POLÍTICAS PÚBLICAS E CONSENSOS: A RELEVÂNCIA DO CONSENSO

PARA O ÊXITO DA POLÍTICA PÚBLICA, COM ATENÇÃO AOS

“BUROCRATAS DE NÍVEL DA RUA” E DESTINATÁRIOS, E UMA

PROPOSTA BASEADA NO MÉTODO DE ABORDAGEM CONSENSUAL

Public policies and consensus: The relevance of consensus for the success of public
policy, with attention to “street-level bureaucrats” and recipients, and a proposal

based on the consensual approach method


Rafael Alem Mello Ferreira
Guilherme Martins Freire




Resumo
: A formação de consensos em torno das políticas públicas, nas suas diversas fases e entre
seus variados atores, é relevante para seu sucesso ou fracasso? Este artigo pretende analisar a relação
entre política pública e consenso, com atenção aos “burocratas de nível da rua” e destinatários, e
fornecer uma proposta baseada no método de abordagem consensual. O texto se desenvolve em três
partes. A primeira enuncia linhas gerais sobre políticas públicas, necessárias à compreensão do tema.
Na sequência, serão abordados o ciclo da política pública, com suas múltiplas etapas e atores, e a
relevância de trazer os “burocratas da linha de frente” e os beneficiários para todas as suas fases. Por
fim, investiga-se o método de abordagem consensual, mediante exemplos de aplicação no Brasil, e
propõe-se sua utilização para formular, implementar e avaliar políticas públicas.

Palavras-chave: política pública; consenso; burocratas de nível da rua; destinatários; método de
abordagem consensual.

Abstract: Is the formation of consensus around public policies, in their various phases and among
their various actors, relevant to their success or failure? This article aims to analyze the relationship
between public policy and consensus, with attention to “street-level bureaucrats” and recipients, and
provide a proposal based on the consensual approach method. The text develops in three parts. The
first enunciates general lines about public policies, necessary to understand the theme. Next, the
public policy cycle will be addressed, with its multiple stages and actors, and the relevance of bringing
“frontline bureaucrats” and beneficiaries to all its phases. Finally, the consensual approach method is
investigated, through examples of application in Brazil, and its use is proposed to formulate,
implement and evaluate public policies.

Keywords: public policy; consensus; street-level bureaucrats; recipients; consensual approach
method.


Submissão em: 03/09//2023
Aprovação em: 19/09/2023

18/10/2023


 Doutor em Direito pela Universidade Estácio de Sá (UNESA-RJ). Professor do Programa de Pós-Graduação stricto
sensu
da Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM).
 Pós-graduado em Direito Público pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci (UNIASSELVI). Juiz de Direito do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ).



INTRODUÇÃO


O estudo das políticas públicas (policy analisys) evoluiu bastante nas últimas décadas.

Unindo métodos empíricos e teóricos, chegou-se às dimensões das políticas públicas (polity

institucional, politics – processual e policy – material) (Frey, 2000, p. 216-217), suas diversas fases

(policy cycle), as quais podem ser simplificadas em formulação, implementação e avaliação (Frey,

2000, p. 226), e seus variados atores em constante interação (Knoepfel; Larrue; Varone; Hill, 2011,

p. 32; Agudelo, 2012, p. 479; Secchi; Coelho; Pires, 2022, p. 139). Atualmente, uma análise adequada

das políticas públicas demanda uma visão abrangente sobre os inúmeros aspectos que as envolvem,

entre eles o fato de que os “burocratas de nível da rua” (ou “da linha de frente”) e os destinatários

(beneficiários dos bens e serviços) constituem atores relevantes porque aqueles concretizam as

políticas públicas, estes sofrem os efeitos práticos delas e ambos são capazes de influenciar,

significativamente, seus resultados (Cavalcanti; Lotta; Pires, 2018, p. 232; Marques, 2018, p. 34;

