DESAFIOS ATUAIS NA GARANTIA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NO BRASIL1

Guilherme Peña de Moraes

Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Professor de Direito Constitucional da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) e da Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ), Doutor em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e Pós-Doutor em Direito Constitucional pela Fordham School of Law – Jesuit University of New York (FU/NY).

Submissão em: 17/11/2022

Aprovado em: 10/04/2023 e 28/04/2023 

RESUMO: Este trabalho procura investigar os desafios atuais na garantia de direitos fundamentais. O caráter inovador reside na análise dos impactos da Constituição de 1988, comportamento da jurisprudência nesses trinta e quatro anos e, por último, futuro do Direito Constitucional no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: Desafios atuais – Garantia – Direitos fundamentais.

ABSTRACT: This article is intended to investigate the current challenges in guaranteeing fundamental rights. The innovative aspect lies in the analysis of the impacts of the 1988 Constitution, the trends of jurisprudence over the last thirty four years and finally the future of Constitutional Law in Brazil.

KEYWORDS: Current challenges – Guarantee – Fundamental rights.

 

Honrou-me a Excelentíssima Senhora Desembargadora Cristina Tereza Gaulia, Diretora-Geral da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, com o convite para participar do “Seminário Internacional de Direito Constitucional Lusófono”.

A mim, pois, cumpre a responsabilidade de apresentar os avanços e eventuais retrocessos do constitucionalismo brasileiro durante os 34 (trinta e quatro) anos de vigência da “Constituição Cidadã” (GUIMARÃES, 1988: 14380-14382), que, pelos laços da história e ancestralidade, mantém relações de semelhança e, por vezes, identidade com as Constituições dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa de Guiné-Bissau, de 16 de maio de 1984; Guiné Equatorial, de 16 de novembro de 1991; Cabo Verde, de 4 de setembro de 1992; São Tomé e Príncipe, de 25 de janeiro de 2003; Moçambique, de 16 de novembro de 2004; e Angola, de 5 de fevereiro de 2010, cujos representantes iluminam o evento que marca o lançamento da presente obra.

1. Introdução

Com efeito, a história brasileira é marcada por rupturas constitucionais, tendendo a um movimento pendular entre a democracia e a ditadura cívico-militar.

No decurso do período republicano, ao menos, 5 (cinco) golpes de Estado foram levados a efeito, tendo, inclusive, na República Velha, o Presidente eleito pelo voto popular em 1º de março de 1930 sido impedido de tomar posse no cargo (FAUTO, 1997: 21). Sem embargo disso, o recesso do Congresso Nacional foi decretado em 20 de outubro de 1966 e 1º de abril de 1977, por força dos poderes conferidos ao Presidente da República pelo Ato Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965, e, ulteriormente, Ato Institucional nº 5, 13 de dezembro de 1968 (CIOTOLA, 1997: 33).

Entretanto, a Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988, é resultado do processo de transição, que retratou a descontinuidade dos valores comungados pela organização política de então, iniciado na sessão do Colégio Eleitoral de 15 de janeiro de 1985, que elegeu indiretamente o governo civil que sucedeu ao regime militar de viés autoritário (NICOLAU, 2012: 154), e finalizado pela Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985, que convocou os membros da Câmara dos Deputados e Senado Federal a reunirem-se, unicameralmente, em Assembleia Nacional Constituinte, livre e soberana, na sede do Congresso Nacional (MAKLOUF, 2017: 26).

Desde então, o sistema constitucional brasileiro é submetido, contínua e frequentemente, a “testes de resistência” (MORAES, 2018: 17), que revelam as conquistas do maior período de liberdade democrática da república brasileira e, de outro giro, os desafios que haverão de ser enfrentados para a preservação do Estado de Direito nos próximos anos.

2. Conquistas

A Constituição, ao estabelecer como fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa em norma dotada de conteúdo ético e, por via de consequência, a reaproximação entre o Direito e a Moral, fomentada tanto pelo pós-positivismo quanto pelo neoconstitucionalismo, serviu de diretriz para a (re)consolidação democrática da política brasileira, por meio do diálogo entre instituições revestidas de estatura constitucional.

