TRAJETÓRIA HISTÓRICA DO CONSTITUCIONALISMO LUSÓFONO: O percurso dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa

Jonas Gentil

Professor de Direito. Jurisconsulto. Investigador do CEDIS - NOVA School of Law.

Submissão: 30/01/2023

Aprovado em: 05/04/2023 e 06/04/2023

 

Dedicado à memória de AYRES MAJOR

Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar e refletir sobre o percurso histórico do constitucionalismo lusófono numa perspetiva da trajetória dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, isso tendo em conta a garantia dos Direitos Fundamentais consagrados nos respetivos ordenamentos jurídicos e a sua elevação a um patamar mais regional e internacional. Considerando a influência portuguesa, identificou-se a Constituição Portuguesa de 1976 como ponto de partida do processo político-constitucional destes cinco países. Debruçou-se ainda sobre o pendor socialista que vigorou na I República até a mudança de paradigma estabelecida na II República (Democrática). Nesta trajetória, abriu-se vista a análise de alguns tópicos de convergência e de divergência entre a realidade portuguesa e a dos Estados africanos. Noutro momento, teve-se em elevação o mecanismo de receção do Direito internacional adotado pelos PALOPs. Por fim, o acesso do indivíduo ao Sistema Africano de Proteção dos Direitos do Homem e dos Povos foi posto em evidência, particularizando a questão da salvaguarda e garantia dos Direitos Fundamentais estabelecidos tanto interna como internacionalmente.

Palavra chave: PALOPs; TADHP; Direitos Humanos.

Abstract: This article aims to analyse and reflect on the historical path of Portuguese-speaking constitutionalism from the perspective of the trajectory of African Portuguese-speaking Countries and taking into account the guarantee of Fundamental Rights enshrined in their respective legal systems and their elevation to a regional and international level. Considering the Portuguese influence, the 1976 Portuguese Constitution was identified as the starting point of the political-constitutional process of these five countries. It also focused on the socialist tendency that prevailed in the First Republic until the paradigm shift established in the Second (Democratic) Republic. In this trajectory, the analysis of some topics of convergence and divergence between the Portuguese reality and the African States was opened up. The same way, the mechanism for receiving international law adopted by the PALOPs was elevated. Finally, the individual’s access to the African System for the Protection of Human and Peoples’ Rights was highlighted, that is, taking into account the aspects inherent in safeguarding and guaranteeing the Fundamental Rights established both internally and internationally.

Keyword: PALOPs; TADHP; Human Rights.

Introdução

O presente artigo resulta da exposição proferida no Seminário Internacional de Direito Constitucional Lusófono: Contexto Histórico e Desafios Atuais na Garantia de Direitos Fundamentais, organizado pela Escola da Magistratura do Estado de Rio de Janeiro por ocasião do 34.º Aniversário da Constituição da República Federativa do Brasil, ocorrido entre os dias 5 e 7 de outubro, e tem por objetivo, neste caso particular, analisar e refletir sobre a “Trajetória Histórica do Constitucionalismo Lusófono: O percurso dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa”, isso tendo em conta a salvaguarda e garantia dos Direitos Fundamentais/Direitos Humanos consagrados nos respetivos ordenamentos jurídicos internos e externos. Nesse sentido, tomou-se em consideração a Constituição Portuguesa de 1976 como ponto de partida do processo político-constitucional dos Estados africanos de expressão portuguesa. Nesse encadeamento, deparou-se, numa perspetiva, uma influência de pendor socialista que viria a marcar a trajetória desses países durante a primeira República (1975-1990) e, noutra, o pendor democrático durante o período denominado segunda República (de 1990 em diante). No contexto dessa trajetória histórica dos PALOPs e a sua ligação intrínseca com Portugal, seguiu-se a análise de alguns tópicos de convergência e de divergência entre a realidade portuguesa e a dos Estados africanos. Noutro momento, teve-se em consideração o mecanismo de receção do Direito internacional adotado pelos PALOPs e, neste contexto, tecemos uma breve nota sobre a opção são-tomense de receção do Direito Internacional numa perspetiva de uma provável solução a ser adoptada aos PALOPs. Por fim, o acesso do indivíduo ao Sistema Africano de Proteção dos Direitos do Homem e dos Povos é posto em evidência. Assim, na solução acolhida pela Corte Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, vislumbrou-se que o mecanismo previsto de acesso do indivíduo ao referido Tribunal não possibilita a realização incondicionada e plena desse direito fundamental, uma vez que, na Corte Africana, esse direito apenas poderá ser exercido se o Estado em causa tiver reconhecido a competência do Tribunal para apreciar querelas individuais – cláusula facultativa de jurisdição –, pois que dificulta o exercício desse direito, na medida em que, na prática, nenhum Estado violador teria interesse de reconhecer a competência do Tribunal nessas matérias.

1. Trajetória histórica do Constitucionalismo Lusófono: o percurso dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa

1.1. A Constituição Portuguesa de 1976 como a génese do processo político-constitucional

O modelo de Direito Constitucional Lusófono assenta-se, grosso modo, na existência de alguns pontos centrais do Constitucionalismo Português Democrático e Social nascido com a Constituição da República Portuguesa (CRP) de 19761 e pode ser expresso em três pontos fundamentais: a) na aprovação do texto constitucional por um parlamento constituinte, em contexto pluripartidário e democrático, após um período constitucional revolucionário e provisório; b) na vigência contínua (e duradora) do texto constitucional por mais de 40 anos, o qual não tem assistido a rupturas ou a quaisquer quebras materiais na sua identidade – isso não obstante as múltiplas revisões operadas em Portugal, 1982, 1989, 1992, 1997, 2001, 2004 e 2005; e c) na consagração dos princípios constitucionais do Estado de Direito, Republicano, Unitário, Democrático e Social.

É com base na centralidade que o texto da CRP ocupa que se procederá abordar a questão do Direito Constitucional Lusófono e, para a nossa análise, os diversos Direitos Constitucionais dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOPs). Se considerarmos o Direito Português como a génese desse processo, podemos dividir o constitucionalismo lusófono em três (3) vagas, sendo: i) o texto da Constituição brasileira a 1.º Vaga dos Direitos Constitucionais Lusófonos; ii) os textos das Constituições dos PALOPs a 2.ª Vaga (vaga luso-africana ou, dito de outro modo: africa-lusofônica)2, ocupando, nesse percurso, iii) a Constituição de Timor-Leste a 3.º Vaga constitucional)3.

O reconhecimento dessas vagas é relevante para identificarmos a referida centralidade e aferir-se o tipo de influência, recebida ou rejeitada, em cada um dos “Direitos Constitucionais de Língua Portuguesa”. Nesta análise, não podemos falar propriamente de vagas, mas essa centralidade e influência teve e poderá ter repercussões noutros textos constitucionais; referimo-nos ao caso exclusivo da Região Administrativa de Macau, tendo em conta o estatuto que ocupa na lusofonia, e à República da Guiné Equatorial4, sendo esse último Estado, desde 2014, admitido como membro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Portanto, segundo os ilustres constitucionalistas lusófonos, os professores Jorge Bacelar Gouveia e Kafft Kosta, poderíamos estar aqui diante daquilo que se poderia chamar de “família constitucional lusófona”, isso, claro, desde que determinados princípios e direitos fundamentais estruturantes da ordem jurídica fossem garantidos; por essa razão, por exemplo, a abolição da pena de morte na Guiné Equatorial foi uma das exigências da comunidade lusófona para a sua integração na Comunidade.

1.2. Enquadramento político-constitucional dos PALOPs

Os Estados africanos de língua oficial portuguesa, a saber: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, com exceção da declaração unilateral da Guiné-Bissau em 24/9/1973, tornaram-se independentes em 1975 na sequência do processo de descolonização de Portugal, resultante da Revolução do 25 de abril de 1974, do fim do Estado Novo e do fim das guerras contra o domínio do império português5. Tudo isso, decorrente e em conformidade com a Resolução 1514 (XV) da ONU, de 14/12/1960, adotada pela Assembleia Geral – Declaração sobre a concessão da independência aos Países e Povos coloniais –, desencadeou o processo de descolonização dos PALOPs, que viria a ocorrer cronologicamente do seguinte modo: 1) Guiné-Bissau: 24 de setembro de 1973; 2) Moçambique: 25 de junho de 1975; 3) Cabo Verde: 5 de julho de 1975; 4) São Tomé e Príncipe: 12 de julho de 1975; e 5) Angola: 11 de novembro de 1975.

