Processual Civil e Consumidor. Recurso Especial. Ação de indenização por danos materiais e
compensação por danos morais. Cirurgia estética. Obrigação de resultado. Inversão do ônus da
prova. Regra de instrução. Artigos analisados: 6º, VIII, e 14, caput e § 4º, do CDC. Relatora: Min.
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BRASIL. Resolução n.º 2.226/2019. Revoga a Resolução CFM n.º 1.649/2002, os artigos 4º e 5º e
seu parágrafo único da Resolução CFM n.º 2.170/2017 e altera o artigo 72 do Código de Ética
Médica, que proíbem descontos em honorários médicos através de cartões de descontos e a
divulgação de preços das consultas médicas de forma exclusivamente interna. Brasília, DF:
Conselho Federal de Medicina, 2019. Disponível em:
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jan. de 2023.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça ( 3. Turma). Recurso Especial n. 1.749.954-RO. Ação de
indenização em razão de acidente de trânsito. Condução de motocicleta sob estado de embriaguez.
Atropelamento em local com baixa luminosidade. Instrução probatória inconclusiva se a vítima
encontrava-se na calçada ou à margem da calçada, ao bordo da pista de rolamento. Recurso especial
improvido. Relator: Min. Marco Aurélio Bellizze, 26 de fevereiro de 2019. Disponível em:
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