2.1 Dignidade da Pessoa

O ordenamento normativo deve ser perpassado pelo valor fundamental da dignidade da pessoa, que impede o retrocesso social, de molde a impor a promoção do mínimo existencial, observada a reserva do possível do Estado (SARLET, 2006: 62).

De um ângulo, as normas constitucionais que pretendam conferir direitos subjetivos, exteriorizados em prestações materiais, são revestidas de eficácia positiva, na medida em que permitem que seus beneficiários ou destinatários exijam as prestações que constituem o objeto do direito subjetivo perante o Poder Judiciário, de maneira a assegurar o mínimo existencial, traduzido pelas condições elementares necessárias à existência humana, e atender à reserva do possível, simbolizada pela limitação dos recursos disponíveis para a consecução das necessidades a serem por eles supridas.

De outro ângulo, as normas constitucionais que pretendam delimitar os fins a serem alcançados pelo Estado e sociedade, sem a especificação dos meios para a obtenção das finalidades colimadas, são revestidas de eficácia negativa, uma vez que não somente proíbem a implementação de políticas que contrariem as prescrições imanentes às normas constitucionais programáticas, que não tenham sido regulamentadas por normas infraconstitucionais, como também invalidam a revogação de normas infraconstitucionais, que regulamentavam normas constitucionais programáticas, sem a determinação de política substitutiva ou equivalente, pelos Poderes Executivo e Legislativo, com a consequente vedação do retrocesso ou efeito cliquet.

Pelo fio do exposto, a dignidade da pessoa, que ocupa o “epicentro axiológico da ordem constitucional” (SARMENTO, 2004: 288), é bipartida em dimensão autonômica, correlata à dignidade como possibilidade de autodeterminação da pessoa humana, e dimensão protetiva, correlativa à necessidade de proteção da pessoa humana pelo Estado e sociedade. Em linha de princípio, a dimensão autonômica tem ascendência sobre a dimensão protetiva, a não ser na hipótese em que a autonomia da vontade se mostre fragilizada pela ignorância técnica, quando, então, a regra se inverte.

2.2 (Re)consolidação Democrática

A democracia, evidenciada pela titularidade do poder estatal pelos cidadãos (governo do povo), exercido por meio da representação política (governo pelo povo), com o fim de atender aos interesses populares (governo para o povo), é consagrada em 15 (quinze) normas constitucionais veiculadas pelos arts. 1º, caput; 5º, inc. XLIV; 17, caput; 23, inc. I; 34, inc. VII, “a”; 90, inc. II; 91, caput e § 1º, inc. IV; 127, caput; 134, caput; 194, parágrafo único, inc. VII; 206, inc. VI; 215, § 3º, inc. IV; 216-A, caput e § 1º, inc. X.

Nesse diapasão, a Constituição da República estabeleceu o ambiente propício à (re)consolidação democrática, por conta, sobretudo, do respeito à liberdade de expressão, independência do Poder Judiciário e eleições diretas, periódicas e transparentes, ao tempo em que fomentou a participação política na legislação (e.g.: grupos de pressão), administração (p.e.: coleta de opinião, debate público e audiência pública) e jurisdição (v.g.: mandado de segurança coletivo, ação popular, ação civil pública, responsabilização político-administrativa do Presidente da República, Tribunal do Júri e quinto constitucional), isolada ou combinadamente (MOREIRA NETO, 1992: 149).

2.3 Diálogos entre Instituições

Por fim, o ordenamento jurídico tem o condão de inspirar diálogos constitucionais entre instituições políticas sobre a melhor forma de harmonizar as liberdades dos indivíduos e os interesses da coletividade. No contexto do processo dialógico, portanto, cada instituição pode contribuir com a sua específica capacidade institucional para a proteção da dignidade da pessoa e o aprimoramento da democracia no Brasil (PESSANHA, 2011: 273).