I. A República da Guiné-Bissau tem vivido, nos últimos anos, repetidos momentos de instabilidade e tensão política e social, motivados por alguns golpes de Estado. A evolução político-institucional da República Guineense tem a singularidade de ter antecipado o resultado da Revolução Portuguesa de 25 de abril de 1974, porquanto a sua independência chegou a ser proclamada “unilateralmente” em 24 de setembro de 19736, em Madina de Boé, sendo que o texto constitucional seria depois retomado com a concessão “formal”, em 1974, da independência do novo Estado independente. O atual texto Constitucional, alcançado depois de uma revisão profunda ocorrida entre 1991 e 1993, é o terceiro da história desse Estado, uma vez que, em 1980, na sequência do golpe de Estado e após um interregno revolucionário de 4 anos, elaborou-se uma nova Constituição em 1984 sem que a anterior Constituição de 1980 tivesse chegado a vigorar. A Constituição de 1993, apenas pontualmente revista em aspetos secundários em 1996, já contou com inúmeras tentativas de revisão geral, mas todas fracassaram por vários motivos. Por um lado, a inexistência de acordo parlamentar; por outro, a ausência de vontade do Presidente da República de promulgar o documento fundamental.

II. A República de Moçambique é um dos dois grandes Estados africanos lusofônicos. Esse país tem sido mencionado como um caso de êxito na efetivação de uma negociação internacional de paz. A sua independência foi alcançada em 25 de junho de 1975, data que marca a entrada em vigor da sua primeira Constituição e que vigoraria até 1990, apenas com alterações muito cirúrgicas. Em 1990, um segundo texto constitucional viria a ser aprovado, o qual sofreu algumas revisões constitucionais limitadas: i) em 1993, foram alterados os artigos atinentes aos partidos e ao regime de candidatura a Presidente da República, na sequência do Acordo Geral de Paz entre o Governo/Frelimo e a Renamo, que pôs fim à guerra civil, assinado aos 4 de outubro de 1992; ii) em 1996, foi reformulado o capítulo concernente ao poder local, na perspetiva de evitar dúvidas de constitucionalidade em relação à nova legislação autárquica entretanto produzida; iii) em 1998, foi alterada uma das competências do Conselho Constitucional, órgão judicial com funções de controlo da constitucionalidade. Desde o início de 2005, coincidindo com a tomada de posse dos novos titulares dos órgãos eleitos – o Presidente da República e a Assembleia da República –, está em vigor em Moçambique o seu quarto texto constitucional, aprovado pela Lei n.º 1/2018, de 12 de junho – Lei da Revisão Pontual da Constituição da República de Moçambique7 [que vem rever a Lei Constitucional de 2004, aprovada em 16 de Novembro de 2004, BR, I Série, n.º 51, de 22 de Dezembro de 2004], não apresentando, por isso, mudanças sensíveis em relação ao texto precedente, não sendo uma verdadeira e própria nova Constituição material, antes, uma mera revisão pontual da Constituição, para ajustá-la ao processo de consolidação da reforma democrática do Estado, ao aprofundamento da democracia participativa e à garantia da paz, reiterando o respeito aos valores e princípios da soberania e da unicidade do Estado8.

III. A República de Cabo Verde tem a originalidade de ter sido o Estado Africano lusófono que mais rapidamente transitaria para a democracia e é onde, no plano prático, mais se tem registado a alternância democrática, tendo os seus dois grandes partidos políticos (PAICV e MpD)9 formado maiorias parlamentares e governamentais. A primeira Constituição da República, de cunho provisório, seria aprovada em 1975 (Lei da Organização Política do Estado) e, em 1980, adotou-se um texto constitucional definitivo, numa inspiração do modelo soviético, que seria a Constituição de 5 de setembro de 1980. A atual Constituição cabo-verdiana, datada de 25 de setembro de 1992, apenas viria a ser aprovada depois de um período de abertura política, no qual a respetiva redação se realizou em clima de efetivo pluripartidarismo10, amplamente efetivada pela Lei Constitucional n.º 2/III/90, de 28 de setembro. Esse instrumento não se conserva na sua versão originária, pois já foi objeto de diversas alterações, as quais se destinaram, entre outros, a aperfeiçoar o parlamentarismo e a intervenção dos cidadãos nos referendos e nas iniciativas legislativas populares, a melhorar o sistema de fiscalização judicial da constitucionalidade.

IV. De todos os PALOPs, a República de Angola foi o último a alcançar uma situação de paz, real desde 2002, quando da cessação das hostilidades existentes entre os dois movimentos anticolonialistas, a UNITA e o MPLA11, na sequência da morte do líder Jonas Savimbi. Certo é que o atual sistema constitucional angolano foi edificado há mais de duas décadas, sobretudo a partir do cessar-fogo após a assinatura dos Acordos de Bicesse em maio de 1991, em que foi possível realizar as primeiras eleições gerais no país (presidenciais e legislativas). O advento desse período foi marcado pela aprovação de uma nova Lei Constitucional em 1992, precisamente destinada a acolher o novo regime democrático emergente, bem como pela elaboração de numerosas leis ordinárias, destinadas a garantir um ambiente de pluripartidarismo. Contudo esse clima político não vigoraria mais do que algumas semanas após a realização das eleições de setembro de 1992, pois que se reiniciaria a guerra civil, isso na estrita medida em que a UNITA nunca aceitou os resultados eleitorais. Finalmente, em fevereiro de 2010, e depois de várias vicissitudes, seria aprovada a Constituição de Angola, texto definitivo que veio substituir a Lei Constitucional de 1992.

V. A República Democrática de São Tomé e Príncipe, o mais pequeno dos PALOPs, tem atravessado sucessivos períodos de crise económica e social, tendo tais períodos provocado situações de alguma agitação política. A independência do Estado insular foi alcançada em 12 de julho de 1975. Porém o respetivo texto constitucional apenas entraria em vigor algum tempo depois. Tendo sido aprovado em 5 de novembro desse mesmo ano (na sua Assembleia Constituinte), o texto foi posteriormente objeto de pequenas e cirúrgicas revisões. A atual Constituição da República foi aprovada em 1990 e foi a única de todos os PALOP’s que se sujeitou a um procedimento de referendo, convocando assim a população a opinar a propósito da mudança ao multipartidarismo (GENTIL, Jonas; CEITA, J. Jhúnior G., 2018, p. 11)12. Depois de muitas propostas de alteração e de outras tantas disputas, o texto constitucional foi efetivamente objeto de uma revisão constitucional que culminou, em 2003, com a aprovação da Lei Constitucional n.º 1/2003, de 29 de janeiro (até agora a única feita, isso sem prejuízo de alguns considerarem tratar-se de uma “nova” Constituição), que teve no seu mérito a correção das soluções iniciais, melhorando o instrumento consideravelmente tal como sucedeu com as matérias inerentes à fiscalização da constitucionalidade e o regime de revisão constitucional. Pôs em evidência a questão da fiscalização da constitucionalidade, que, em 2017, atingiria o cume com a aprovação a Lei Orgânica [Funcionamento e do Processo] do Tribunal Constitucional13, autonomizando-o em relação ao Supremo Tribunal de Justiça, experiência essa vivida na sua grande maioria por todos os PALOPs14.

VI. A evolução político-constitucional dos PALOPs deve ser, tendo em conta a sua trajetória, enquadrada em dois períodos (ou tendências) bem definidos e distintos: uma 1.ª etapa constitucional chamada de primeira República Socialista (1975-1990) e uma 2.ª etapa constitucional denominada segunda República Democrática, que teve o seu marco referencial no início dos anos 1990 até a presente data.

1.3. A fase da I República – das independências à década de 1990

Um dos principais objetivos da III República Portuguesa (alias dictus, Democracia Portuguesa)15, que viu na Revolução de 25 de Abril de 1974 (“Revolução dos Cravos”) o seu vector estrutural, foi a descolonização dos povos e territórios de África, permitindo aos Estados caminhar no sentido do reconhecimento à legítima independência e autonomia política.

Tratou-se de uma evolução político-constitucional que deve ser enquadrada em dois períodos (ou tendências) bem definidas e distintas: 1) uma primeira etapa constitucional chamada de I República Socialista (1975-1990); e 2) uma segunda etapa constitucional denominada II República Democrática (a partir de 1990).

A descolonização portuguesa, marcada pela luta de libertação nacional nos PALOPs, foi politicamente dominada pela emergência de formações partidárias e de ideologias marxistas, de direta inspiração soviética. A maioria dos movimentos de libertação nacional nas colónias portuguesas no continente africano (MPLA; MLSTP; FRELIMO, PAIGC) em particular foi doutrinalmente influenciada pelos ideais comunistas, tal como eles foram desenvolvidos na antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) (GOUVEIA, 2019, p. 339)16.