Oliveira, 2012, p. 1553; Secchi; Coelho; Pires, 2022, p. 158). Este artigo pretende investigar se a

formação de consensos em torno de uma política pública, nas suas diversas fases e entre seus variados

atores, é relevante para seu sucesso ou fracasso, com atenção aos “burocratas de nível da rua” e

destinatários, e articular uma proposta de trazer esses atores para todas as fases, por meio de uma

importante ferramenta orientada à formação de consensos, o método de abordagem consensual, que

foi criado para a medição da pobreza (Pereira, 2010, p. 10-11), mas que pode ser ampliado para outros

vieses, como aferir as necessidades, percepções, valores, ideias e sugestões dos burocratas e

beneficiários finais, no escopo de tornar as políticas mais eficientes e democráticas. Para isso, o texto

se desenvolve em três partes. A primeira enuncia linhas gerais sobre políticas públicas, necessárias à

compreensão do tema. Na sequência, serão abordados o ciclo da política pública, com suas múltiplas

etapas e atores, e a relevância de trazer os “burocratas da linha de frente” e os beneficiários para todas

as suas fases. Por fim, investiga-se o método de abordagem consensual, mediante exemplos de

aplicação no Brasil, e propõe-se sua utilização para formular, implementar e avaliar políticas públicas.

O trabalho utilizou a metodologia analítica, através de pesquisa bibliográfica e verificação de dois

estudos empíricos brasileiros que empregaram a abordagem consensual.


1 POLÍTICAS PÚBLICAS – LINHAS GERAIS NECESSÁRIAS À COMPREENSÃO DO

TEMA


As políticas públicas adquirem expressão no início do séc. XX, quando as Constituições

passam a incorporar direitos sociais, o que representou “uma mudança de paradigma no fenômeno do



direito, a modificar a postura abstencionista do Estado para o enfoque prestacional, característico das

obrigações de fazer que surgem com os direitos sociais” (Bucci, 2006, p. 2).

Política pública é um conceito plurívoco, não existe uma única, nem melhor, definição

(Souza, 2007, p. 68). Eventual decisão a respeito soaria arbitrária, não havendo um consenso (Secchi;

Coelho; Pires, 2022, p. 2).

Assim, pode ser tomada como “um campo dentro do estudo da política que analisa o

governo”, “um conjunto de ações do governo que irão produzir efeitos específicos”, “o que o governo

escolhe fazer ou não fazer”, decisões e análises sobre “quem ganha o quê, por quê e que diferença

faz”, entre outros conceitos que mostram a amplitude do tema e que, apesar das limitações, são

relevantes porque “guiam o nosso olhar para o lócus onde os embates em torno de interesses,

preferências e ideias se desenvolvem, isto é, os governos” (Souza, 2007, p. 68-69).

Sem prejuízo, Knoepfel, Larrue, Varone e Hill (2011) formulam uma concepção interessante

para os objetivos deste trabalho:

We take policy to mean a series of decisions or activities resulting from structured and
recurrent interactions between different actors, both public and private, who are involved in
various different ways in the emergence, identification and resolution of a problem defined
politically as a public one (Knoepfel, P.; Larrue, C.; Varone, F.; Hill, M., 2011, p. 32).

Nessa linha, seria pertinente compreender a política pública como programa de ação

governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos (Bucci, 2021, p. 123), sempre

permeado de atores. Mais precisamente, “processos complexos, atravessados por diversas dinâmicas

de poder, embora em constante interação com os ambientes institucionais, relacionais e cognitivos

que as cercam, ambientes esses também construídos ativamente pelos atores” (Marques, 2018, p. 24).

Portanto, chama-se a atenção para o aspecto processual/dinâmico das políticas públicas, que

revela as diversas etapas e atores que as envolvem, refletindo, ademais, um caráter marcadamente

multidisciplinar (Faria, 2018, p. 17; Cortes, 2018, p. 63).

A policy analysis, cunhada por Harold Lasswel, precursor dos estudos sobre políticas

públicas, entre os anos 1930 e 1940 (Marques, 2018, p. 25-26), objetiva analisar, semelhante a uma

lide jornalística, o quê (a ação), quem (o agente), quando (o tempo), onde (o lugar), como (o modo,

o meio) e o porquê (o motivo) da política pública, e também seus resultados pretendidos (para quê,

os objetivos gerais e específicos) e alcançados (o que efetivamente ocorreu).

A ciência das políticas públicas, que estuda as relações entre a política (policy) e a ação do

Poder Público (Bucci, 2006, p. 1), origina-se e desenvolve-se, ao menos em democracias estáveis,

sob dois pressupostos: a) possibilidade de formulação científica da política pública e b) análise por

pesquisadores independentes; e caracteriza-se pela multidisciplinaridade, pois alberga teorias da



sociologia, da ciência política e da economia, além de conjugar métodos empíricos e teóricos (Souza,

2007, p. 67-69).