Não se descarta, então, a possibilidade de revisão de posicionamento, sumulado ou não, quando o Supremo Tribunal Federal vislumbrar a mudança do parâmetro anteriormente firmado em precedente judiciário, por intermédio do redimensionamento jurisprudencial ou overruling, nem a correção legislativa de decisões judiciais, quando, por exemplo, ao desempenharem o poder constituinte derivado, a Câmara dos Deputados e Senado Federal promulgarem e publicarem emenda à Constituição em sentido contrário a deliberação proferida pelo Supremo Tribunal Federal, em razão do ativismo congressual ou backlash (MENDES, 2011: 214).

3. Desafios

A despeito das conquistas dos últimos anos, a toda evidência, há desafios a serem enfrentados, com o fim de maximizar as potencialidades da Constituição da República Federativa do Brasil, que giram em torno do emendismo constitucional, não somente em plano federal, mas também em plano estadual, a graduação de (in)efetividade das normas constitucionais, destacadamente no que se refere aos direitos sociais, e as omissões legislativas que inviabilizam, de certa forma, a implementação das políticas públicas constitucionalmente desenhadas.

3.1 Emendismo Constitucional

Por ora, 6 (seis) emendas foram elaboradas pela revisão constitucional, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral, na forma do art. 3º, in fine, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, sem prejuízo de 125 (cento e vinte e cinco) emendas ultimadas pelo poder de reforma constitucional, pelo voto de três quintos dos membros da Câmara dos Deputados e Senado Federal, em dois turnos, nos termos do art. 60, § 2º, da Constituição da República.

O quadro de “excessivas alterações na Constituição brasileira” (MOREIRA, 2012: 7), igualmente, pode ser detectado em nível estadual. À guisa de ilustração, a Constituição do Estado do Rio de Janeiro foi objeto de 90 (noventa) emendas, ao passo que as Constituições dos Estados de Minas Gerais e Amazonas foram emendadas em 110 (cento e dez) e 130 (cento e trinta) ocasiões, respectivamente.

A intensificação no processo de reforma da Constituição produziu, como efeito colateral, o aumento substancial da ocorrência de casos de controle de constitucionalidade de normas constitucionais. Em algumas oportunidades, inclusive, o Supremo Tribunal Federal houve por bem declarar, liminar ou definitivamente, a inconstitucionalidade do art. 2º, § 2º, da Emenda Constitucional nº 3, de 17 de março de 1993, que permitiu a cobrança do imposto sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira no mesmo exercício em que havia sido instituído (BRASIL, 18.3.1994); art. 5º da Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1998, que dispôs sobre o regime jurídico único (BRASIL, 7.3.2008); art. 1º da Emenda Constitucional nº 21, de 18 de março de 1999, que autorizou a União a emitir títulos da dívida pública interna, cujos recursos seriam destinados ao custeio da saúde e da previdência social, em montante equivalente ao produto da arrecadação da contribuição, prevista e não realizada em 1999 (BRASIL, 17.10.2003); art. 4º, parágrafo único, incs. I e II, da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003, que estabeleceu tratamento discriminatório entre servidores públicos inativos e pensionistas da União, de um lado, e servidores públicos inativos e pensionistas dos Estados, Distrito Federal e Municípios, de outro lado, para efeito de contribuição previdenciária (BRASIL, 18.2.2005); art. 5º, § 1º, in fine, da Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, que possibilitou a indicação e escolha intempestivas dos nomes dos membros do Conselho Nacional ao Ministério Público da União (BRASIL, 10.5.2005); art. 2º da Emenda Constitucional nº 52, de 8 de março de 2006, que afastou a obrigatoriedade da verticalização das coligações partidárias na eleição que ocorreria a menos de 1 (um) ano da data de sua vigência (BRASIL, 10.8.2006); art. 1º da Emenda Constitucional nº 62, de 9 de dezembro de 2009, que disciplinou a sistemática de compensação de débitos inscritos em precatórios em proveito exclusivo da Fazenda Pública (BRASIL, 19.12.2013); e art. 2º da Emenda Constitucional nº 88, de 7 de maio de 2015, que sujeitou à confiança política do Poder Legislativo a permanência no cargo de Ministros do Supremo Tribunal Federal, Tribunais Superiores e Tribunal de Contas da União (BRASIL, 6.8.2015).