Podemos identificar nos sistemas constitucionais dos PALOPs traços ideológicos e políticos comuns, dentro desta fonte de inspiração: a) o sistema social: a prevalência dos direitos económicos e sociais em detrimento dos direitos e liberdades políticos e civis, num forte monismo ideológico e partidário; b) o sistema económico: a apropriação dos meios de produção, em que, com a coletivização da terra, esta passa a ser propriedade do Estado e, c) o sistema político: a concentração de poderes no órgão parlamentar de cúpula, com a omnipresença do partido único e a sua localização paralela em todas as estruturas do Estado.

Essa primeira fase na evolução político-constitucional dos PALOPs durou cerca de 15 anos, e foi marcante a cooperação com os países do bloco comunista, principalmente com a URSS, Cuba e a República Democrática Alemã. A vaga de textos constitucionais africanos de “inspiração soviética, com base na doutrina do marxismo-leninismo, não resistiria à queda dos regimes comunistas, um pouco por toda a parte, simbolizada e iniciada pelo derrube do Muro de Berlim, em 1989. Esse fenómeno político e social veio a projetar-se nos PALOPs. Também se pode dizer que a avaliação das economias e das sociedades dos PALOPs revelava já um elevado desconforto com a aplicação do modelo soviético.

1.4. A fase da II República – da década de 1990 aos tempos atuais

A substituição dos antigos textos fundamentais (constitucionais) operou-se por via de transições constitucionais, que se traduziram na criação de novos textos, recorrendo-se aos procedimentos de revisão constitucional pré-estabelecidos. Essa passagem a novas ordens constitucionais aconteceu sempre de uma forma pacífica, sem revoluções ou ruturas significativas.

Na II República, os PALOPs se abrem ao multipartidarismo, havendo, com essa postura, uma mudança de paradigma, em que se elevam: 1) as fontes constitucionais; 2) os princípios fundamentais; 3) os direitos fundamentais; 4) a organização económica; 5) a organização política; e 6) a revisão constitucional. Pode-se afirmar que os textos constitucionais dos PALOPs extraídos desse paradigma refletem a influência da Constituição Portuguesa. Esse efeito é patente e extensível à determinadas instituições jurídico-constitucionais que foram adotadas; a assistência técnica de jurisconsultos portugueses na elaboração da redação do texto; a interligação e proximidade cultural de muitos dos juristas dos PALOPs e a própria matriz romano-germânica herdada e assimilada por esses atores ou operadores jurídicos nacionais17.

No que se refere às opções gerais de Direito Constitucional dos PALOPs, verifica-se a existência de uma grande harmonia em torno das linhas gerais ou princípios constitucionais portugueses: 1) ao princípio republicano, sendo a república a forma de governo instituída, em que a eleição do Chefe de Estado é feita de forma direta; 2) o princípio do Estado de Direito, em consonância com as suas exigências de certeza e segurança, de igualdade e de separação de poderes; 3) ao princípio democrático, caracterizado pela existência de eleições periódicas, nas quais os cidadãos são chamados a participar, num sufrágio universal, direto e secreto; 4) ao princípio do Estado unitário, na estrita medida em que os Estados são unitários, tendo, portanto, sido rejeitados os esquemas propostos de federalismo, embora atenuado por alternativas de regionalismo político-legislativo, ainda que de índole parcial18; 5) ao princípio social, no qual é reconhecida e permitida ao Estado uma intervenção na prestação de direitos económicos e sociais; 6) ao princípio internacional, no qual a soberania dos Estados não impede a sua integração em diversos organismos e organizações internacionais e ou regionais.

1.5. Tópicos de convergência e divergência com a Constituição Portuguesa

Os pontos de convergência são as características que podemos encontrar em cada um dos sistemas político-constitucionais dos PALOPs. Numa primeira abordagem, resultante do processo histórico-cultural tipicamente descolonizador, é possível identificar diversas aproximações ao Constitucionalismo Português. Nesses termos, as semelhanças que são detetáveis podem ser agrupadas em quatro planos: 1) o procedimento constituinte; – aprovação dos textos constitucionais num contexto de um procedimento de tipo parlamentar, ocupando o órgão parlamentar um papel central19; 2) a hiper-rigidez do texto constitucional; - o processo de revisão/alteração dos textos constitucionais obedecem a regras próprias, que afastam o respetivo procedimento dos esquemas gerais de aprovação da legislação ordinária: (limites orgânicos, limites procedimentais, limites temporais, limites materiais, limites circunstanciais); 3) a proteção dos direitos fundamentais; – o catálogo dos DF revela uma generalizada aceitação de altos padrões de proteção desses direitos, mais ou menos generosos, da sua consagração. O sistema constitucional de direitos fundamentais caracteriza-se por se manifestar como um sistema aberto (e não fechado), uma vez que apela, entre outros, aos direitos fundamentais atípicos, à Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, e, em determinados casos, à Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos de 1981(v.g., nesse último caso, art. 43.º da CRM, de 2004, e o art. 26.º da CRA, de 2010). Não sendo este o palco para uma demonstração direito a direito, basta lembrar a facilidade com que os novos textos constitucionais estabeleceram a inequívoca abolição da pena de morte, bem como a sua forte aceitação social.

Numa segunda abordagem, os tópicos de divergência, temos a dizer que a comparação aqui realizada permite igualmente observar um cenário contrário, isto é, a verificação de opções constitucionais que se distanciaram da Constituição Portuguesa de 1976, cumprindo mencionar os seguintes temas: 1) o controlo judicial da constitucionalidade dos atos do poder público; 2) a unidade do poder do Estado e a sua relação com as restantes estruturas; e 3) a “monarquização” da importância da figura do Chefe de Estado.

Em conexão ao controlo judicial da constitucionalidade, que é peça central do princípio do Estado de Direito, verifica-se uma realidade formal e material bastante multiforme e que, no essencial, se afasta dos resultados do Constitucionalismo Português.

É manifesto que nenhum dos textos constitucionais em causa desconhece o fenómeno e estabelece, com maior ou menor minúcia, uma preocupação de fiscalização da constitucionalidade dos atos do poder em desconformidade com a Constituição, além das sanções aplicáveis em resultado desse ilícito constitucional. Só que não deixa de ser menos verdade que muitos dos resultados alcançados são escassos, sem esquecer a variedade das soluções constitucionais formais: a) nem todos os Estados têm um Tribunal Constitucional autónomo, v.g., Guiné-Bissau, onde o Supremo Tribunal de Justiça faz as vestes, e outros atribuem uma nomenclatura diferente, mas que, na prática, se traduz na mesma realidade, v.g., Moçambique (Conselho Constitucional); b) nem todos os Estados instalaram oportunamente os Tribunais Constitucionais conforme previstos nos textos constitucionais, v.g., Angola (2008), Cabo Verde (2015), São Tomé e Príncipe (2017) e c) a prática da fiscalização da constitucionalidade é uma realidade mais marcante em Cabo Verde, uma vez que nos outros quatro países são pouco numerosas – além de substancialmente pouco densas – as decisões tomadas no contexto da fiscalização da constitucionalidade das leis.

Os PALOPs, tal como a República Portuguesa, acolheram “hereditariamente” a conceção republicana de poder político, com a presença de um Chefe de Estado eleito e reelegível para um segundo mandato. A prática, no entanto, tem se revelado pouco republicana, numa oposição evidente com a experiência portuguesa; isso sem contar com os períodos de perturbação interna que não propiciaram a renovação dos dirigentes políticos. De um modo geral, assinala-se o problema de a representação do Chefe de Estado, feita em nome da coletividade, ser muito diversa da representação tipicamente republicana, em que o Presidente da República, se bem que eleito, personifica um poder limitado e colaborante com outros poderes, para além de uma ideia ético-republicana baseada na temporariedade do exercício das funções públicas.

Não é isso o que se vai observando ou sentindo nas realidades constitucionais de alguns dos PALOPs: não só é vontade dos Chefes de Estado de se reelegerem indefinidamente, como é vontade dos povos de se lhes atribuir mais competências e mais protagonismo de intervenção política, pondo assim em causa aquela conceção republicana de poder. No fundo, o que está em causa é uma inadequação geral da conceção republicana europeia ao mundo africano, que encara o papel do Chefe – seja ele nacional, seja ele local – num sentido monárquico, de acordo com as suas regras de sucessão, num contexto cultural mais vasto e fora dos quadros da democracia representativa, ela também de cunho ocidental.

Numa visão puramente formal, é comum aceitar que todos os sistemas políticos africanos lusófonos têm na sua génese uma visão dinâmica dos órgãos do poder público, com a intervenção efetiva do Chefe de Estado, do Parlamento e do Executivo. Contudo, não obstante determinadas diferenças dos textos constitucionais, a evolução desses sistemas africanos tem apontado em direções distintas, no caso, o sistema de governo semipresidencial projetado e concebido pelo texto constitucional português que foi exportado para os textos constitucionais dos PALOPs: a) numa direção parlamentar racionalizada, em Cabo Verde; b) numa direção presidencial, em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, sendo o Presidente da República o chefe efetivo do Governo, apesar de existir, embora com escassa autonomia política, a figura do Primeiro-Ministro; c) numa direção semipresidencial, São Tomé e Príncipe, onde, ironicamente, o Chefe de Estado “detém” competências executivas em matéria de defesa e de relações externas.

2. O mecanismo de receção do Direito Internacional nos PALOPs

2.1. A consagração nas Constituições dos PALOPs

I. O artigo 13.º da Constituição da República de Angola de 1992, alterada pela Lei de Revisão Constitucional de 2010, promulgada pelo Presidente da República a 5 de fevereiro de 2010 e publicada na I Série do DR N.º 23, de 5 de fevereiro, estabelece que: «1. O direito internacional geral ou comum, recebido nos termos da presente Constituição, faz parte integrante da ordem jurídica angolana. 2. Os tratados e acordos internacionais regularmente aprovados ou ratificados vigoram na ordem jurídica angolana após a sua publicação oficial e entrada em vigor na ordem jurídica internacional e enquanto vincularem internacionalmente o Estado angolano».

II. O artigo 12.º da Constituição da República de Cabo Verde de 1992, alterada pelas Leis Constitucionais n.os 1/IV/95, de 13 de novembro; 1/V/99, de 23 de novembro e Lei Constitucional nº 1/VII/2010, de 3 de maio, essa última publicada na I Série, N.º 1/, do Boletim Oficial da República de Cabo Verde a 3 de maio de 2010, consagra que: 1. O direito internacional geral ou comum faz parte integrante da ordem jurídica cabo-verdiana. 2. Os tratados e acordos internacionais, validamente aprovados ou ratificados, vigoram na ordem jurídica cabo-verdiana após a sua publicação oficial e entrada em vigor na ordem jurídica internacional e enquanto vincularem internacionalmente o Estado de Cabo Verde. 3. Os actos jurídicos emanados dos órgãos competentes das organizações supranacionais de que Cabo Verde seja parte vigoram directamente na ordem jurídica interna, desde que tal esteja estabelecido nas respectivas convenções constitutivas. 4. As normas e os princípios do direito internacional geral ou comum e do direito internacional convencional validamente aprovados ou ratificados têm prevalência, após a sua entrada em vigor na ordem jurídica internacional e interna, sobre todos os actos legislativos e normativos internos de valor infraconstitucional».

III. A Constituição guineense de 1984, alterada pelas Leis Constitucionais nos 1/91, 2/91, 1/93, 1/95 e 1/96, no seu artigo 29.º, dispõe que: «1. Os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das demais leis da República e das regras aplicáveis de direito internacional. 2. Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem».

IV. O artigo 18.º da Constituição da República de Moçambique de 1990, alterado pela Lei n.os 11/92, de 8 de outubro; Lei nº 12/92, de 9 de outubro; Lei nº 9/96, de 22 de novembro; Lei nº 9/98, de 14 de dezembro; Lei Constitucional de 2004 - BR, I série, nº 51, de 22 de dezembro de 2004; Lei n.º 26/2007, de 16 de novembro e Lei n.º 1/2018, de 12 de junho- BR, I série, nº 115, de 12 de Junho de 2018 estabelece que: «1. Os tratados e acordos internacionais, validamente aprovados e ratificados, vigoram na ordem jurídica moçambicana após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado de Moçambique. 2. As normas de direito internacional têm na ordem jurídica interna o mesmo valor que assumem os actos normativos infraconstitucionais emanados da Assembleia da República e do Governo, consoante a sua respectiva forma de recepção»20.

V. O artigo 13.º da Constituição da República Democrática de São Tomé e Príncipe de 1990, alterada pela Lei Constitucional n.º 1/2003, de 29 de janeiro, consagra que: «1. As normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito são-tomense. 2. As normas constantes de convenções, tratados e acordos internacionais validamente aprovadas e ratificadas pelos respectivos órgãos competentes vigoram na ordem jurídica são-tomense após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado São-tomense. 3. As normas constantes de convenções, tratados e acordos internacionais validamente aprovadas e ratificadas pelos respectivos órgãos competentes têm prevalência, após sua entrada em vigor na ordem internacional e interna, sobre todos os actos legislativos e normativos internos de valor infraconstitucional».

2.2. A consagração são-tomense como uma provável “solução adaptada” ao Direito Internacional dos PALOPs

A Constituição são-tomense resultante da revisão de 2003, no seu artigo 13.º, define, grosso modo, previamente a relação entre o ordenamento jurídico são-tomense e o direito internacional, como é o caso da conexão entre o sistema jurídico nacional e a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, de 1981 (CADHP)21. Na Carta Magna do Estado são-tomense, é patente a distinção, conforme acontece noutros ordenamentos jurídicos da mesma matriz, entre os diferentes regimes de receção do direito internacional.

A doutrina ensina-nos que a instituição das condições de receção do direito internacional a nível constitucional pode, na redação das Constituições da República, ser definida ou caracterizada em duas modalidades fundamentais, a saber, a incorporação e a transformação.

O regime de incorporação, que é, por maioria da razão, aquele que mais nos importa, é dominante nos países da Europa Continental que seguem a tradição do direito romano – que, por sua vez, definiu a ideologia das escolas dos Estados Lusófonos –, como é o caso de São Tomé e Príncipe, pelo facto destes partilharem em larga medida da mesma matriz romano-germânica por efeito da colonização portuguesa, nos quais os atos de direito internacional vigoram no ordenamento jurídico nacional na qualidade de atos de direito internacional. Nesses sistemas jurídicos, a receção pode ser automática, por simples operação constitucional (legislador constitucional), ou condicionada à prévia adoção de atos derivados de direito interno (legislador ordinário). Por seu turno, os regimes de transformação, característicos dos sistemas common law, prescrevem que a vigência de qualquer ato de direito internacional se deva operar pela conversão em atos de direito interno, especialmente de cariz parlamentar.

A opção constitucional são-tomense pela distinção entre o regime das normas de direito internacional “geral e comum” e de “direito convencional” (n.º 1 e 2), adotado também por outros ordenamentos jurídicos lusófonos (e.g., Angola e Cabo Verde), não se traduz, numa perspetiva jurídico-internacional, isenta de suscitar problemas, na estrita medida em que nem sempre se afigura evidente se uma norma vigora enquanto costume de direito internacional ou apenas se releva pelo facto de constar em instrumento jurídico internacional a que o Estado se vinculou. Note-se que o crescente empenho de codificação internacional tem por base a “… prévia vigência consuetudinária das respetivas normas, o que não facilita uma solução unívoca para esta questão”. Nesse mesmo artigo da CRDSTP, no seu n.º 2, a esse obstáculo adita-se ainda a utilização de distintos conceitos referentes ao direito internacional convencional, que diferencia convenções, tratados e acordos internacionais validamente aprovados e ratificados pelos respetivos órgãos competentes, em termos que nem sempre têm reflexo noutras disposições da Constituição são-tomense ou mesmo de direito internacional.

De salientar que os princípios de direito internacional geral ou comum fazem, por essa via automática, parte integrante do direito interno são-tomense sem necessidade de qualquer ato que lhes reconheça expressamente caráter de fonte de direito. Essa cláusula da receção automática dos princípios que postulam a comunidade internacional evidencia bem o grau de abertura do ordenamento jurídico são-tomense ao direito internacional (n.º 1); o mesmo princípio se pode observar no ordenamento jurídico cabo-verdiano (art. 13º) ou angolano (art. 12º). Por seu turno, a receção do direito internacional de origem convencional fica condicionada à aprovação e ratificação pelos respetivos órgãos competentes, vigorando na ordem jurídica são-tomense após a sua publicação oficial (n.º 2)22. Certamente, a vinculação interna não dispensa a prévia vigência internacional. O processo de vinculação interna, no caso, do Estado são-tomense, a tratados e convenções internacionais está previsto em diversos preceitos constitucionais. Assim, nos termos do artigo 97º, alínea j) da CRDSTP, é atribuída à Assembleia Nacional a competência para «[aprovar] os tratados que tenham por objecto matéria de lei prevista no Artigo 98º23, os tratados que envolvam a participação de São Tomé e Príncipe em organizações internacionais, os tratados de amizades, de paz e de defesa e ainda quaisquer outros que o Governo entenda submeter-lhe»24-25.

Para além dessas normas de receção do direito internacional geral e convencional, a Constituição são-tomense adere e reconhece, de acordo com o artigo 12.º, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e os seus princípios e objetivos da União Africana e da Organização das Nações Unidas como parâmetro de interpretação das normas de direitos e deveres fundamentais. Recebe, assim, igualmente, uma particular integração entre o ordenamento jurídico interno e o direito internacional no que se refere à proteção de direitos fundamentais/direitos humanos.

Uma questão que ainda se mostra pertinente a esse respeito é que a posição hierárquica das normas recebidas nem sempre é resolvida no patamar constitucional de alguns PALOPs. Veja-se, por exemplo, o caso paradigmático da Constituição de Moçambique de 2004, na qual se prevê que: “As normas de direito internacional têm na ordem jurídica interna o mesmo valor que assumem os actos normativos infraconstitucionais emanados da Assembleia da República e do Governo, consoante a sua respectiva forma de recepção” (n.º 2 do art. 18.º da CRM). A CRM de 2004 “enfrenta o problema do posicionamento hierárquico do Direito Internacional na ordem jurídica interna em termos particularmente impressivos. Na verdade, de uma forma muito pouco comum no direito constitucional comparado, o nº 2 do artigo 18.º prevê [uma ‘certa paridade hierárquica’ de valor entre as normas de direito internacional e os atos normativos infraconstitucionais] emanados da Assembleia da República e do Governo”. Trata-se, de “uma concretização do nº 4 do artigo 2 (Soberania e legalidade), no qual se prevê, em termos gerais, que as “normas constitucionais prevalecem sobre todas as restantes normas do ordenamento jurídico” (BASTOS, 2007), inclusive, todas as fontes de Direito Internacional passíveis de produzir efeitos internamente. Portanto, a posição assumida pelo legislador constituinte nessa matéria representa uma escolha surpreendente, na medida em que é incompatível com as características do Direito Internacional e inadequada à inserção da República de Moçambique na comunidade internacional. É, por um lado, incompatível com as características do Direito Internacional, uma vez que não tem em devida consideração a multiplicidade das fontes do Direito Internacional contemporâneo a que o Estado moçambicano está sujeito, independentemente de uma manifestação de vontade concordante, com destaque para as normas de ius cogens, o costume internacional, e algumas resoluções do Conselho de Segurança da ONU. Assim, numa visão não estritamente jusinternacional, vislumbramos uma situação de particular incongruência relativamente ao artigo 43º (cuja epígrafe é: “Interpretação dos direitos fundamentais”) da referida Constituição, na medida em que essa norma da Lei Suprema determina que os “preceitos constitucionais relativos aos direitos fundamentais são interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e a CADHP26. Com efeito, numa situação de conflito com o direito derivado emitido por essas organizações regionais ou internacionais, com particular destaque para aquelas em que haja aplicabilidade direta, a ordem jurídica de Moçambique está em risco permanente de violar os compromissos internacionais que voluntariamente assumiu. É, além disso, por outro lado, inadequada à inserção de Moçambique na comunidade internacional, estando em completa contradição com a enunciação generosa e aberta de princípios ou orientações de atuação internacional, tal como esta se encontra exposta nos artigos 17.º, 19.º, 20.º, 21.º e 22.º. Nesse sentido, importa recordar a afirmação de que a República de Moçambique aceita, observa e aplica os princípios da Carta da Organização das Nações Unidas e da Carta da União Africana, isso conforme estatuído na sua Carta Magna.

Por seu turno e, numa solução que mais encontra acolhimento internacional, o artigo 13.º, n.º 3 da CRDSTP, ao dispor que as “normas constantes de convenções, tratados e acordos internacionais validamente aprovadas e ratificadas pelos respetivos órgãos competentes têm prevalência, após sua entrada em vigor na ordem internacional e interna, sobre todos os atos legislativos e normativos internos de valor infraconstitucional”, aponta naturalmente para uma posição supralegal das disposições das convenções, tratados e acordos internacionais acolhidos na ordem jurídica interna são-tomense sobre qualquer ato legislativo interno de valor infraconstitucional. No mesmo sentido, a CRCV de 2010 estabelece que as “normas e os princípios do direito internacional geral ou comum e do direito internacional convencional validamente aprovados ou ratificados têm prevalência, após a sua entrada em vigor na ordem jurídica internacional e interna, sobre todos os actos legislativos e normativos internos de valor infraconstitucional” (n.º 4, do art. 12.º)27. Isso resulta, grosso modo, da cominação da invalidade de todas as normas das leis que contrariem as disposições dos instrumentos internacionais em vigor no Estado são-tomense. Todavia, nada se extrai quanto à posição hierárquica do direito internacional convencional face às disposições constitucionais, problema esse que, a nosso ver, apenas poderá ser resolvido, numa perspetiva, nos termos consagrados na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 23 de maio de 1969 (artigos 26.º e 27.º), acolhida pelo n.º 2 do artigo 13.º da CRDSTP, referente à inoponibilidade do consagrado constitucionalmente para o não cumprimento de obrigações internacionais convencionais e, noutra perspetiva, através do princípio da constitucionalidade, que garante a sua preferência no ordenamento jurídico são-tomense, uma vez que, como Estados de Direito Democrático, o Estado subordina-se à Constituição e às leis.

Posto isso, necessário se torna dizer que as normas de direito internacional recebidas ao mais alto nível, isto é, no patamar constitucional nos termos propostos pelo artigo 13.º da CRDSTP e pelo artigo 12.º da CRCV, não carecem de posterior concretização legal. Desta feita, se qualquer instrumento regional e/ou internacional for ratificado pelos respetivos órgãos competentes (e publicado no jornal oficial dos Estados), ele terá como valor jurídico prevalência sobre todos os atos legislativos e normativos internos de valor infraconstitucional. E, como sabemos, todos atos normativos devem se conformar com as Cartas Magnas dos Estados.

3. O Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos – A “negação” do indivíduo à Corte Africana como uma solução restritiva para a garantia dos Direitos Fundamentais nos PALOPs

A história do sistema africano de direitos humanos é uma história de superação, tendo os obstáculos e a resistência inicial gradualmente dado lugar ao reconhecimento da necessidade de se estabelecer um sistema de proteção de direitos humanos no continente. O sistema regional é visto como um sistema de visão prospetiva, na medida em que se reconheceu a necessidade de uma visão unificada de direitos humanos e da indivisibilidade dos direitos humanos. Trata-se, pois, de uma história de defesa dos valores culturais africanos positivos, como uma marca distintiva, através, nomeadamente, da consagração dos direitos coletivos, “os direitos dos povos”, bem como do estabelecimento de deveres dos indivíduos28.

Como sabemos, é estabelecido que a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (Comissão) garante um acesso universal ao sistema de proteção de direitos humanos no continente, na medida em que a todos os cidadãos dos Estados-membros é permitido recorrer a esse órgão em caso de violação dos seus direitos. No entanto, apesar dessa universalidade de acesso, uma das características determinantes do trabalho da Comissão é o facto de as suas decisões serem meras recomendações, ou seja, carecerem de força vinculativa. É ai que entram em colação os órgãos judiciais responsáveis por dirimir os casos de violação de direitos humanos – os Tribunais –, in casu, o Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos (TADHP). Nesta análise, importa, desde logo, salientar que a criação e o estabelecimento de órgãos jurisdicionais resultaram de um processo lento, devido à resistência dos Estados que viam esses órgãos como limitadores da sua soberania. Consequentemente, a criação do TADHP deu-se décadas depois da criação da Comissão e em circunstâncias ambíguas. Assim, foram criados três tribunais sucessivamente – o Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos29de salientar que apenas a República de Moçambique e a Guiné Bissau ratificaram o referido instrumento no seio dos PALOPs30 –, o Tribunal Africano de Justiça e Direitos Humanos (TAJDH) – este, sim, ratificado pela República de Angola aos 11 de maio de 2020 – e o Tribunal Africano de Justiça, dos Direitos Humanos e dos Povos (TAJDHP) –, sem que nenhum deles, com exceção da Guiné Bissau em 2021, providenciasse uma proteção plena aos indivíduos nacionais dos Estados Partes31. Antes, pelo contrário, o sistema adotado evidencia uma tendência para a proteção da soberania dos Estados e uma consequente limitação do acesso aos particulares a esse órgão regional, podendo estes apenas recorrer ao Tribunal nos casos em que os Estados tenham feito uma declaração expressa nesse sentido.

Como se pode ver, nos termos do artigo 5.º do Protocolo que cria o Tribunal, têm acesso à Corte: a Comissão Africana, o Estado Parte que tiver apresentado uma queixa à Comissão Africana, o Estado Parte contra o qual foi apresentada uma queixa à Comissão Africana, o Estado Parte cujo cidadão seja vítima de uma violação de direitos humanos, organizações intergovernamentais africanas, e ONG com estatuto de observador junto da Comissão, assim como indivíduos, desde que o Estado tenha reconhecido essa competência (art.º 34.º, n.º 6 e n.º 3 do artigo 5.º). Lamentavelmente, dos trinta Estados Africanos que ratificaram o Protocolo que cria o TADHP, apenas 8 destes Estados permitiram que os seus nacionais tivessem acesso direto ao Tribunal nos termos desta cláusula, obstaculizando, a nosso ver, a realização universal da justiça e garantia dos Direitos Fundamentais preconizados ao mais alto patamar.

Outro aspeto digno de relevo é o facto de a Comissão, com base nos artigos 60.º e 61.º, suportarem as suas decisões em diversos instrumentos jurídicos internacionais de proteção dos direitos humanos e, de certa forma, em jurisprudências e outros meios auxiliares previstos no artigo 61.º da CADHP, o que demonstra bem a “amplitude da margem de apreciação que [a Comissão] possui na interpretação da CADHP. A sua utilização serve também um propósito legitimador, na medida em que confere às suas pronúncias uma autoridade acrescida resultante de estas se basearem em fontes universais de direitos humanos que frequentemente positivam normas e princípios de ius cogens” (GENTIL, 2020). Constata-se, portanto, e tem sido essa uma posição doutrinária relevante, que a coexistência dos instrumentos (e/ou, sistemas) de proteção, por exemplo, o europeu, o interamericano e o africano, desencadearam dois fenómenos que importa ressaltar: a europeização e a interamericanização. Esse fenómeno traduz-se no diálogo entre os Tribunais, que enriquece os julgamentos proferidos pelos sistemas regionais, e o resultado será “a transformação dos sistemas regionais por meio da inovação jurisprudencial e do fortalecimento da capacidade de responder a desafios concernentes a violações de direitos, propiciando proteção mais efetiva aos direitos das vítimas” (PIOVESAN, 2004). Santana de Melo, corroborando essa ordem de ideias, considera (e bem) que, “com o intuito de manter a posição internacional adotada pelos demais órgãos regionais e, por conseguinte, obter uma jurisprudência unitária globalmente, verifica-se a influência de alguns julgamentos (argumentos) da Corte Europeia (europeização) e da Corte Interamericana (interamericanização) nos demais sistemas” (MELO, s/d). Assim, no que diz respeito “à europeização, tornou-se comum a utilização, principalmente pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, da jurisprudência regional europeia”, verificando-se “a utilização do paradigma europeu para julgar casos de violação a direitos humanos que nunca foram submetidas à Corte”. Nessa temática, na decisão sobre a Comunicação n.º 290/200437, a Comissão Africana vai ao ponto de tomar em consideração a “vasta jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, em consonância com os Artigos 60.º e 61.º da Carta Africana, que estabelecem a importância de instrumentos e normas internacionais e regionais de direitos humanos, como referência para o aplicação e interpretação da Carta Africana” (GENTIL, 2020).

Em rigor, considerando alguma ineficácia da Comissão, em exercício desde 1987, no que se refere à proteção dos direitos humanos, verificada mormente pelos descumprimentos das suas recomendações pelos Estados-Partes, a comunidade internacional defendeu a criação de uma instância (TADHP) capaz de emitir decisões de caráter jurídico obrigatório. É assim que, em meados da década de 1990, tornou-se evidente que o sistema africano de proteção dos Direito Humanos, dada sua inoperância, era um embaraço para o continente africano. Vários encontros antecederam a criação do Protocolo que estabelece o TADHP, dentre eles, “podemos citar a reunião de peritos na Etiópia em 1997, cuja discussão girou em torno da questão do locus standi, ou seja, de quem poderia propor petições junto ao tribunal. O consenso estabelecido resultou da pretensão da maioria dos representantes dos Estados no encontro, que reduziu a legitimidade das ONGs tituladas com o estatuto de observador junto à Comissão e os indivíduos de nacionalidades dos Estados que, nos termos do artigo 34.º, n.º 6, optassem por reconhecer essa prerrogativa aos seus nacionais” (NASCIMENTO, 2012, pp. 112-113). Nesses temos, em 1998, foi adotado o Protocolo à Carta Africana cuja finalidade era a criação do TADHP, em Addis Abeba, Etiópia32.

Em matéria de competência contenciosa, o TADHP apreciará, de forma automática, casos submetidos pelas entidades previstas no artigo 5º do Protocolo e, os indivíduos, como vimos, também poderiam submeter casos junto ao Tribunal, só que de forma facultativa. Assim, em bom rigor, os indivíduos e as ONGs apenas teriam a faculdade de submeter casos diretamente ao TADHP se houver declaração formulada pelo Estado para esse fim, conforme preconiza o artigo 5º, § 3º, e o artigo 34.º, § 6º, do Protocolo33. Atualmente, no capítulo referente aos PALOPs, apenas a Guiné-Bissau elaborou a declaração a que faz menção o artigo 5º, § 3º, do Protocolo. A propósito disso, alguns autores consideram que “sendo a declaração opcional, o acesso direto do indivíduo à Corte Africana constitui, na verdade, exceção, e não a regra” (VILJOEN, 2004, p. 9), o que, a nosso ver, põe em causa a garantia dos Direitos Fundamentais/Direitos Humanos. Nesses termos, observa-se que “o Protocolo Adicional à Carta Africana expressamente prevê a possibilidade de demanda diretamente à Corte pelo indivíduo. Entretanto, duas condições são postas: a primeira é o reconhecimento pelo Estado da competência da Corte Africana para receber demandas individuais, configurando-se, portanto, como uma cláusula facultativa prevista no artigo 34, nº 6. A segunda condição é que a declaração deve ser anterior ao recebimento das demandas individuais pela Corte” (NASCIMENTO, 2012, p. 113). Nesse caso, Viljoen alerta que o artigo 5.º, n.º 3, e o artigo 34.º, n.º 6, do Protocolo, da forma como se encontra redigida (“may entitle”), não deve ser interpretado de modo a fornecer ao TADHP critério adicional para recusar a apreciação de um caso (VILJOEN, 2004, p. 9)34. Ideia de que comungamos é igualmente sustentada por Makau Mutua, que considera uma grave lacuna do Protocolo a limitação de acesso ao TADHP pelos indivíduos e ONGs. Entretanto reconhece que esse limite foi necessário para que o Protocolo obtivesse as assinaturas necessárias para sua ratificação (MUTUA, 1999, p. 6). Entendemos, pois, que essa disposição, esse não acesso direto do indivíduo à Corte, foi uma solução de compromisso político para induzir os Estados a ratificarem o Protocolo. Na verdade, “a limitação do acesso pelos indivíduos e ONGs foi um verdadeiro golpe no prestígio e na reputação da Corte Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, mormente aos olhos dos africanos, haja vista que são os indivíduos e ONGs e não a Comissão Africana, entidades intergovernamentais ou os Estados, os principais beneficiários e usuários da Corte. Como se sabe, a grande proposta da Corte não pretendia que ela fosse uma instituição para a proteção dos direitos dos Estados ou dos órgãos da Unidade Africana, mas sim essencialmente uma Corte de direitos humanos que protegesse a pessoa humana contra as violações dos Estados e outras agências estatais. Tal limitação tem reduzido de forma crucial o papel da Corte Africana na proteção dos Direitos do Homem e dos Povos. Tal fato pode ser corroborado com a análise da própria jurisprudência da Corte35, a qual julgou apenas um caso até o presente momento” (NASCIMENTO, 2012, 114).

Outrossim, parece bastante incongruente que os indivíduos tenham legitimidade para propor ação, de forma direta e incondicionada, nos seus governos/Estados perante os tribunais nacionais, mas não possam fazê-lo perante um Tribunal Internacional/Regional, como é o caso do TADHP, uma vez que tal faculdade fica à mercê de uma declaração do Estado violador (UDOMBANA, 2003, p. 9). Ademais, no tocante ao acesso do indivíduo, é cabível mencionar ainda a necessidade da gratuidade da representação legal dele perante a Corte Africana36.

Considerações Finais

Aqui chegados e, após uma análise comparativa ao percurso histórico do constitucionalismo dos PALOPs, não podemos assumir nesta abordagem comparativa dos sistemas africanos lusófonos que um sistema seja melhor do que outro, até porque as características de cada realidade, não obstante a matriz comum que caracteriza os Estados – o sistema constitucional português –, pode levar a que esses mesmos Estados possam adotar mecanismos, institutos e soluções mais adaptáveis à sua realidade e contexto. De igual modo, não se pode descurar a possibilidade de, no seio dos PALOPs, num primeiro momento e, depois numa realidade mais distante, no seio da CPLP, criar instâncias supranacionais que melhor possam dar vasão à garantia dos Direitos Fundamentais/Direitos Humanos. Ao nível regional africano, foi criado o TADHP, porém, lamentavelmente, a maior parte dos Estados que ratificaram o instrumento não permite o acesso direto dos seus cidadãos a essa instância (na África lusófona, apenas a Guiné-Bissau emitiu a referida declaração), o que, para nós, põe em causa, entre outros, o princípio fundamental do acesso à justiça, a realização material da justiça, a existência de graus de jurisdição como garantia de concretização de tais direitos.

Referências

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1 O atual Direito CRP, aprovado em 2 de abril de 1976, e que entrou em vigor em 25 de abril de 1976. Essa lei constitucional superior surgiu como corolário da Revolução de 25 de abril de 1974, que pôs termo a um regime autoritário de direita, de inspiração nacionalista, corporativa e fascizante, designado como “Estado Novo”, fortemente influenciado pelo regime fascista italiano. Até que a CRP tivesse sido aprovada, nesse período intercalar de dois anos, para além do trabalho da Assembleia Constituinte, democraticamente eleita, viveu-se um regime constitucional provisório, marcado pela adoção de um conjunto de medidas urgentes, em função de três objetivos (a) descolonizar, (b) democratizar e (c) desenvolver o país.

2 Que é representada pelo nascimento das Constituições dos cinco Estados Africanos no período da II República, a qual surge com as transições para regimes constitucionais de Estado de Direito.

3 O reconhecimento de cada uma dessas três vagas é muito relevante não apenas para a comprovação daquela centralidade, como para se aferir o tipo de influência, recebida ou rejeitada, em cada um dos “Direitos Constitucionais de Língua Portuguesa”, na certeza de que o seu aparecimento se prolongou no tempo e ao sabor das vicissitudes histórico-políticas próprias dos Estados Lusófonos em geral e dos PALOPs em particular.

4 A República da Guiné Equatorial foi admitida como membro de pleno direito da CPLP na X Conferência de Chefes de Estado e de Governo, realizada a 23 de julho de 2014, em Díli.

5 Tornando-se independentes e com um rumo próprio, cada um mergulhou nas órbitas de influência geopolítica de conveniência, tendo em conta as suas potencialidades económicas e estratégicas. Contudo a exclusão social, a pobreza, a fome e a violência marcam até hoje o panorama desses Estados.

6 Declaração unilateral por parte da GB, tendo sido mais tarde, em 1974, oficialmente reconhecido pelo Estado português.

7 BR, I série, nº 115, de 12 de junho de 2018.

8 Cf. Exposição de Motivos da Lei de Revisão Constitucional moçambicana de 2018.

9 Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV), 1981 e Movimento para a Democracia, 1990, respetivamente.

10 A 5 de julho de 1975, o PAIGC, partido binacional – Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde, que já estava no poder na Guiné-Bissau, tomou conta do poder em Cabo Verde, passando ambos os países a viver sob o regime de partido único. Essa união foi mantida até ao golpe de Estado de 1980, em Bissau, que levou à cisão dos dois Estados, dando lugar a um novo partido, o PAICV, que passou a governar Cabo Verde a partir de 1981. No entanto, o regime continuou a ser de partido único. Em 1990, o Conselho Nacional do PAICV decidiu proceder à abertura política, permitindo que outros partidos concorressem às eleições. Assim, as eleições legislativas, as presidenciais e as autárquicas de 1991 foram vencidas de forma clara pelo único partido da oposição que cumpria as exigências legais para concorrer, o MpD. Ver PEREIRA, Ludemila Cardoso. Cabo Verde: da Descolonização à Abertura Democrática, Dissertação de Mestrado, Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, 2013.

11 A União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), fundada em 1966, e o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), fundado em 1961, respetivamente.

12 Em 22 de Agosto de 1990, ocorreu o referendo popular a favor da nova Constituição (II República – Lei Constitucional n.º 7/90, publicado no DR n.º 13, de 20 de setembro de 1990), tendo sido ratificado por 81% dos votos (34.348 num total de 42.274, com taxa de participação de 80% dos eleitores inscritos). Ver GENTIL, Jonas; CEITA, J. Jhúnior G. Constituição da República Democrática de São Tomé e Príncipe e Legislação Fundamental, IDiLP, 2018.

13 Lei n.º 19/2017, de 26/12, texto oficial publicado no DR n.º 191, de 26/12.

14 Com exceção da República da Guiné-Bissau (artigo 126.º da CRGB), todos os PALOPs autonomizaram o Tribunal Constitucional em relação ao Supremo Tribunal de Justiça.

15 O Estado Novo (regime político ditatorial, autoritário, autocrata e corporativista de Estado que vigorou em Portugal durante 41 anos ininterruptos, desde a aprovação da Constituição de 1933 até ao seu derrube pela Revolução de 25 de Abril de 1974), alguns historiadores consideram tratar-se de II República Portuguesa, por exemplo, a História de Portugal, de José Hermano Saraiva, e a obra homónima de Joaquim Veríssimo Serrão. A I República Portuguesa (referida como República Parlamentar) e cujo nome oficial era apenas República Portuguesa, foi o sistema político vigente em Portugal após a queda da Monarquia Portuguesa, entre a revolução republicana de 5/10/1910 e o golpe de 28/05/1926, que deu origem à Ditadura Militar, mais tarde Ditadura Nacional e, posteriormente, Estado Novo.

16 Ver também, GOUVEIA, Jorge Bacelar. Sistemas Constitucionais Africanos de Língua Portuguesa: a caminho de um paradigma, in THEMIS, Edição Especial, 2006, pp. 119-141.

17 Esse acontecimento revela com alguma estranheza o que efetivamente aconteceu com a II República, na medida em que esses Estados romperam uma ligação de 500 anos de história com o vetor das independências, afastando-se do “Direito Português” em direção a um outro sistema: o de inspiração soviética.

18 Os textos constitucionais dos PALOPs partilham uma outra característica, igualmente presente na Constituição Portuguesa, que é a da unidade do poder do Estado, tendo-se rejeitado todas as formas de Estado composto, normalmente representado pelas experiências federais.

19 Em relação ao procedimento constituinte, em todos os PALOPs, verificou-se uma certa preponderância em aprovar os textos constitucionais no contexto de um procedimento de tipo parlamentar, ocupando o órgão parlamentar um papel central. Todavia, cada país depois adotou diversas soluções na consecução desse objetivo, uma vez que o procedimento constituinte variou entre um parlamento monopartidário, oriundo da primeira República, e um Parlamento pluripartidário, em contexto da segunda República, embora aquela opção tivesse sido claramente predominante. Daqui resulta que prevaleceu uma conceção democrático-parlamentar das novas Repúblicas instituídas numa importante lógica de valorização da instituição parlamentar. Todavia a aprovação dos textos constitucionais, na maioria desses Estados, se ficou a dever aos parlamentos monopartidários da I República totalitária, quase não tendo havido – com exceção de Cabo Verde, que, em 1992, aprovaria uma nova Constituição já em regime pluripartidário – textos constitucionais fruto de uma discussão pluripartidária nos novos parlamentos eleitos. Em muitos casos, as novas Constituições viriam depois a ser pontualmente revistas, para se adequarem aos processos de pacificação interna, em contextos multipartidários.

20 Para uma discussão doutrinária sobre a posição adotada, ver MACUÁCUA, Edson da Graça Francisco. A problemática da posição hierárquica do Direito Internacional na ordem jurídica Moçambicana, in Julgar, novembro de 2020 e BASTOS, Fernando Loureiro, O Direito Internacional na Constituição moçambicana de 2004, 2007. Disponível em: https://silo.tips/download/o-direito-internacional-na-constituicao-mocambicana-de. Acesso em: 13.12.2022.

21 A CADHP foi adotada pela 18ª Conferência dos Chefes de Estado e de Governo dos Estados africanos membros da OUA a 26 de junho de 1981, em Nairobi, no Quénia e ratificada pela RDSTP aos 23 de maio de 1986.

22 Também, art. 13.º/2 da CRA; art. 12.º/2 da CRCV e art. 18.º/1 da CRM.

23 Leia-se, por força da remissão constante do artigo 100.º da Constituição: “matérias de competência legislativa relativa”.

24 Ver artigos 28.º;31.º;69.º e 198 a 204.º do Regimento da Assembleia Nacional.

25 Nesta sequência, o Presidente da República, nos termos do artigo 82.º, alínea b), se limita a “Ratificar os tratados internacionais depois de devidamente aprovados;”. Compete, no entanto, ao Governo da República a definição geral da política do Estado (art. 108.º), assim, em matéria de relações internacionais, este órgão de soberania é competente para “Negociar e concluir acordos e convenções internacionais” (al. e) do art. 111.º), em que se pode entender que, neste âmbito, o Governo pode preparar e negociar tratados e acordos e celebrar, aprovar, aderir e denunciar tais acordos internacionais desde que não sejam os da competência de outro órgão de soberania – no caso, da Assembleia Nacional. Nesses termos, uma vez que é da competência do Governo, em termos gerais, a definição e execução da política externa do país, não se pode retirar categoricamente, assim, conforme tem entendido alguma doutrina, que da intervenção presidencial no domínio das relações internacionais na condução, com o Governo, das negociações para a conclusão de acordos internacionais na área da defesa e segurança, que existe o pendor atributivo de quaisquer poderes e/ou competências àquele órgão de soberania na definição da política externa do Estado (alínea e) do art. 82.º), sendo que esta encontra-se, salvo outra opinião, cometida ao Governo nos termos fundamentados (ver, a propósito, o art. 111.º, alínea a)). Portanto, em matéria de relações internacionais, a CRDSTP prevê um conjunto de atribuições e competências, distribuídas por distintos órgãos de soberania que encerram um equilíbrio e uma interdependência institucional, cuja prática constitucional se tem revelado adequada e promotora de consensos políticos de fundo em assuntos de relevante interesse nacional/estratégicos, como as grandes opções nas áreas dos Negócios Estrangeiros e da Defesa Nacional.

26 Via ou solução aplicável à CRGB, dada a ausência de uma disposição concreta sobre a receção do direito internacional.

27 A CRA de 2010 e a CRGB de 1996 são omissas nessa matéria.

28 A história do sistema africano é também uma história de abertura e adaptação aos novos desafios e contextos através da mudança da organização política do sistema da Organização da Unidade Africana para a União Africana, como forma de responder à necessidade de respeitar valores humanistas e democráticos.

29 Este Tribunal foi criado pelo Protocolo sobre a Criação de um Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos, adotado em 1998 e entrado em vigor a 25 de janeiro de 2004. Os seus primeiros 11 juízes foram eleitos a 22 de janeiro de 2006, na 8.ª Sessão Ordinária do Conselho Executivo da União Africana. Com sede em Arusha, na Tanzânia, tem competência consultiva e contenciosa, complementando a dimensão de proteção do mandato da Comissão Africana. Este Tribunal tem competência para julgar quaisquer casos relativos à interpretação e aplicação da Carta, do Protocolo e de qualquer outro instrumento pertinente de direitos humanos ratificado pelo Estado em causa, podendo, pois, pronunciar-se sobre violações, não só dos tratados africanos, mas também de outros tratados dos quais os Estados africanos sejam partes (nomeadamente tratados das Nações Unidas). O TADHP proferiu a sua primeira decisão a 15 de dezembro de 2009, no caso Michelot Yogogombaye c. Senegal – que se considerou incompetente para julgar. Segundo os dados mais recentes disponibilizados pelo Tribunal até final de 2017, o Tribunal havia recebido 161 queixas no âmbito da sua competência contenciosa (147 de indivíduos, 11 de ONG e 3 da Comissão), estando pendentes 125 casos.

30 Sendo que a Guiné-Bissau é o único lusofónico a emitir a declaração que permite o acesso do individuo à instância africana.

31 Aquando da transformação da Organização de Unidade Africana em União Africana, em julho de 2004, a UA decidiu que o Tribunal Africano dos Direitos do Homem e dos Povos deveria ser fundido com o Tribunal de Justiça Africano. Para o efeito, foi adotado, a 1 de julho de 2008, o Protocolo Relativo aos Estatutos do Tribunal Africano de Justiça e dos Direitos Humanos. Até ao final de 2017, esse Protocolo não se encontrava ainda em vigor por não ter atingido o número mínimo de Estados Partes necessário para o efeito. Esse facto não impediu que, a 27 de junho de 2014, tenha sido adotado um Protocolo sobre as Alterações ao Protocolo Relativo ao Estatuto do Tribunal Africano de Justiça e Direitos Humanos, o qual alterou a designação do Tribunal para Tribunal Africano de Justiça, dos Direitos Humanos e dos Povos, dotando esse órgão de três secções: assuntos gerais, direitos humanos e dos povos e direito penal internacional. Essa última terá competência para julgar os seguintes crimes: genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra, crime de mudança inconstitucional de governo, pirataria, terrorismo, mercenarismo, corrupção, branqueamento de capital, tráfico de seres humanos, tráfico de drogas, tráfico de resíduos perigosos, exploração ilícita de recursos naturais, crime de agressão. Até final de 2017, esse Protocolo estava igualmente pendente de entrada em vigor, não tendo ainda atingido o número mínimo de Estados Partes necessário para o efeito.

32 O Protocolo entrou em vigor em 25 de janeiro de 2004, com o depósito do 15º instrumento de ratificação, conforme dispõe o seu artigo 34, tendo sido celebrado unanimemente pela comunidade dos defensores dos direitos humanos. Consoante se verifica no Preâmbulo do Protocolo, o Tribunal tem por escopo fortalecer a proteção dos direitos humanos e dos povos contemplados na Carta Africana, de modo a complementar e fortalecer as funções da Comissão Africana. Nesse aspeto do Protocolo, verifica-se objetivamente a essência da “fraqueza e incompletude” da Comissão Africana, que passa a requerer o funcionamento do Tribunal de modo a suprir as suas lacunas.

33 The Court may entitle relevant Non Governmental Organizations (NGOs) with observer status before the Commission, and individuals to institute cases directly before it, in accordance with article 34 (6) of this Protocol. At the time of the ratification of this Protocol or any time thereafter, the State shall make a declaration accepting the competence of the Court to receive cases under article 5 (3) of this Protocol. The Court shall not receive any petition under article 5 (3) involving a State Party which has not made such a declaration.

34 A concessão à Corte Africana de um poder discricionário para recusar demandas individuais seria excessivamente prejudicial ao indivíduo, haja vista que o acesso dependeria de dois grandes obstáculos processuais: a declaração do Estado e a aprovação da Corte Africana. Uma questão interessante suscitada por Mubiala é se a Corte precisará da referida declaração caso a caso. Para o autor, esse entendimento seria uma interpretação restritiva do dispositivo, contrariando o interesse da proteção dos direitos do homem que milita em favor de uma interpretação dinâmica dessa disposição, razão pela qual defende que a Corte Africana deveria fixar no seu Regulamento Interno as condições gerais dessas demandas. MUBIALA, Mutoy. L’accès de l’individu à la Cour Africaine des droits de l’homme et des peuples, in Promoting justice, human rights and conflict resolution through international law: liber amicorum lucius caflisch, 2007. p. 369-378.

35 Caso nº 001/2008, Michelot Yogogombabaye c. República do Senegal.

36 O artigo 10, nº 2, do Protocolo estabelece o direito de qualquer parte de ser representada por um representante legal de sua escolha, devendo a representação legal gratuita ser assegurada quando os interesses da justiça assim o requererem. Essa disposição merece ser refletida, principalmente em um continente onde os cidadãos vivem em situação de pobreza degradante, podendo a falta de recursos financeiros para custear a representação legal constituir para o indivíduo outro óbice na defesa de seus direitos. Para Mubiala, a União Africana deveria financiar todo o mecanismo de assistência judiciária, sendo tal medida indispensável para a distribuição de uma justiça igualitária perante a Corte Africana. Ver UDOMBANA, op. cit, p. 9 e MUBIALA, Mutoy. L’accès de l’individu à la Cour Africaine des droits de l’homme et des peuples, in PROMOTING justice, human rights and conflict resolution through international law: liber amicorum lucius cafl isch, 2007. p. 5.