A policy analysis apresenta três dimensões conceitualmente distintas, mas concretamente

interligadas e misturadas, que são, a partir dos termos em inglês, polity (aspecto institucional) para

designar as instituições políticas, politics (aspecto processual) para representar os processos políticos

e policy (aspecto material) para indicar os conteúdos da política (Frey, 2000, p. 216-217). Outrossim,

importa sempre ressaltar que a produção de políticas públicas não ocorre num mundo teórico, mas

empírico, permeado de conflitos e inserido em contextos políticos, econômicos e sociais (Nascimento

Neto, 2021, p. 68).

Para os objetivos deste artigo, pretende-se salientar, no âmbito dessas concepções,

premissas, dimensões e contextos, a relevância dos chamados “burocratas de nível da rua” (ou “da

linha de frente”) e dos destinatários dos bens e serviços, a fim de, por meio das necessidades,

percepções, valores, ideias e sugestões desses executores e beneficiários finais, que entendem melhor

do que ninguém as “verdades/realidades” das políticas públicas, conseguir subsídios para aperfeiçoá-

las, tornando-as mais eficientes e democráticas.


2 CICLO DA POLÍTICA PÚBLICA (POLICY CYCLE), SUAS FASES E ATORES, COM

DESTAQUE PARA OS “BUROCRATAS DE NÍVEL DA RUA” (STREET LEVEL

BUREAUCRATS) E DESTINATÁRIOS (POLICYTAKERS)


O estudo das políticas públicas revelou um “ciclo deliberativo, formado por vários estágios”,

múltiplos atores e um plexo de atos dirigidos a certas finalidades, em particular à resolução de

problemas públicos, traduzindo “um processo dinâmico e de aprendizado” (Souza, 2007, p. 74).

As fases desse processo, teoricamente distintas, mas concretamente imbricadas e muitas

vezes misturadas, constituem o designado ciclo das políticas públicas (policy cycle), que pode ser

dividido, como modelo heurístico (Nascimento Neto, 2021, p. 69), em: formulação; implementação;

e controle dos impactos das políticas; ou, mais analiticamente, em: percepção e definição de

problemas; agenda settting (definição das prioridades); elaboração de programas e decisão;

implementação; e avaliação e eventual correção da política (Frey, 2000, p. 226).

Por sua vez, as políticas públicas incorporam os resultados das interações entre diferentes

atores, tanto públicos quanto privados (Knoepfel; Larrue; Varone; Hill, 2011, p. 32). Com efeito,

policies não se criam no vazio, elas são o produto que resulta da incidência dos múltiplos atores e

seus variados interesses (Agudelo, 2012, p. 479).

Os atores, como políticos, burocratas, destinatários, grupos de interesse e mídia, influenciam,

interferem ou intervêm, em maior ou menor grau, nas diversas etapas e níveis decisórios da política



pública, desde a formulação, passando à implementação, até a avaliação. Deveras, uma política

pública, mesmo sendo liderada por algum ator ou grupo específico, recebe a influência de diversos

atores ao longo do processo (Secchi; Coelho; Pires, 2022, p. 139), e “não necessariamente se restringe

a participantes formais, já que os informais são também importantes” (Souza, 2007, p. 80).

Assim, pode-se deduzir a existência de um fluxo, embora sinuoso, irregular e assimétrico,

através do qual, grosso modo e por exemplo, formuladores de políticas públicas influenciam

implementadores, os quais influenciam destinatários, e destinatários influenciam implementadores,

os quais influenciam formuladores, sem prejuízo de transposições e também incidências de outros

atores.

Nesse contexto, a despeito da relevância da policy cicle, como referencial teórico, prático e

didático, e da influência de variados atores nesse processo, surgiram críticas enfáticas no sentido de

que a implementação transforma, substancialmente e inexoravelmente, a política pública, incidindo

realidades que não estavam no programa, de forma que as políticas públicas não se fazem apenas de

cima para baixo (top-down), mas também de baixo para cima (bottom-up), até mesmo como uma

medida negociada (Marques, 2018, p. 33).

Realmente, os implementadores desenvolvem, na prática, um ferramental técnico e um

conhecimento que podem ser, no mínimo, interessantes, o que poderia incrementar a política pública,

mormente a “de baixo escalão”, que não exigiria, em princípio, conhecimentos técnicos

especializados, segundo a tipologia de Gormley (Secchi; Coelho; Pires, 2022, p. 34-36).

Assim, nesse âmbito, destaca-se a pertinência e a relevância da teoria dos “burocratas de

nível da rua” (street level bureaucrats), de Lipsky, ou “burocratas da linha de frente”, que analisa os

“funcionários da estrutura burocrática da administração pública que têm contato direito com o

público, e que possuem, informalmente, alto grau de liberdade de decisão (discricionariedade)”

(Secchi; Coelho; Pires, 2022, p. 147). É o caso de policiais, médicos, professores, assistentes sociais,

psicólogos e funcionários de atendimento ao público em geral.

Esses executores também seriam formuladores de políticas públicas, na medida em que suas

atividades se convertem em políticas efetivamente implementadas (Cavalcanti; Lotta; Pires, 2018, p.

232). Suas decisões, dotadas de mais ou menos discricionariedade, impactam concretamente as

políticas públicas, criando regras e procedimentos “reais”, sentidos diretamente pelos destinatários.

Suas ações podem alterar “o escopo dos benefícios, a elegibilidade dos beneficiários, assim como o

padrão e os tempos de atendimento” (Marques, 2018, p. 34).

Para Antonio Oliveira (2012, p. 1553), “a ação dos burocratas da linha de frente é mais uma

variável na equação da aplicação das políticas, porque são eles que de fato traduzem os programas

em bens e serviços concretos”, e são os destinatários que recebem “na pele” esses bens e serviços.

Ora, se no direito privado existe a máxima de que uma das melhores formas para se julgar um contrato



é verificar como as partes o executam, também a política pública, para se conhecê-la e compreendê-

la, deve-se observar sua execução.

Os “burocratas de nível da rua” travam contato direto com os destinatários do serviço, detêm

conhecimentos técnicos e práticos das atividades que prestam e, no âmbito em que trabalham,

conhecem a máquina estatal melhor que os políticos e burocratas de escalão superior, o que lhes

permite um conhecimento singular e importante. Eles captam o problema público de forma direta e,

assim, são capazes de formular alternativas potencialmente mais viáveis e eficazes.

Por sua vez, também ostentam acentuada relevância os destinatários das políticas públicas

(policytakers), isto é, “indivíduos, grupos e organizações para os quais a política pública foi

elaborada” (Secchi; Coelho; Pires, 2022, p. 158), pois são eles que sofrem os efeitos práticos das

condutas dos burocratas finais e das políticas públicas concretas e, além de conhecerem essa realidade

específica, possuem olhares e interesses que extrapolam os limites oficiais dos agentes do Estado.

Outrossim, apesar da imagem de passivos, tendo em vista que mais se sujeitariam do que

provocariam uma política pública (Secchi; Coelho; Pires, 2022, p. 158), seus comportamentos são

capazes de exercer influência sobre o “modus operandi” dos burocratas e, por consequência, da

própria política pública, o que traduz uma ligação simbiótica e mais profunda do que aparenta ser à

primeira vista.

Dessa forma, tanto os “burocratas de nível da rua” quanto os destinatários são atores

relevantes porque aqueles concretizam as políticas públicas, estes sofrem os efeitos práticos delas e

ambos, mais do que vivenciarem, são capazes de influenciar, significativamente, seus resultados. Vale

também dizer, aqueles conhecem as condutas, necessidades e idiossincrasias destes e vice-versa, ou

seja, um conhece, a seu modo, o outro, razão pela qual não apenas “o ponto cego, o outro pode ver”

(Neves, 2014, p. 227), mas também o ponto que um não quer ver ou faz de conta que não vê.

Nessa toada, Knoepfel, Larrue, Varone e Hill (2011) sustentam que todos os indivíduos e

grupos sociais envolvidos num problema público ou numa política pública devem ser levados em

consideração, ainda que sejam, a depender da situação e do momento, apenas atores em potencial

e/ou sem capacidade de promover ações concretas, enfatizando que:

If analysts only focus on the behaviour of the most dynamic and enterprising actors,
stipulating that passive groups are ‘non-actors’, they run the risk of overlooking certain
factors that are central to an understanding of how a given policy is developed. Analysts
sometimes adopt too elitist an approach to the actors’ game, not taking into account
sufficiently the effects induced by the passivity of certain social groups or political-
administrative actors who are concerned by the collective problem under consideration
(Knoepfel, P.; Larrue, C.; Varone, F.; Hill, M., 2011, p. 35).

Assim, preconiza-se que as necessidades, percepções, ideias, valores e sugestões dos

“burocratas de nível da rua” e dos destinatários, mesmo que potenciais para o caso de programas



ainda não formulados ou implementados, sejam efetivamente consideradas em todas as fases da

política pública. Cuida-se, portanto, de trazer a política de baixo escalão, muitas vezes relegada a

segundo plano, para o centro dos debates, pois é nela que a política pública se corporifica e se

desenvolve, atingindo os beneficiários.

Em outros termos, importa conhecer o que pensam essas pessoas, desde a elaboração das

políticas públicas, para que estas já venham desenhadas em moldes mais aceitáveis e executáveis na

realidade, até a avaliação para eventual correção do programa, o que ensejaria políticas mais viáveis

e eficazes.

Além do mais, decisões em políticas públicas devem ser não apenas fundamentadas e

transparentes, mas também sujeitas à participação de todos os interessados na sua conformação,

implementação e avaliação, cabendo ao Direito provê-las (ou desprovê-las) de mecanismos de

deliberação, participação, consulta, colaboração, decisão conjunta, accountability e mobilização, de

sorte a torná-las mais permeáveis, não insuladas em anéis burocráticos ou tecnocráticos, abertas aos

inputs de uma pluralidade de atores ou, enfim, mais democráticas (Coutinho, 2018, p. 203).

Portanto, a intervenção dos burocratas finais e dos destinatários nas diversas fases das

políticas públicas atende não apenas ao princípio da eficiência, mas também, numa relação

simbiótica, ao princípio democrático e seus variados corolários, como transparência, participação

popular, controle social, gestão participativa etc., o que não significa admitir uma ditadura de baixo

para cima, mas uma construção de consensos razoáveis, de modo a privilegiar o aspecto consensual

em detrimento do impositivo.

Aliás, segundo a história nacional, o vice-presidente Pedro Aleixo, ao se posicionar contra

o Ato Institucional nº 5 de 1968, disse para o ditador Costa e Silva: “Presidente, o problema de uma

lei assim não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país; o problema é o guarda da

esquina” (Santos Filho, 2019; Morais, 2020).

Ora, se o problema está no guarda da esquina, também nele está, ao menos em parte, a

solução, e a mesma lógica se aplica, mutatis mutandis, aos destinatários, até porque, segundo Brewer,

citado por Carlos Aurélio P. Faria (2018, p. 17), os “problemas determinam a teoria e os métodos,

não o contrário”. Ademais, depreende-se facilmente que os sujeitos que vivem a política pública

adquirem excelentes condições de identificar problemas e sugerir alternativas/soluções. Ouvi-los é a

chance de introduzir esses problemas e sugestões na agenda e passar a considerá-los com seriedade.


3 CONSENSO E POLÍTICA PÚBLICA: MÉTODO DE ABORDAGEM CONSENSUAL


Relações sociais exigem algum consenso. Em políticas públicas não é diferente. Marco

Aurélio Nogueira (2018, p. 180-181) leciona que consenso pode significar oposição a conflito, isto



é, um momento de acordo e consentimento, e que, portanto, a realização de políticas públicas

demandaria a existência prévia ou a construção de um entendimento em torno de seus eixos

principais, de suas apostas, de suas implicações práticas. Na sequência, o mesmo autor realça que:

Em princípio, quanto mais amplo for esse entendimento comum, esse consenso, melhores
serão as chances de aprovação e de sucesso prático das políticas. Isso significaria que, em
condições de amplo consenso, as margens do conflito estariam reduzidas, ou, como se
costuma dizer de modo mais técnico, os conflitos entre indivíduos, grupos e instituições
estariam sendo adequadamente processados (Nogueira, 2018, p. 180-181).

Para Knoepfel, Larrue, Varone e Hinojosa (2007, p. 21), o consenso (relativo) entre os atores

deve ser objeto de atenção especial porque, além de implicar legitimidade, traduz um recurso

primordial para qualquer política pública na medida em que, sendo necessário para evitar bloqueios

físicos (como inobservância de ordens administrativas) e jurídicos (como impugnações perante

tribunais), permite economizar outros recursos, mormente o direito (arcabouço normativo), o dinheiro

e o tempo.

Além disso, a existência de consensos ou dissensos entre os diversos atores que intervêm

numa política pública auxilia na compreensão de fenômenos específicos, como “leis que não pegam”,

políticas públicas virtualmente promissoras, mas que, na prática, fracassam, e também políticas

públicas de sucesso. Nesse contexto, é importante alinhavar, na política pública, os distintos atores,

pois serão eles, de alguma forma, responsáveis por ela, tanto para o fracasso quanto para o sucesso,

daí a necessidade da construção de consensos.

Portanto, em todas as dimensões (polity – institucional, politics – processual e policy

material) e fases da política pública (policy cycle), mostra-se relevante a formação de consensos

razoáveis, com destaque para os níveis de baixo, que são os “burocratas de nível da rua” ou “da linha

de frente” e os destinatários dos bens e serviços, de modo a conectar programa e realidade.

Trata-se de privilegiar um estilo mais consensual que impositivo, no qual “os atores

protagonistas tentam balancear, contrastar e mesmo alterar suas próprias posições em um processo

aberto para a participação de mais atores” (Secchi; Coelho; Pires, 2022, p. 190), o que garante não

apenas maior legitimidade, mas também maior eficiência, visto que “é por meio de processos de

decisão que permitam o diálogo entre a sociedade e a Administração Pública que esta aumenta o grau

de eficiência de sua atuação” (Perez, 2006, p. 163).

Nessa linha, outras vantagens podem ser referidas, como maior quantidade e qualidade de

informações disponíveis para a tomada de decisão adequada, maior quantidade de recursos

disponíveis (materiais e humanos), maior heterogeneidade de esquemas cognitivos (relevante para

problemas complexos) e maior senso de pertencimento e responsabilidade coletiva (Secchi; Coelho;

Pires, 2022, p. 196).



A propósito, Germán Darío Valencia Agudelo (2012, p. 472), ao investigar a participação

da sociedade civil no ciclo das políticas públicas, assertou que “las experiencias recientes han

mostrado que uno de los factores explicativos del éxito de algunas políticas está asociado a la atención

que se la ha prestado a la participación de la sociedade civil”.

Na mesma direção, Marcos Augusto Perez (2006, p. 168) preconiza que o sucesso de

inúmeras políticas públicas depende não apenas do Estado, mas da adesão, ou mesmo atuação, da

sociedade, o que exige a utilização de instrumentos persecutórios do consentimento da coletividade,

vale dizer, que busquem aproximar a sociedade e o Estado, o burocrata e o cidadão, o governante e o

governado.

Assim, dentre os possíveis métodos para obtenção desses consensos, a partir de

necessidades, percepções, valores, ideias e sugestões dos envolvidos, destaca-se a abordagem

consensual (consensual approach).

O método de abordagem consensual, criado por Mack e Lansley para aferição da pobreza,

consiste em identificar um padrão de vida mínimo aceitável a partir da percepção social prevalente,

isto é, da maioria dos indivíduos, sobre bens, serviços e atividades que todos deveriam

necessariamente usufruir, o que afasta um exercício arbitrário de julgamento por especialistas,

políticos e governos e proporciona uma representação mais democrática de interesses, embora não

exclua critérios técnicos dos pesquisadores (Pereira, 2010, p. 10-11).

Desenvolve-se em duas etapas: 1ª) Identificação das necessidades socialmente percebidas,

que se divide em duas subfases, visto que grupos focais indicam e acordam uma lista de

itens/atividades relevantes e, depois, os entrevistados especificam os itens/atividades da lista que

consideram essenciais (e que, mediante consenso da maioria, integrarão as necessidades socialmente

percebidas), opondo-se aos que seriam apenas desejáveis; 2ª) Verificação de quais itens/atividades os

entrevistados possuem e se eventual ausência decorre da vontade ou da carência de recursos (Lanau;

Mack; Nandy, 2020, p. 157-159).

Basicamente, formula-se uma lista de itens/atividades. Na sequência, os participantes

respondem quais entendem ser necessários para uma vida digna e quais julgam não ser. Por fim, as

pessoas que não possuem os itens/atividades em virtude da carência de recursos (ausência forçada)

considerar-se-ão privadas de uma necessidade socialmente percebida.

Esse método reconhece o valor das experiências e das percepções dos indivíduos, o que

possibilita indicadores mais abrangentes e realistas, logo, mais adequados. Com efeito, Lanau, Mack

e Nandy (2020, p. 160) aduzem que somente apurar se as famílias possuem ou não acesso aos serviços

de saneamento e eletricidade não reflete até que ponto seriam estes utilizáveis ou confiáveis, devido

a interrupções no fornecimento, e concluem que:



To accurately reflect the experiences of poor people it is important they be able to express
their perceptions of accessibility and sufficiency. The consensual approach, in asking
respondents about access to and/or standards of services, both captures the experiences of
those in poverty and introduces a democratic element into the definition as to what constitutes
a minimally acceptable standard of living (Lanau, A.; Mack, J.; Nandy, S., 2020, p. 160).

Duas pesquisas, fruto de um projeto entre a Universidade de Cardif e a Universidade de

Campinas (Unicamp), podem ilustrar o método de abordagem consensual no Brasil, sua capacidade

de ampliação, já reconhecida para incluir perguntas sobre acesso a serviços, acessibilidade e

qualidade (Lanau; Mack; Nandy, 2020, p. 161), e sua viabilidade para aplicação em políticas públicas.

O primeiro estudo (Gomes; Franco; Vedovato; Pessoa, 2020) perguntou às pessoas, reunidas

em oito grupos focais divididos e organizados segundo condições socioeconômicas e geográficas

semelhantes, quais itens ou elementos, a partir de uma lista, eram considerados luxo, desejáveis ou

necessidades para que as crianças tivessem condições dignas de vida e não fossem consideradas

pobres.

A pesquisa desenvolveu-se em duas fases. A primeira ocorreu mediante a criação de um

espaço reflexivo, com base no método “brainstorm”, para discutir a pobreza, a situação das crianças

e as necessidades para uma vida digna. Na segunda etapa, passava-se à leitura dos cartões com itens

pré-definidos para que os participantes os classificassem como luxo, desejáveis e necessários.

Desse modo, com supedâneo na percepção social das necessidades, identificou-se, por

exemplo, que todos os grupos julgaram necessário “três refeições por dia”, “roupas suficientes para

frio ou calor” e “artigos de higiene pessoal para poder tomar banho todos os dias (ex.: sabão, escova

de cabelo/pente, escova de dente)”.

Os pesquisadores aduziram que a futura comparação das respostas aos cartões traria “a

possibilidade de ouvir a voz dos cidadãos que, afetados diretamente pela pobreza, teriam a capacidade

de, por meio desta pesquisa, enunciar ao estado quais itens consideram prioritários nas políticas

nacionais” (Gomes; Franco; Vedovato; Pessoa, 2020, p. 207), e também perceberam a relevância de

temas que surgiram, incidentalmente, durante as discussões, como racismo e violência, os quais

poderiam encetar outras investigações, configurar um problema público relevante e ocasionar uma

política pública.

O segundo estudo (Oliveira; Nandy; Fernandez; Vecchio; Assis; Vedovato, 2021)

questionou 155 pessoas individualmente, sem a formação de grupos, sobre os itens constantes na lista

(utilizou-se como referência a lista de itens usada na pesquisa anterior) e obteve como resultados

altamente consensuais, por exemplo, que “ter itens de higiene pessoal para tomar banho todos os dias

(por exemplo, sabonete)” era necessário para 99%; “ser capaz de colocar todas as crianças na escola”

– 96%; “ter recursos para usar o transporte público para o trabalho” – 94%; “ter dois conjuntos de

roupas” – 91%; “comer três refeições por dia” – 89%; “ter moradia (própria ou alugada)” – 87%.



Ao final do trabalho, os pesquisadores chegaram a inúmeras conclusões relevantes, uma das

quais se encaixa, perfeitamente, na proposta aqui defendida:

Esses achados iniciais apontam que a Abordagem Consensual é uma ferramenta importante
para os formuladores de políticas públicas no que diz respeito ao desenho das políticas, e
também para outros atores sociais interessados na relação entre os direitos sociais e
econômicos previstos na Constituição brasileira e a satisfação de necessidades básicas para
um padrão de vida digno no país (Oliveira; Nandy; Fernandez; Vecchio; Assis; Vedovato,
2021, p. 25).

Em síntese, os estudos demonstraram aquilo que é socialmente percebido como necessidade

para um padrão de vida digno. Além disso, também revelaram problemas correlatos, como racismo,

violência, insegurança alimentar, mais pobreza em famílias com crianças e mais pobreza para

trabalhadores informais, o que poderia ensejar novas políticas públicas ou correções das existentes.

Percebe-se, assim, que a utilização do método de abordagem consensual, dada sua concepção

democrática e a verificação concreta de percepções dos indivíduos, poderia ser ampliada e adaptada

para aplicação, sempre que possível, em todas as fases de qualquer política pública, a partir da

obtenção de consensos razoáveis entre os variados atores, em especial quanto aos “burocratas da linha

de frente” e destinatários, mesmo que potenciais, na hipótese de política pública em fase inicial.

Com efeito, separando-se as fases da política pública, genericamente, em elaboração,

implementação e avaliação, verifica-se que a abordagem consensual pode ser utilizada em todas. Na

elaboração, através de intervenção em potenciais burocratas e usuários do futuro programa. Na

implementação, por meio do acompanhamento e investigação desses atores. E na avaliação, pois o

analista pode confrontar o desenho do programa em abstrato com seu funcionamento na realidade, de

modo a constatar a urgência de providências de correção.

Por outro viés, sendo as instituições (polity) um complexo de regras formais e práticas

culturais (Carvalho, 2018. p. 611), busca-se integrar às instituições formais aquelas consideradas

informais (conjunto de valores e práticas culturais), formalizando-as, de sorte a estreitar a distância

entre regras formais e informais ou, vale também dizer, entre a política pública desenhada no papel

(virtual) e aquela aplicada na prática (real).

Ora, chega a ser intuitivo que pouco (ou nada) adiantaria uma política pública de direitos

humanos nas polícias brasileiras se não houvesse antes uma abordagem direta nos policiais para

identificar, analisar e considerar suas necessidades, percepções, valores, hábitos/práticas, regras

informais, conceitos e preconceitos, enfim, sua cultura pessoal, grupal e organizacional, no escopo

de, então, formular o programa, implementá-lo e avaliá-lo.

A respeito dos destinatários (potenciais ou efetivos), extrapola-se o âmbito oficial ao coletar

e analisar as “visões de outros agentes, distintos dos agentes governamentais envolvidos; em outras

palavras, basear-se em fontes diversas da governamental” (Bucci, 2016). Por exemplo, uma simples



abordagem aos moradores de rua da cidade de São Paulo tornaria possível conhecer que os

possuidores de cães se recusariam a ir para abrigos públicos que não disponibilizassem um espaço

para esses animais de companhia (Bimbati, 2022) e possibilitaria, de imediato, a formulação da

política pública já adaptada a essa circunstância.

Em suma, evidencia-se importante saber o que pensam os burocratas e beneficiários finais,

desde a elaboração das políticas, para que estas já venham desenhadas em moldes mais aceitáveis e

executáveis na realidade, até a avaliação para eventual correção do programa, o que não significa

admitir uma ditadura de baixo para cima, mas uma construção de consensos razoáveis.

Obviamente, não se trata de definir uma política pública com base, exclusivamente, nas

vontades e manifestações dos burocratas e beneficiários finais, para que não se torne, na tipologia de

Gustafsson, uma pseudopolítica, ou seja, desprovida do suporte científico necessário (Secchi; Coelho;

Pires, 2022, p. 37), uma vez que políticas públicas também demandam conhecimentos técnico-

científicos importantes e que escapam da visão daqueles atores.

Trata-se, a rigor, de considerar aqueles aspectos (necessidades, percepções, valores, ideias e

sugestões) não apenas de forma simbólica ou falsa, mas real e, em certos graus, determinante. É a

interação entre técnicos e não técnicos que proporcionará mais qualidade e eficiência, aproximando-

se, na medida do possível, as esferas do baixo, do médio e do alto escalão e os destinatários.


CONCLUSÃO


Com amparo na revisão de literatura e em duas pesquisas empíricas nacionais que utilizaram

o método de abordagem consensual, depreende-se que a formação de consensos em torno das políticas

públicas, nas suas diversas fases e entre seus variados atores, é relevante para seu sucesso ou fracasso,

em especial quanto aos “burocratas de nível da rua” e destinatários, os quais devem ser trazidos para

todas as fases da política, a fim de, por meio das necessidades, percepções, valores, ideias e sugestões

desses atores, amealhar subsídios para aperfeiçoá-las, tornando-as mais eficientes e democráticas.


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