3.2 Graduação de (In)efetividade

Além da efetividade da qual são desprovidas algumas normas constitucionais (BARROSO, 2000: 78), especialmente as relacionadas a políticas públicas cuja implementação pressuponha a ação integrada de diversos níveis de governo, a ordem constitucional tem apresentado níveis diferentes de efetivação em muitos dos seus elementos.

Ao contrário dos direitos individuais de liberdade e propriedade e, bem assim, direitos coletivos de reunião e associação sobre os quais versa a Constituição da República, que gozam de certo grau de efetivação, os direitos sociais de natureza prestacional que digam respeito à assistência social (arts. 203 e 204), construção de moradias (art. 23, inc. IX), deficiência física, mental e sensorial (art. 24, inc. XIV), desenvolvimento urbano (arts. 182 e 183), educação pública (arts. 205 a 214), família, criança, adolescente e idoso (arts. 226 a 230), fomento ao desporto (art. 217), meio ambiente (arts. 170, inc. VI, e 225), patrimônio cultural (arts. 215 e 216), patrimônio genético (art. 225, § 1º, inc. II), pleno emprego (arts. 7º, inc. I, e 170, inc. VIII), populações indígenas (arts. 129, inc. V, 231 e 232), previdência social (art. 201), reforma agrária (arts. 170, inc. III, e 187, § 2º), recursos hídricos (arts. 20, § 1º, e 21, inc. XIX), redução das desigualdades regionais e sociais (arts. 3º, inc. III, e 170, inc. VII), relações de consumo (arts. 5º, inc. XXXII, e 170, inc. V), saúde pública (arts. 23, inc. II, 24, inc. XII, 196 a 200) e segurança pública (art. 144) não têm o mesmo nível de (in)efetividade, o que dificulta, ou mesmo compromete, o atendimento aos objetivos fundamentais constitucionalmente firmados de construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e marginalização e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

3.3 Omissões Legislativas

Consectário lógico do constitucionalismo social, as normas declaratórias de princípio programático são direcionadas ao estabelecimento de programas governamentais de ação social e, via de regra, carecem de interposição legislativa que lhes possibilite a subsunção a casos concretos (SILVA, 1998: 84).

De acordo com informações obtidas junto ao Supremo Tribunal Federal, até o momento, o Tribunal proferiu 30 (trinta) decisões em processos instaurados em decorrência do regular exercício da ação direta de inconstitucionalidade por omissão ou mandado de injunção, individual ou coletivo, em que se declarou a mora do Poder Legislativo e cuja matéria ainda se encontra pendente de disciplina sobre a criação de Estados e Municípios, aposentadoria especial, direito de greve, aviso prévio e organização dos Tribunais de Contas (BRASIL, 19.2.2016), tendo a dramaticidade da situação, até mesmo, levado o Supremo Tribunal Federal a declarar o estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro (BRASIL, 30.7.2022).

4. Conclusão

Depois de tudo o que foi consignado, agradeço profunda e sinceramente à EMERJ pela oportunidade de expor as conquistas e desafios do constitucionalismo brasileiro na transição do século XX para o XXI aos ilustres representantes da África Lusófona e, nesse percurso, investigar a diversidade, mas, sobretudo, a identidade que nos une.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1 Palestra proferida no Auditório Des. Paulo Roberto Leite Ventura em 5 de outubro de 2022, por ocasião do “Seminário Internacional de Direito Constitucional Lusófono” da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ).